Algumas horas passaram, como grãos de areia escorrendo entre os dedos.

    O quarto cheirava a óleo de lamparina e madeira venha, o silêncio entre eles era quebrado apenas pelos sons ocasionais da cidade, alguns passos apressados lá embaixo, o ranger de carroças e o latido distante de cães .

    Nyara voltou pouco depois, com o semblante sério.

    — Os cavalos estão prontos! — anunciou, baixando o tom de voz. — Balrik me ajudou com mais alguns suprimentos. Ele não fez perguntas, mas desconfio que percebeu algo.

    — Ele sempre percebe — murmurou Ivar, ajeitando o manto sobre os ombros. — Mas é um homem de honra. Não nos entregará.

    Delilah guardava o cajado junto de si, como se fizesse parte de si. Já a adaga, ainda descansava sobre a cama. Ela a observava com um misto de medo e fascínio, como quem encara o peso e o medo de um destino que não pediu, mas que talvez tivesse de carregar.

    Elara, agora “Rys”, cobria parcialmente os cabelos carmesins com um capuz negro. Suas asas estavam ocultas de forma mágica, como se não existissem.

    — Vamos sair pelo portão oeste — disse Nyara — Menos guardado, e as ruas levam até as colinas. A partir dali, seguimos pela estrada até o rio Safryel e mais a frente chegaremos há grande fronteira.

    — E manteremos silêncio absoluto até deixarmos as muralhas da cidade… — Ivar diz concordando.

    — Eu estou pronta! – Delilah se levanta, segurando firme o cajado.

    Elara passou a mão suavemente pelos cabelos loiros dela, como se lhe desse coragem. — Lembre-se, coragem não é ausência de medo, Delilah. É caminhar apesar dele.

    Quando desceram as escadas, Balrik estava novamente atrás do balcão, fingindo se ocupar com um barril. Seus olhos encontraram os de Ivar por apenas um segundo, e naquele breve gesto havia tanto aviso quanto despedida.

    Ivar se aproximou do balcão e estendeu sua mão.
    — Obrigado por tudo, Balrik. Espero que nos encontremos de novo.

    — Não tem de que, amigo. Façam uma boa viajem e até breve. Espero que tenham muitas histórias para me contar quando nos encontrarmos novamente.

    Ivar acena com a cabeça e vai em direção a porta.

    O ar da noite os recebeu frio e úmido. A lua, escondida pelas nuvens, dava ao mundo uma aparência de penumbra constante. A carroça os esperava no beco lateral, dois cavalos relinchando baixo, como se pressentissem a tensão no ar.

    Nyara assumiu as rédeas, com Delilah ao lado. Elara entrou em seguida, ajustando o capuz para que nada de sua cor vibrante fosse visto. Ivar subiu por último, o olhar atento em todas as direções.

    No instante em que a carroça começou a se mover, deixando para trás o Porto Seguro, uma sensação de ruptura atravessou o grupo. Aquele lugar que havia sido abrigo agora se tornava parte do passado.

    E no silêncio da noite, apenas o ranger das rodas nas pedras e o resfolegar dos cavalos preenchiam o ar.

    Mas, distante, além da cidade adormecida, duas figuras observavam do alto de uma torre. Seus olhos brilhavam com o reflexo vermelho, como brasas ainda acesas na forja.

    — Eles partiram. — disse uma voz grave.

    — Sim. Mas não irão muito longe. — respondeu a outra.

    O destino começava a estreitar os caminhos. E os caçadores ou o que quer que fossem estavam cada vez mais próximos de sua presa.

    A carroça avançava lentamente pelas ruas desertas em direção ao portão oeste, suas rodas rangendo sobre o paralelepípedo úmido. Alguns guardas, sentinelas noturnos, estavam de vigia. Seus olhos atentos seguiram o pequeno grupo assim que surgiram na penumbra, mas nenhum gesto hostil foi feito. O silêncio inicial foi quebrado apenas pelos cascos dos cavalos.

    — Olha só… — murmurou um dos guardas, apoiando o queixo no cabo da lança. — Ouviu o que fizeram com aquele pelotão no mês passado?

    — Sim… malditos humanos do exército “divino” . Queriam estuprar aquelas elfas lá na fazenda, na estrada de Erathis para Thirel. — outro guarda assentiu com a cabeça, a voz carregada de desaprovação.

    — E esse tal de Darklurker, hein… — continuou o primeiro, com um certo respeito. — Não só acabou com eles, como arrancou os corações de todos. Ninguém sobreviveu. Dizem que é justiça pura, mas… deve ser alguma coisa além de elfos mortais como nós.

    O segundo guarda coçou a barba, pensativo. — Já ouvi falar dele. Alguns dizem que é um demônio. Outros, um semi-deus. Tem até quem diga que é a própria Morte… A Morte Branca, pelo manto que veste.

    — Um homem assim… ou seja lá o que for… — o primeiro guarda assentiu devagar, olhando para o grupo já passando — …só consigo respeitar. Faz justiça, e ainda faz rápido. Quem fosse capaz de fazer isso, só pode ter sangue frio e propósito firme.

    Na carroça, Ivar ouviu tudo em silêncio, os punhos fechando-se levemente no cabo da espada. O capuz escondia a maior parte de seu rosto, e a sua transmutação protegia sua identidade.

    Elara, ao seu lado, percebeu sua tensão e pousou uma mão firme sobre a dele e falou em seu ouvido. — Eles falam do Darklurker como se ele fosse lenda… e de certa forma, é. Mas você não é só isso, Ivar.

    — Não me considero um justiceiro… — respondeu ele em voz baixa, quase um sussurro. — Só… me distraí. Meu objetivo sempre foi outro… trazer minha filha de volta. O resto… o que fiz, o que causei, não era planejado. Não posso mais me distrair. Não agora quando estou tão perto…

    Delilah, ao ouvir o nome, franziu as sobrancelhas. — Darklurker…? Já ouvi histórias. Mas não sei direito quem ele é…

    Ivar respirou fundo, lançando um olhar breve para Elara, que assentiu levemente. Então ela falou, com uma calma cuidadosa:

    — Delilah… o Darklurker é… alguém que luta contra injustiças quando ninguém mais ousa. Mas ele não se considera um herói. Ele… apenas… faz o que precisa ser feito. E… ele é o Ivar.

    O silêncio caiu pesado na carroça. Delilah olhou de Ivar para Elara, tentando absorver a informação.

    — Você… Ivar, você é o Darklurker? — murmurou, com um misto de assombro e surpresa.

    Elara sorriu levemente, gentil e firme ao mesmo tempo.

    — Ele é bom, Delilah. Mesmo quando diz que não se importa, ele ajuda. Faz o bem porque é parte dele, mesmo que não queira enxergar.

    Ivar desviou o olhar, consciente do peso de suas palavras, mas firme em seu propósito.

    — E não me distrairei mais. Nosso caminho segue em frente. O artefato nas Montanhas Muralha… é isso que precisamos. Minha filha… é isso que me guia.

    — E nós estaremos com você! — disse Elara, colocando a mão sobre a dele novamente, quase como uma promessa silenciosa.

    O vento frio da noite atravessou a carroça, balançando os mantos e lembrando a todos que, a cada instante, o perigo estava mais próximo.

    Mas, pelo menos por agora, estavam juntos, cientes de quem eram, e do que precisavam fazer para sobreviver e alcançar seus objetivos.

    Enquanto as rodas rangiam e os cavalos avançavam em direção às colinas, o nome Darklurker ecoava silencioso na memória daquelas sentinelas no portão oeste, e na escuridão, o mundo parecia se estreitar em torno deles, anunciando a tempestade que se aproximava.

    A carroça avançava lentamente pela estrada estreita, serpenteando entre colinas baixas cobertas por grama úmida.

    O vento frio da noite sussurrava entre as árvores e carregava o cheiro da terra molhada, fazendo com que o manto de Ivar tremulasse levemente sobre os ombros.

    — Não consigo acreditar… — murmurou Delilah, quebrando o silêncio enquanto olhava para as sombras das colinas. — Tudo isso… e ainda estamos… vivos.

    Elara sorriu levemente, mas com um toque de melancolia. — Sobreviventes sempre encontram maneiras de continuar, Delilah. Não é só sorte. É cuidado, atenção… e confiar nas pessoas certas.

    Ivar desviou o olhar por um instante, observando o terreno à frente. — E também saber quando agir silenciosamente. Nunca subestimem o perigo, mesmo quando parece que estamos longe dele.

    A estrada começou a descer suavemente e logo se aproximou de um rio largo, sua superfície refletindo a pouca luz que escapava da lua encoberta. Uma ponte de pedra antiga atravessava a água, embora rangesse baixo a cada passo da carroça.

    — Vamos atravessar devagar — disse Nyara, segurando firme as rédeas. — Não queremos fazer tanto barulho.

    — Parece segura… — murmurou Elara, olhando para o rio.

    A carroça avançou cuidadosamente, cada roda e casco ecoando suavemente sobre a pedra úmida. Delilah apertava o cajado com força, os olhos fixos na correnteza abaixo, como se o movimento da água pudesse revelar algum perigo iminente.

    — Por que ele faz isso? — Delilah se perguntou baixinho, olhando para Ivar de canto de olho. — O Darklurker… quero dizer, você… faz justiça, mas por que de forma tão… extrema?

    Ivar com sua boa audição, ouviu o que Delilah dizia, ele respirou fundo, a voz grave e baixa. — Porque o mundo permite que ratos façam o que quiserem. Às vezes, a justiça precisa ser clara… rápida… e implacável. Mas nem sempre é só por necessidade, mas sim por ódio ou prazer.

    — Eu prefiro acreditar que é bondade disfarçada — disse Elara, firme. — Mesmo que ele não queira ver assim, Ivar faz o bem porque pode, Delilah.

    O grupo seguiu em silêncio por mais alguns quilômetros, até que Nyara desviou a carroça da estrada principal, entrando por uma trilha estreita entre as árvores.

    — Podemos armar acampamento aqui… — disse ela, apontando para uma clareira que se abria entre duas colinas. — …protege a visibilidade e nos dá cobertura.

    Ivar acenou em concordância, e logo todos começaram a desembarcar. As rodas da carroça afundaram levemente na terra macia enquanto os cavalos eram amarrados.

    — Vamos nos revezar em turnos de vigia… — sugeriu Ivar, retirando o capuz e esticando os ombros. — … a estrada ainda é perigosa, e não podemos baixar a guarda.

    — Concordo — disse Elara, puxando uma manta do interior da carroça. — Delilah, venha. Descansaremos o máximo que pudermos.

    — E Nyara? — perguntou a garota, ainda segurando o cajado.

    — Eu fico com a primeira vigília — respondeu Nyara, ajustando o capuz. — Depois, Elara reveza comigo. Ivar… você pode dormir um pouco, se conseguir.

    — Pouco — murmurou Ivar, já se acomodando ao lado da carroça, a mão sobre a espada, atento a cada som ao redor. — Nada de distrações. Amanhã, seguimos para além da grande fronteira.

    A noite os envolveu completamente, o céu carregado de nuvens densas impedindo a luz da lua de iluminar a clareira. O som do rio correndo próximo e o farfalhar das folhas eram a trilha sonora daquela pausa.

    Mesmo cansados, todos sentiam o peso da viagem, a tensão do perigo e a responsabilidade de cada passo.

    Mas também havia um fio de confiança, silencioso e firme, que os unia naquela estrada sombria, cada um ciente do papel do outro na jornada que ainda estava por vir.

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