Capítulo 28: Silêncio Antes da Tempestade
O amanhecer chegou devagar, mas não silencioso.
Primeiro veio o dourado, o sol maior, rasgando o véu da noite como uma ferida de luz.
Ele subia preguiçoso no horizonte, espalhando seus tons quentes sobre o vale adiante. As colinas, ainda cobertas por uma leve neblina, brilhavam como ouro velho sob o toque daquela primeira claridade.
Logo atrás dele, nasceu o segundo, o sol azulado. Menor, mais frio, e ainda assim vivo. Sua luz se entrelaçava com a do primeiro em um contraste hipnótico.
O dourado aquecia, o azul acalmava. Juntos, faziam o mundo parecer respirar… metade sonho, metade lembrança.
O rio corria próximo, seu curso agora dividido entre reflexos dourados e turquesa. As árvores projetavam sombras duplas, e o ar carregava aquele perfume fresco que só existe entre a noite e o dia.
Pássaros despertavam em cantos tímidos, e criaturas pequenas se moviam sob as folhas molhadas de orvalho.
O vento soprou, e a neblina começou a se erguer. No meio dela, Ivar estava sentado, imóvel, observando o nascer dos dois sóis. O brilho misto refletia em seus olhos, mas o que se movia dentro dele era mais sombrio… um silêncio que parecia ter peso.
As vozes haviam se calado desde a madrugada, mas não haviam ido embora. Apenas esperavam.
Atrás dele, um leve som de asas.
Elara se mexeu, o rosto ainda meio perdido entre sonho e realidade. O brilho dos sóis refletia nas penas carmesim, tingindo-as de cobre e violeta.
Ela piscou algumas vezes, tentando se situar, e então o viu, sentado à beira do rio, quieto demais.
Algo nela se enrijeceu.
Não era medo, mas… um pressentimento. Como se o ar ao redor dele estivesse mais denso.
Havia algo diferente em Ivar, não nos traços, nem nos olhos… mas na presença.
Antes, sua energia era como fogo contido… intenso, mas vivo. Agora, era como um abismo… silencioso, frio, e profundo demais para ser medido.
Ela o observou por longos segundos antes de falar.
— Não conseguiu dormir? — perguntou, a voz ainda baixa, quebrando o encanto da aurora.
Ivar não se virou.
— Dormir é… perder o controle — respondeu, quase como se falasse consigo mesmo.
Elara franziu as sobrancelhas. Aquilo não era uma resposta, e o tom dela endureceu.
— Ivar… está tudo bem?
Ele desviou o olhar do rio e olhou para ela por um instante. E embora o rosto fosse o mesmo, algo em seu olhar era diferente. Não havia frieza, mas uma calma estranha, como se ele aceitasse algo que os outros não conseguiam enxergar.
— Está… — respondeu simplesmente. — O que não estava, agora está.
Elara não acreditou, mas também não insistiu.
O silêncio que se seguiu foi espesso, cortado apenas pelo murmúrio do rio e o som distante de folhas sendo varridas pelo vento.
Logo, outro som se juntou ao despertar da manhã, um bocejo preguiçoso e um resmungo abafado.
Delilah se mexeu, se espreguiçando debaixo do cobertor. O cabelo desgrenhado e o olhar sonolento contrastavam com o brilho suave da aurora.
— Hm… por que tá tão claro assim? — resmungou, levando a mão aos olhos.
Nyara, ainda meio enroscada nas mantas, abriu um dos olhos e soltou um suspiro divertido.
— Porque o dia decidiu acordar antes de ti, dorminhoca. — A voz dela era suave, arrastada, mas carregava aquele tom levemente irônico que nunca abandonava.
Delilah bufou, sentando-se.
— Os dois sóis… Ugh… nunca vou me acostumar com isso.
Elara sorriu de leve, tentando disfarçar a tensão que sentia.
— Então vamos nos apressar, temos que continuar.
Nyara levantou-se por fim, ajeitando o cabelo e alongando os braços.
— E você, Ivar? Vai continuar olhando pro vazio ou pretende comer algo antes de seguirmos? — perguntou, meio brincando, meio séria.
Ivar se virou lentamente, o olhar fixo nelas por um instante. O reflexo dos sóis misturava-se ao brilho em seus olhos, tornando impossível decifrar o que se passava ali. Mas sua voz, quando veio, foi calma… calma demais.
— Eu como no caminho. Temos muito chão pela frente, e o tempo não espera.
Nyara o observou com atenção por alguns segundos, o sorriso desvanecendo aos poucos.
Elara desviou o olhar, e o vento soprou novamente, espalhando as cinzas do acampamento pela relva.
O dia havia começado… belo, vibrante, e silenciosamente inquieto.
Algo havia mudado em Ivar…
E, mesmo sem saber o quê, Elara sentia no fundo do peito que aquilo não era o fim… mas o início de algo que nenhum deles estava pronto para enfrentar.
O grupo desmontou o acampamento em silêncio, cada um imerso em seus próprios pensamentos.
O som do rio próximo acompanhava seus movimentos, o estalar da fogueira se apagando, o arrastar das botas na grama úmida, o ranger leve do couro das mochilas sendo fechadas.
Quando enfim partiram, os dois sóis já subiam mais alto no céu. O dourado dominava as colinas, enquanto o azul deixava rastros suaves nas sombras, como véus de névoa que se recusavam a desaparecer.
O caminho se estendia sinuoso, ladeado por árvores retorcidas que pareciam observar o grupo em silêncio.
Elara caminhava na frente, atenta, os olhos varrendo o horizonte.
Delilah seguia logo atrás, ainda sonolenta, murmurando algo sobre o frio da manhã e o desconforto de não dormir em uma cama.
Nyara, por sua vez, parecia completamente desperta, assobiando uma melodia antiga que se perdia entre as colinas, algo leve, mas melancólico.
Ivar vinha por último.
O passo dele era firme, mas havia algo em sua postura… uma rigidez quase imperceptível, como se cada movimento fosse controlado, medido, consciente demais.
Elara olhou para trás uma ou duas vezes, e todas as vezes encontrou o mesmo olhar sereno, mas vazio.
— Ele stá estranho… — murmurou Nyara, aproximando-se de Elara, baixo o suficiente para que ele não ouvisse.
— Eu sei… — respondeu Elara. — …desde que acordamos.
Nyara concordou, o olhar pensativo. — Ele sempre foi… sombrio, mas agora é diferente. Como se a sombra estivesse olhando de volta.
Delilah, ouvindo parte da conversa, soltou um suspiro pesado.
— Talvez ele só precise de descanso. Vocês duas esquecem que ele parece carregar o peso de cem homens.
Elara não respondeu.
O vento soprou, e o cheiro do rio voltou, fresco e metálico.
Mais à frente, o caminho cruzava por mais uma ponte de pedra antiga. O musgo cobria as laterais, e a água corria por baixo com um som constante e profundo.
Ivar foi o primeiro a atravessar. O dourado e o azul refletiam nele, dividindo seu rosto em duas metades — luz e sombra.
Por um instante, Elara teve a impressão de que o reflexo no rio se movia de forma diferente, como se houvesse outro Ivar ali embaixo, caminhando com intenções próprias.
Eles seguiram sem comentar.
Pouco depois, ao anoitecer, desviaram da estrada principal. Encontraram um pequeno trecho de floresta plana, com o som distante de um riacho e árvores que ofereciam sombra suficiente para um descanso breve.
Montaram um novo acampamento, simples, apenas mantas, um grande tecido para cobertura e um pequeno fogo.
O dia foi passando devagar. O calor dos sóis misturava-se ao som da natureza, insetos, vento e o murmúrio constante da água.
Delilah tirou o símbolo da deusa protetora, Aegis, e começou a recitar uma oração, pedindo proteção além de uma forma de preencher o silêncio.
Nyara, deitada na relva, observava as nuvens passarem.
Elara mantinha o olhar em Ivar, que permanecia imóvel à beira do acampamento, como uma estátua.
Quando o crepúsculo se aproximou, os dois sóis começaram a descer, o dourado primeiro, tingindo o mundo com tons de âmbar, e o azulado logo em seguida, espalhando uma calma melancólica sobre o vale.
As sombras se alongaram, e o ar esfriou.
Delilah adormeceu primeiro, o símbolo ao seu lado.
Nyara logo depois, enroscada em sua capa.
Elara resistiu um pouco mais, observando Ivar. Ele ainda não havia se movido. Apenas olhava para o horizonte, onde os últimos traços de luz desapareciam.
E foi então que ela percebeu.
A sensação… aquela presença diferente… estava mais forte agora.
Não era escuridão…
Não era luz…
Era algo entre os dois. Algo que pulsava, silencioso, profundo, como um eco vindo de muito além do mundo que conheciam.
Elara o observou até seus olhos pesarem. Quando finalmente cedeu ao sono, a última coisa que viu foi o último resquício do brilho pálido dos dois sóis morrendo no horizonte… e Ivar, ainda imóvel, como se esperasse por algo… ou alguém, nas sombras que vinham.
A noite caiu por completo.
E no instante em que o último raio de luz desapareceu, o vento mudou de direção.
E os ecos começaram a sussurrar novamente…
A noite, ao contrário do pressentimento que pairava desde o amanhecer, foi tranquila. O vento soprou suave entre as árvores, trazendo o som distante da água corrente e o farfalhar preguiçoso das folhas.
A fogueira se manteve viva por um bom tempo, lançando sombras dançantes sobre o rosto adormecido das três mulheres.
Ivar, sentado mais afastado, observava as chamas diminuírem. O fogo refletia em seus olhos de forma estranha, como se ele visse algo além das brasas… algo que os outros não poderiam compreender.
Por um longo tempo, o silêncio reinou absoluto. Nenhum sussurro, nenhuma voz. Apenas o som do mundo respirando.
As horas passaram. O céu se encheu de estrelas, incontáveis, dispersas em véus de névoa prateada, e os dois sóis, agora ausentes, deixavam um frio delicado que se espalhava entre as colinas.
Mesmo os ecos, que antes pareciam rondar sua mente, haviam se recolhido.
Apenas a calma restava.
Quando a aurora seguinte chegou, o dourado e o azul voltaram a surgir, preguiçosos, rompendo o véu da madrugada.
Um novo dia.
Elara foi a primeira a despertar, seguida de Nyara e Delilah, que ainda bocejava enquanto tentava pentear o cabelo com os dedos.
Ivar estava de pé. Já observava o caminho à frente.
— Vamos. — disse simplesmente.
As três o olharam, ainda sonolentas, mas algo em seu tom fez com que se apressassem. Elara ajeitou a capa sobre os ombros e perguntou:
— Vamos seguir pela estrada principal?
Ivar negou com a cabeça.
— Não… — Ele se aproximou do grupo. — A estrada principal leva até o porto da fronteira. Não podemos ir por ele. Além de ser mais caro, chamaríamos muita atenção, mesmo disfarçados. — Fez uma pausa breve, o olhar distante — Vamos seguir por essa trilha, ela vai nos levar até um porto clandestino, eles não fazem perguntas.
— Não sabia que você soubesse sobre esse porto não, rabugento. — disse Nyara.
— Eu conheço muitas coisas, já passei por aqui algumas vezes… — respondeu ele — Agora cheguem mais perto, vou usar magia de ilusão em nós.
Delilah ergueu as sobrancelhas. — Magia de ilusão? — perguntou, surpresa. — Achei que esse tipo de magia servisse mais para coisas pequenas.
— A minha faz muito mais. — respondeu ele, com calma.
Ergueu a mão, e o ar ao redor começou a ondular. Um rastro mágico púrpura com um brilho quase imperceptível, como vidro sob luz, se espalhou em torno deles.
As chamas que restavam da fogueira se extinguiram num sopro suave, e uma leve brisa percorreu o acampamento.
A primeira a mudar foi Elara. Suas asas desapareceram como se fossem engolidas pela luz, e seus cabelos carmesim tornaram-se negros como tinta, caindo lisos sobre os ombros, e sua pele assumiu o tom cinzento das elfas negras.
Nyara observou com fascínio, mas mal teve tempo de comentar antes de sentir sua própria transformação. Suas orelhas se alongaram, finas, cobertas por uma leve penugem. O nariz se afinou, virando um focinho, e os olhos ganharam um brilho felino. Quando a magia se completou, uma feral de traços felinos, com pelos, cauda e olhar safira, estava no lugar da pequena Demi-humana.
Delilah olhou para ambas e soltou uma risadinha nervosa.
— E eu? — perguntou.
— Tente não se assustar — respondeu Ivar.
Em seguida, ela encolheu. Literalmente.
O corpo diminuiu, os traços se suavizaram, e em poucos instantes, uma pequenina de cabelos ruivos e bochechas rosadas estava no lugar da sacerdotisa.
— Pelas deusas! — exclamou, com a voz mais aguda. — Isso é humilhante, estou menor que um anão!
Nyara gargalhou. — Combina contigo.
Delilah cruzou os braços, emburrada. — Pelo menos não fiquei parecendo uma gata de rua.
Ivar não comentou. Quando o olhar delas se voltaram a ele, viram que também havia mudado.
Os olhos, antes marcados pelo brilho púrpura sobrenatural, agora tinham um tom castanho comum. A barba escura aparecendo, e o cabelo, antes longo, branco e liso, tornara-se castanho escuro e curto… Um elfo bastante comum. Sem presença. Sem peso.
— Assim será melhor… — disse ele. — Agora somos apenas viajantes.
Sem mais demora, o grupo retomou a caminhada, evitando a estrada principal. Seguiram por trilhas estreitas, entre campos e bosques, sempre atentos a qualquer movimento.
O som das aves e o farfalhar das folhas eram os únicos companheiros, e o dia foi se arrastando em silêncio.
Quando o sóis começaram a declinar, o grupo chegou ao destino. Um porto clandestino, escondido entre penhascos e florestas retorcidas.
O lugar cheirava a sal, peixes e madeira úmida. Embarcações de vários tamanhos balançavam nas águas turvas, e figuras encapuzadas movimentavam-se discretamente entre as docas.
Delilah olhou ao redor, desconfiada.
— Tem certeza de que é seguro?
Ivar apenas respondeu:
— Tão seguro quanto pode ser, neste mundo.
Ao longe no cais, um escamoso velho, de aparência cansada, gritava.
— Dez moedas de ouro cada. Partiremos ao amanhecer…
Enquanto esperavam, o vento soprou forte, espalhando o cheiro do mar e fazendo as capas ondularem. O dourado do sol maior e o azul do menor desapareciam por trás das montanhas, acabando com o contraste de cores.
Atrás do grupo e em cima de uma cabana, as duas figuras misteriosas observavam o grupo à distância.
Imóveis. Silenciosas.
Uma delas, envolta por um manto cinzento, falava baixo, o olhar fixo em Ivar.
— Ela realmente mudou.
A outra, mais baixa, deixou escapar um suspiro, os olhos vermelhos brilhantes como vidro.
— Mudou… e muito.
Por um momento, o silêncio reinou entre elas, até que a mais baixa virou o rosto, deixando que o vento afastasse o capuz e o manto, revelando uma mulher de asas carmesins, de traços familiares.
Um leve sorriso surgiu em seus lábios. — Elara…
Assustados, todo o grupo se virou rapidamente, olhando para a a figura acima deles.
Elara arregalou os olhos, e a figura continuou. — …como tem passado, minha irmã?
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