Elara ficou paralisada por um momento.

    As palavras ecoaram em sua mente como um trovão, impossíveis de compreender à primeira audição.
    Minha… irmã?

    A figura acima, agora totalmente visível, desceu com um leve bater de asas.

    Cada movimento seu exalava autoridade e graça, suas penas carmesim cintilavam sob o brilho da lua que se erguia no horizonte, e o vento brincava com o tecido dourado de sua capa.

    Os olhos dela… da mesma cor viva que os de Elara, traziam um misto de ironia e ternura. Quando pousou diante do grupo, a aura que a cercava era quase sufocante… o tipo de presença que não precisava de palavras para impor respeito.

    — Eu não esperava te ver tão… mundana, maninha — disse a mulher, um sorriso suave curvando os lábios. — Mas também… não foi tão difícil te encontrar.

    Ela deu um passo à frente, o olhar fixo em Elara, e completou com um tom que os outros mal compreenderam:
    — Aasimars carmesins de linhagem nobre conseguem sentir o sangue, se esqueceu? E o seu… estava gritando.

    Elara deu um passo para trás, o coração acelerado.
    — Resmy… — murmurou, com a voz hesitante. — Pensei que… nunca mais te veria.

    Resmy arqueou uma sobrancelha, fingindo surpresa. — E perder a chance de buscar minha própria irmã fugitiva? — Ela olhou brevemente para Ivar e os outros, avaliando-os. — Ainda mais acompanhada de… criaturas tão interessantes. — Ela focou mais em Ivar, o analisando como algo novo — E o sangue desse aí é interessante…

    Antes que alguém pudesse responder, a segunda figura — o outro encapuzado — desceu logo atrás dela.

    O manto cinzento se abriu, revelando um homem de cabelos vermelhos vivos como fogo e olhos carmesins intensos. Sua expressão era fria, o tipo de frieza que só se adquire após anos de obediência e dever.

    Ele olhou para ela e suspirou, como quem já esperava aquele tipo de cena.
    — Você não tem jeito mesmo, Resmy. — disse com uma voz firme, baixa, e carregada de tédio. — Nós deveríamos observá-los de longe e só depois nos aproximarmos.

    Resmy deu de ombros. — E deixar o reencontro de irmãs para depois? Que tipo de monstro faria isso, Raynar?

    O nome fez Elara empalidecer. Ela o reconheceu instantaneamente.

    Raynar, seu primo. O homem com quem, há anos, seu destino havia sido decidido sem seu consentimento. O homem com quem deveria se casar.

    — Não pode ser… — murmurou, quase sem voz.

    Raynar desviou o olhar para ela, sério, sem qualquer traço de emoção. — É bom ver que ainda está viva, Elara. Seus pais ficaram extremamente… preocupados.

    Elara franziu as sobrancelhas, a tensão crescendo em cada músculo do corpo. — “Preocupados”? É esse o nome que dão quando mandam caçadores atrás de alguém?

    Resmy bufou, sorrindo de canto. — Ora, ora, maninha… você sabe bem como as coisas são. Fugir às vésperas do seu compromisso com a Casa Celeron foi… uma afronta. Você causou um puta caos diplomático.

    — Olha a boca! — disser Raynar, repreedendo Resmy.

    — Tá tá tá, eu sei eu sei… Mas não estamos no castelo agora. Respondeu Resmy, debochando. — Ela cruzou os braços e se voltou novamente para Elara, inclinando levemente a cabeça. — Mas tudo isso pode ser corrigido. Se voltar conosco agora, podemos continuar os preparativos para o casamento.

    Elara arregalou os olhos. — Casamento? — repetiu, a voz quebrando entre incredulidade e fúria. — Eu não vou voltar, não vou me casar.

    Raynar, impassível, respondeu:
    — Não é uma escolha, Elara. O pacto entre as Casas não foi anulado. Sua união comigo garante a estabilidade das linhagens nobres carmesins e do reino.

    Ivar, até então em silêncio, deu um passo à frente. O ar ao redor dele pareceu mudar, denso, como se a própria terra o acompanhasse no movimento.
    — Se quiserem levá-la… Bem, não irão levá-la.

    Resmy olhou para ele com curiosidade, o sorriso se alargando.
    — Seu sangue é realmente especial, eu consigo ver… — Seus olhos brilharam com malícia. — Interessante…

    Elara se moveu instintivamente, ficando ao lado de Ivar.

    — Não o envolvam nisso, Resmy. Isso é entre nós. — Elara se pos entre eles.

    — Engano seu, mantinha… — respondeu a irmã, a voz agora mais fria. —… tudo o que envolve o sangue carmesim, envolve nós.

    Raynar colocou a mão sobre o punho da espada presa ao cinto, o olhar fixo em Ivar.
    — Não torne as coisas mais difíceis do que precisam ser, Elara.

    Ivar sorriu… um sorriso lento, mas sem humor.
    — Tarde demais…

    O vento soprou forte.
    As chamas das tochas próximas vacilaram, e o brilho da lua refletiu nos olhos de Ivar.

    Delilah e Nyara se entreolharam, em silêncio. O ar estava carregado demais, e sabiam que um único movimento em falso poderia acender o confronto.

    Resmy deu mais um passo à frente, o rosto agora a poucos metros do de Elara.
    — Irmã… — disse suavemente, quase num sussurro. — O Reino te espera. O casamento está marcado para o décimo ciclo da lua. Você vai voltar conosco, quer queira ou não.

    Elara respirou fundo, o coração martelando. O vento agitou seus cabelos e as chamas das tochas dançaram violentamente, como se o mundo inteiro aguardasse sua resposta.

    — Eu me recuso. — ela respondeu, a voz firme e cortante.

    O silêncio que se seguiu foi pesado… até que Resmy sorriu.
    — Então, temo que não nos reste escolha, irmãzinha.

    Resmy e Raynar partiram pra cima do grupo, mas Ivar entra na frente antes que conseguissem fazer algo. E de repente os dois sentiram um enorme peso sobre seus ombros, e ao olhar para Ivar sentiram um pavor tão grande que os fez paralizarem e em seguida caírem de joelhos.

    — O vinho da Mente… Ivar sussurrou para si mesmo.

    A pressão era tamanha, que seus corpos não suportaram.
    O peso que caiu sobre Resmy e Raynar não era simplesmente físico… era existencial. Como se algo invisível, antigo e faminto tivesse pousado sobre seus ombros.

    Resmy, que sempre fora arrogante, sempre rira da dor alheia, arregalou os olhos pela primeira vez em anos.

    Raynar, moldado desde criança para não demonstrar medo, teve o rosto tomado por um terror tão puro que mal conseguia respirar.

    Ambos tentaram erguer as asas, ou mover os braços, ou dizer algo… qualquer coisa, mas cada tentativa só aumentava o pavor que se infiltrava em suas mentes como agulhas.

    Ivar deu um único passo à frente.

    E o chão tremeu.

    A sombra ao redor dele vibrou, se alongando, se retorcendo como se tivesse vida própria. Os olhos de Ivar brilhavam de um jeito estranho… não mais sóbrio e calculado, mas profundo, insondável e dominador.

    — Vocês… não vão tocá-la. Nem hoje… — sua voz parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo — …nem nunca.

    Resmy tentou erguer o rosto, mas cada centímetro parecia um esforço para não enlouquecer. Raynar, por sua vez, já estava de joelhos, apoiando as mãos no chão, o suor escorrendo da testa.

    O ar se distorceu.

    As chamas das tochas se apagaram por um segundo.

    O vento desapareceu.

    E então, tão rápido quanto veio, o peso desapareceu.

    Ivar piscou. Respirou. Endireitou-se. Sua sombra voltou ao normal, e sua aura se fechou.

    Raynar caiu para o lado, respirando fundo. Resmy, apesar de estar suando frio, manteve-se ajoelhada, tentando não demonstrar fraqueza diante da irmã.

    Elara olhava para Ivar como se visse um estranho… mas um estranho em quem confiava cegamente. Nyara e Delilah, por sua vez, estavam em silêncio absoluto, sem ousar mover os lábios.

    Após alguns minutos, já com ambos recuperando a compostura, sentaram-se em um pequeno círculo iluminado por uma fogueira. O clima ainda era pesado, mas já não ameaçava estourar em conflito.

    Elara rompeu o silêncio.
    — Eu fugi porque não queria ser… um objeto político.

    Resmy suspirou, o olhar preso nas chamas.

    — Elara… todos nós crescemos com responsabilidades. Você sabe disso.

    — Responsabilidade não é prisão! — Elara retrucou. — Não é ser obrigada a casar com alguém que não escolhi, a abrir mão da minha liberdade… a viver como ornamento de cerimônia.

    Raynar manteve os olhos fixos no chão, mas falou:

    — A união entre nós não é sobre romance. É sobre estabilidade. Sobre manter nosso povo seguro.

    Elara balançou a cabeça.

    — Vocês nunca perguntaram o que eu queria… porque nunca importou.

    Os olhos dela se suavizaram, e ela então olhou brevemente para Ivar.

    — E agora eu tenho um propósito. Algo maior do que ficar sentada num trono e sorrindo para visitas. Eu preciso seguir Ivar porque… — respirou fundo — …porque ele é parte do que devo fazer neste mundo.

    Resmy ergueu uma sobrancelha.

    — Dever? Ou paixãozinha proibida?

    Elara a encarou com firmeza.

    — Talvez seja ambos. Ou talvez seja algo que nem eu entenda ainda. Mas eu sei o que não vou fazer: voltar agora.

    Raynar cruzou os braços, resignado.

    — Você fala como se tivesse escolha… — mas não havia mais força na voz dele.

    Resmy ficou em silêncio por longos segundos antes de finalmente dizer. — Tá… vamos fazer um acordo.

    Elara se manteve alerta.
    — Que tipo de acordo?

    Resmy apontou para a irmã com um dedo acusador.

    — Te darei três meses. Três ciclos completos da lua. — Depois disso… te levaremos de volta. Para encarar tudo… sua casa, sua linhagem, e seu destino. — Com ou sem esse seu novo… grupo curioso.

    Elara respirou fundo. Olhou para Ivar. Ele não disse nada — apenas ergueu suavemente a cabeça, como quem dizia a decisão é sua.

    Após alguns segundos que pareceram uma eternidade, Elara respondeu:

    — Quatro meses.

    Resmy estreitou os olhos.

    — Três.

    — Quatro. — repetiu Elara, firme. — E então poder vir tentar me buscar… se eu estiver viva.

    Raynar parecia querer protestar, mas a expressão dele mostrava que não tinha forças para discutir, não depois do que presenciara.

    Finalmente, Resmy suspirou.
    — Fechado. — Quatro meses.

    Elara assentiu.

    As duas aproximaram as mãos  e quando tocaram as pontas dos dedos, um brilho carmesim serpenteou entre elas, subindo até o céu em espirais.

    Um pacto.

    Um acordo sagrado entre descendentes carmesins.

    Quando terminaram, Resmy recuou, puxando o capuz novamente.

    — Então está decidido. — Voltaremos para busca-lá… em quatro meses. Não morra, maninha. Seria um saco ter que explicar isso pro papai.

    Raynar lançou um último olhar para Ivar… não de ódio, mas de algo próximo a temor.

    — Cuide dela. Se algo acontecer…

    — Eu cuidarei. Não se preocupe. — Ivar o interrompeu com um olhar frio.

    Raynar engoliu seco e recuou.

    Com um bater de asas, os dois Aasimars alçaram voo, desaparecendo no céu iluminado pela lua.

    O vento voltou a soprar.

    O silêncio parecia outro.

    Elara se virou para Ivar, o rosto suave e ao mesmo tempo firme.

    — Obrigada… por me proteger. — E desculpe… por isso tudo.

    Ivar apenas a observou, com aquele olhar que parecia atravessar mundos.

    — Você não tem que pedir desculpas por existir… ou por lutar por sua liberdade.

    Elara sorriu — um sorriso fraco, mas sincero.

    Nyara cruzou os braços e bufou.

    — Bom… isso foi intenso. Mas agora podemos entrar no navio? Ou mais alguém vai aparecer voando hoje?

    Delilah riu baixinho, ainda nervosa.

    — Espero que não… eu realmente espero.

    — Vamos entrar, precisamos descansar. — Ivar respirou fundo e se levantou. — Amanhã seguimos viagem.

    Eles caminharam até um corsário que recebia o pagamento de embarque.

    — Se vão entrar, serão dez moedas de ouro por pessoa. — Disse o corsário.

    — Mas que carooo… — retrucou Nyara.

    — Acha que é fácil velejar por essas águas, sua gata de rua? Existem monstros marinhos por aqui. Dez moedas de ouro cada, ou vão embora.

    — Certo, estão aqui. — Ivar coloca uma bolsa de couro com as mo das de ouro em cima da mesa. — Tudo certo?

    — Ah… Sim sim, está tudo certo. Vocês deram sorte, eram as últimas vagas. Podem embarcar, temos redes nas cabines.

    Eles então embarcam e se dirigem até as cabines na parte de baixo do navio. Lá haviam outras pessoas, talvez criminosos, refugiados, e escravos fugitivos, mas junto dessas pessoas estava um grupo de encapuzados. Não aparentavam perigo, mas todo cuidado era pouco.

    — Fiquem próximas e descansem bem, partiremos ao amanhecer… —Ivar diz enquanto se senta em uma cadeira. — Eu fico de vigia até lá, não se preocupem.

    Ambas assentiram e se deitaram nas redes.

    A noite estava tranquila e o mar calmo demais, mas todos sabiam… Nada seria o mesmo depois daquela noite.

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