As mãos de Ivar pararam sobre o ar… firmes, mas tomadas por um tremor involuntário. O calor emanado dos fragmentos fazia o plano inteiro pulsar, como se o próprio caos prendesse a respiração.

    Seus dedos hesitaram por um instante diante do Coração dos Mil Ecos, mas então desviaram.
    O brilho carmesim do Vinho da Mente o atraía, vivo, pulsante, como uma estrela que sangrava.

    Phobos observava, imóvel, o sorriso distorcido crescendo até quase dividir-lhe o rosto.
    — Ah… a insanidade disfarçada de clareza… — sussurrou ele, a voz vibrando no crânio de Ivar. — Uma escolha digna do sangue do Caos .

    Os dedos de Ivar tocaram a taça feita de carne viva. Ela estava quente… quente demais, e pulsava, como se respirasse. No instante em que seus dedos se fecharam sobre ela, a carne se retorceu, abrindo fendas vermelhas que revelavam olhos minúsculos, cada um se movendo em direções diferentes.

    Um líquido escuro e avermelhado começou a brotar da borda… espesso, quase negro. O cheiro era de ferro, medo e lembranças mortas.

    Phobos deu um passo à frente, a sombra dele se projetando sobre Ivar como uma noite viva.
    — Beba… — ordenou, e o tom não permitia recusa.— …que o medo dos outros seja teu vinho.

    Ivar ergueu a taça. O líquido tremia, vibrando como se tivesse vontade própria. Quando o tocou nos lábios, um arrepio percorreu todo o seu corpo… e então, bebeu.

    O sabor era indescritível.
    Não doce, não amargo, mas algo que fazia sua mente gritar. Era o gosto da loucura, do pavor, o sabor das vozes que ele havia silenciado, dos inimigos que caíram diante dele, dos inocentes que morreram por sua causa.
    Cada gole fazia os gritos crescerem.
    Milhares de vozes — implorando, rindo, cantando — o cercavam.

    O plano de Phobos começou a girar. O chão se dissolveu. Ivar caiu de joelhos, apertando a cabeça, mas continuando a beber.
    Quando a taça se esvaziou, o líquido começou a vazar pelas bordas, como se escorresse para dentro dele.

    Então o silêncio veio.
    Um silêncio tão absoluto que o próprio Phobos pareceu hesitar.

    Mas não durou.
    As vozes retornaram… sussurros dentro da sua mente, cada um com um timbre diferente, cada um pronunciando o seu nome.

    “Ele vê…”
    “Ele sabe…”
    “Ele é o medo em forma de homem…”

    Phobos o observava, satisfeito.
    — Agora… o terror dos outros será tua arma. Onde passares, os corações se curvarão. Nenhum olhar te desafiará sem tremer.
    O deus estendeu uma das mãos distorcidas e tocou o peito de Ivar. A marca queimou sob a pele, espalhando-se até o pescoço e o rosto como veias de sombra.
    — Mas lembre-se… cada gole de medo será também um sussurro em sua mente. Cada alma que vacilar diante de ti deixará um eco… e um dia, os ecos se tornarão mais altos que a tua própria voz.

    Ivar tentou falar, mas a garganta não respondeu. Em vez disso, uma risada baixa e involuntária escapou de seus lábios, como se outra coisa risse através dele.

    Phobos recuou, se desfazendo em fumaça e olhos.
    — Adeus, filho do Caos. Quando as vozes se tornarem insuportáveis, lembre-se: foste tu quem escolheu poder.

    E então o mundo desabou.

    Ivar sentiu o corpo ser arrancado de dentro para fora… e de volta ao mundo real, engasgou, o suor cobrindo sua pele.

    A foice ao seu lado tremia, o metal exalando uma névoa púrpura,como se quisesse dizer algo. O rio murmurava como se nada tivesse acontecido.

    Mas quando Ivar olhou o próprio reflexo na água, viu algo novo… os olhos.
    As pupilas agora eram fendas sutis, e por trás delas, algo brilhava… Era o olhar de quem é temido… e que também teme o próprio eco.

    Um sussurro percorreu sua mente, doce e ameaçador ao mesmo tempo…

    “Agora, Ivar… o medo é teu servo. Mas por quanto tempo antes que se torne teu senhor?”

    Ivar pega sua foice que estava deitada no chão… — Não me importo com as consequências… desde que eu consiga trazê-la de volta, estarei satisfeito.

    — E como pretende trazê-la se perder completamente sua sanidade, idiota? — Uma voz surge, mas não havia ninguém ali além de Ivar. E como no dia em que enfrentava os cultistas, sentiu que a voz vinha se sua  foice.

    A foice vibrou mais forte, como se cada palavra da lâmina carregasse um pulso vivo.
    Ivar a segurou firme, o metal ainda morno, respirando como um animal preso.

    — Então agora você fala… — murmurou ele, a voz rouca, os olhos ainda fixos no reflexo distorcido da água.

    — Eu sempre falei, Ivar… — respondeu a foice, num tom que oscilava entre o sussurro e o sibilo. — Foi você quem nunca ouviu.

    Ele respirou fundo, o peito subindo e descendo num ritmo irregular.
    — E o que quer de mim agora? Vai me amaldiçoar como os outros?

    — Amaldiçoar? — a lâmina riu, um som metálico, reverberante. — Eu sou tua maldição e tua salvação, imbecil. Sem mim, estarias morto há muito tempo.

    Ivar apertou o punho em torno do cabo deformado. As runas púrpuras se acenderam, refletindo nos olhos dele como brasas.
    — Eu não pedi por isso.

    — Não pediu nada, e ainda assim segue escolhendo o que destrói. — A foice falou num tom quase carinhoso, como se zombasse e o confortasse ao mesmo tempo. — O medo agora é parte de ti. Ele rasteja sob tua pele, sussurra no teu sono, e um dia… te chamará pelo nome.

    O silêncio entre os dois durou alguns segundos. Apenas o vento e o som do rio preenchiam o vazio.

    Ivar finalmente quebrou o silêncio:
    — E o que tu sabes sobre trazer alguém de volta? Sobre desafiar os deuses?

    A foice respondeu num tom grave, mais sério que antes:
    — Sei o bastante para te avisar que nem mesmo o medo pode escapar do preço. Phobos te deu poder, mas o controle cabe à você. Se seguires esse caminho, Ivar… verás o rosto dela apenas nas ruínas da tua própria mente.

    Ele baixou os olhos. Por um instante, sua expressão pareceu vacilar… dor, raiva e saudade misturadas.
    — Então que assim seja. — disse enfim, firme, como quem selava o próprio destino. — Já vivi tempo demais sendo controlado por outros. Se o medo é o preço, que ele venha.

    A foice pulsou uma última vez, emitindo um som baixo, quase como um suspiro.
    — Hah… tolo até o fim. É por isso que gosto de ti. Realmente temos o mesmo sangue…

    — Mesmo sangue? O que quer dizer?

    As runas se apagaram lentamente, a névoa dse dissipou, e o silêncio voltou a dominar a noite.

    — Ah, ótimo. — murmurou.

    Ivar guardou a arma, o olhar perdido no horizonte enevoado.

    As vozes ainda sussurravam, distantes, como ecos em um abismo…

    “Ele bebeu o medo…
    Ele alimenta o vazio…”

    O frio cortava o ar, e a névoa rastejava pela relva, abraçando as margens do rio como dedos espectrais. O vento parecia evitar Ivar — desviava-se dele, como se até o ar tivesse medo de tocá-lo.
    Por um instante, tudo ficou imóvel. Nenhum som, nenhuma criatura, apenas o murmúrio do curso d’água e o bater irregular de seu próprio coração.

    Ele respirou fundo e se levantou, o corpo ainda dolorido pela travessia entre os planos. Sentia-se… diferente. Cada batimento soava como um eco dentro da própria cabeça, e cada sombra parecia observá-lo de volta.

    “Mesmo sangue…”
    As palavras da foice ecoavam em sua mente, repetidas como um cântico.

    Ivar olhou para a arma guardada, as runas completamente apagadas.
    — O que você quis dizer com isso? — murmurou.

    Mas a foice permaneceu muda.
    Nenhum som. Nenhuma vibração. Apenas um silêncio pesado, carregado de algo que ele ainda não compreendia.

    Ele ergueu o olhar para o céu… uma tapeçaria de nuvens densas e cinzentas, rasgada por fendas de luz pálida.

    Phobos havia desaparecido, mas a sensação de ser observado permanecia.
    — Sangue do Caos… — repetiu, entre dentes. — Maldito seja o dia em que esse sangue foi concedido à mim.

    Ele começou a caminhar pela margem do rio, cada passo mais firme, cada respiração mais controlada. As vozes que antes grunhiam em sua mente agora murmuravam em coro baixo, quase harmonioso. Pareciam o acompanhar, como um coral invisível.

    “Caminha o filho do Caos…
    Caminha o que carrega o medo…”

    Ivar as ignorou. Havia algo mais urgente, precisava retornar. Elara, Nyara e Delilah ainda dormiam a alguns minutos de distância, e o amanhecer se aproximava.

    Com passos lentos, cruzou o bosque e seguiu de volta ao acampamento. A brisa fria trazia o cheiro de terra úmida e cinzas de fogueira apagada. Quando a luz da aurora começou a se insinuar entre as folhas, ele já via o contorno das duas figuras adormecidas perto das tendas.

    Elara fazia a vigília encostada numa árvore, o rosto sereno, as asas carmesins dobradas sob o corpo. Delilah estava coberta até o queixo, respirando em um ritmo tranquilo, alheia ao peso que rondava Ivar. Nyara dormia embaixo da carroça tranquilamente.

    Ele parou por um momento, apenas observando.
    Por mais que tentasse negar, aquele breve instante de paz o enfraquecia. Havia algo em Elara… algo que o lembrava de quem ele fora antes de se tornar uma sombra.

    Mas o reflexo na água ainda o assombrava. As pupilas fendidas, as veias negras sob a pele, e aquele brilho demente que agora residia em seu olhar.

    O medo já o habitava. E, se Phobos falou a verdade, logo começaria a crescer.

    Ivar se ajoelhou ao lado da fogueira, reacendendo as brasas com um toque. A chama acendeu-se mais rápido do que deveria, como se o fogo o reconhecesse.

    — Filho do Caos… — repetiu em voz baixa, sentindo o peso das palavras. — Então realmente é isso o que sou…

    A foice respondeu, distante, como um eco vindo das profundezas de sua mente:
    — Não, seu tolo… Tu és muito mais que isso…

    Ele fechou os olhos.

    E quando o primeiro raio de sol rompeu o horizonte, tocando o campo coberto de névoa, Ivar sentiu uma coisa nova.

    Não medo.

    Não arrependimento.

    Mas um propósito que ardia como fogo antigo.

    Levantou-se, o rosto marcado pela aurora.
    O vento soprou, espalhando as cinzas da fogueira.
    E no fundo de sua mente, as vozes sussurraram novamente — suaves, reverentes, quase em adoração:

    “Ele bebeu o medo…
    Ele molda o caos…
    Ele é o arauto do que vem…
    O Hendeiro do Vazio…”

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