Kyogre abriu os olhos, sua respiração estava pesada e irregular. O céu acima era um roxo desbotado, salpicado de nuvens densas que pareciam ameaçar desabar a qualquer momento. Ele estava deitado ao lado de Luwang, que roncava baixo, como um trovão abafado. Seu braço enfaixado pulsava de dor, e cada movimento fazia os músculos latejarem. — Que belo dia…

    Ele ergueu o olhar para o horizonte metálico, lembrando-se de sua missão. “Eu tirei o chip… mas sinto que eles ainda estão me observando. Droga, será que eu fiz a escolha certa?”, pensou.

    Luwang se remexeu ao lado dele, abrindo os olhos brilhantes que o observavam com uma curiosa mistura de lealdade e desconfiança. Kyogre estendeu a mão e acariciou a cabeça da criatura.

    — Você é a única que ainda me segue, não é, Luwang? — ele murmurou. — Talvez eu devesse ter sido mais como você. Fiel. Incansável. Sem dúvida.

    Luwang soltou um som grave, como se tentasse responder, e Kyogre sorriu levemente por trás da máscara, como um sorriso amargo. — Que gracinha.

    Ele se levantou com dificuldade, apoiando-se no chão retorcido. O vento pesado carregava uma sensação metálica que fazia sua pele arrepiar. Ele observou ao longe, no solo, pegadas marcadas. Sua visão era excelente e muito instintiva.

    — Quem passou por aqui?… — ele sussurrou.

    Enquanto isso, Nero e Lacefull avançavam pelas planícies desoladas. O coelho segurava o livro com força, seus olhos estavam se movendo rapidamente enquanto analisava o conteúdo. As gravuras e textos antigos pareciam mais vivos a cada leitura. Mas ainda indecifráveis. 

    — Não sei quem escreveu isso, mas quem quer que seja… eles sabiam de muita coisa. Eu deveria tentar estudar isso. Mas meu conhecimento ainda é muito leigo quando há gravuras — Lacefull comentou.

    Nero permaneceu caminhando para o centro do Império, a fim de encontrar novamente K’Tharr, apenas lançando olhares atentos ao ambiente. Ele parecia inquieto.

    O vento trouxe um som estranho, como um eco distante de passos. Lacefull parou, suas orelhas se movendo para captar o som.

    — Não estamos sozinhos — Ele falou, fechando o livro e deslizando-o para dentro de seu casaco.

    Eles continuaram em silêncio, atentos ao som que parecia ficar mais próximo. De repente, Nero parou e apontou para algo no chão: pegadas. Não humanas, mas profundas e irregulares, como se pertencessem a algo pesado e com patas afiadas.

    Lacefull franziu o cenho.

    — Isso… é bem diferente do comum, não acha?

    Nero deu um passo à frente, seus olhos estavam fixos nas marcas, mas antes que pudesse avançar mais, o som de um rosnado baixo e ameaçador fez Lacefull recuar.

    — Acho que até conheço esse barulho. 

    Kyogre observava à distância, suas mãos estavam tremendo levemente enquanto segurava a espada que já estava em más condições. Luwang estava enterrada no chão, pronta para atacar ao menor sinal. Ele sabia que Nero estava perto, mas algo o deteve. Ele sentiu uma energia negra consumir sua espinha. Havia mais alguém no meio daquela arena.

    — Kyogre… não acredito que vai querer lutar nestas condições — cochichou a voz sobre as orelhas do guerreiro.

    Kyogre se virou para trás, em busca daquela voz. Mas ela ainda continuava no ambiente, uma presença invisível mas ainda palpável. — O que você está fazendo, Veskar! Tentando me assustar? — falou.

    — Oh, já adivinhou quem seria? Pelo visto está acostumado com vozes em sua cabeça — falou, aparecendo com sua manta preta em volta de seu corpo.

    — Geralmente elas me dão dor de cabeça. E a sua é a que mais dói — debochou, segurando forte o punhal.

    Veskar estava presente em sua frente, e Luwang estava distante o suficiente para não perceber a outra ameaça. — Quanta arrogância em sua voz, caro lutador. Esqueceu que você ainda é meu subordinado?

    — Ahn? — perguntou Kyogre. — Não sou subordinado ou escravo de ninguém. Eu apenas sigo ordens, faço meu serviço por dinheiro — terminou.

    Veskar apontou seu dedo para ele, — É, mas quando se faz de forma mal feita, não merece ser pago. Sabe, houve uma reunião ontem e eu realmente fiquei chocado com algumas coisas. Você realmente tirou o seu chip que estava no seu pescoço para que não pudéssemos te rastrear.

    Kyogre não baixou sua guarda e apontou a ponta da lâmina contra Veskar. — Eu não ligo para o quê vocês falam ou deixam de falar de mim. Veskar… eu sempre senti algumas gotas de inveja de você contra mim. Está triste por perder seu posto de braço direito de Zero para R’Angel, e depois para mim?

    O olhar de Veskar foi de arrogância para frustração no mesmo instante, sua pupila dilatou de raiva ao ouvir aquelas palavras. Kyogre por outro lado riu baixo. 

    — Posso estar com um braço a menos, mas garanto que ainda consigo te deixar bem branco de tanto apanhar — desafiou.

    O ambiente estava tenso, o ar empoeirado aumentou a tensão de uma luta iminente. — Você é só um covarde, Veskar. Se não está contente comigo atualmente nesta missão, então deixo pra você mesmo terminá-la. Ma, não quero ouvi-lo gritando meu nome enquanto estiver à beira de sua morte — terminou, abaixando sua espada.

    — Seu garoto desgraçado… acha que não possuo poder para acabar com você e com aquela sombra juntos? Insolente.

    Suas mãos começaram a brilhar com pequenas faíscas de raios negros, que se intesificaram até os ombros de Veskar. — Vamos ver então, Kyogre. Me garanta que você não é apenas um falastrão.

    Os raios ficaram maiores, cobrindo o corpo de Veskar, e se erguendo até o céu com um estrondo de um trovão que foi possível ser escutado por Nero e Lacefull. — O quê é aquele raio? — perguntou Lacefull.

    Luwang que estava ao subsolo também sentiu o trovão sobre o chão, seus sentidos aguçados o fizeram voltar para o ponto em que seu mestre estava. — O que sente agora Kyogre? Se sente ainda forte? — perguntou o filósofo. 

    “Maldito mago, ele quer realmente me matar?”, pensou enquanto posicionou sua espada a sua frente.

    O raio poderoso de Veskar se expandiu, e em um toque de mágica o raio se dissipou e girou uma pequena faísca. “O quê!?”, pensou Kyogre.

    Veskar riu, e aquela faísca redonda do tamanho de uma bolinha de gude ficou parada em frente ao seu dedo. — Garotinho, eu tenho pena de você… achar que tem mais experiência que um velho mago? Idiota!

    Veskar então deu um toque naquela bolinha de relâmpago. No começo ela se moveu devagar. Kyogre sem entender, riu, — É esse seu poder, Veskar?— debochou.

    Veskar sorriu, e aquela bolinha lenta, em um piscar de olho, se transformou em um poderoso projétil com mais de 120km/h. Kyogre não teve tempo de reagir, mas a sorte estava ao seu lado. A poucos metros da bolinha atingir seu corpo, Luwang apareceu em sua frente.

    CABRUM!!!

    Luwang levou em cheio aquele poder, que causou uma tremenda explosão de raios poderosos. O corpo da barata animalesca explodiu, seu sangue jorrou por todo lado, como uma chuva.

    Kyogre estava intacto, exceto sua máscara, que tinha um leve trincado sobre o olho direito.

    Ele estava paralisado, assustado. Sua mente travou, ele estava tremendo, não de medo, mas sim de raiva. — Lu…wang — murmurou.

    — Hum? Acho que não foi tão forte quanto eu pensava — falou Veskar, debochando da morte do animal de Kyogre.

    O prédio em que estavam, apresentou rachaduras, e um desnível se espalhou. — O que aconteceu que está quieto, o gato comeu a sua língua? — indagou.

    O ar estava pesado, sufocante, preenchido pela poeira e o som de pedras desmoronando. A grande catedral metálica do Império Filophus, erguida como um monumento, agora se inclinava sobre seus alicerces, rangendo. O impacto do golpe de Veskar havia sido devastador, não apenas para o prédio, mas para o espírito de Kyogre.

    Parado ao lado do corpo destroçado de Luwang, o replicante permanecia em silêncio, com os olhos fixos na carapaça estilhaçada da criatura que por tanto tempo o acompanhava. Ele não chorava – não tinha lágrimas para isso. Mas sua dor transcendia palavras ou gestos.

    Veskar, com seu sorriso presunçoso, observava a cena enquanto a lâmina do inimigo em sua mão escorria com o sangue de Luwang. Seus olhos brilhavam com o prazer da traição.

    — Você deveria agradecer, Kyogre. Poupei você da fraqueza. Esse “bicho” não passava de um peso morto — zombou Veskar. — Agora, se você quiser sobreviver, talvez seja hora de escolher um lado.

    Kyogre se aproximou lentamente, seus movimentos eram quase mecânicos, mas carregados de uma intenção palpável. Sua máscara estava rachada, e a luz dos seus olhos era mais intensa do que nunca, uma chama que refletia a fúria incontrolável dentro dele. Ele não falou nada. Apenas respirou fundo.

    Nero e Lacefull emergiram das sombras, o cavaleiro negro imóvel como uma estátua e o coelho com os olhos arregalados, claramente desconfortável com a tensão crescente. 

    — O quê… aconteceu aqui? — murmurou Lacefull.

    Nero ergueu a cabeça para Veskar e Kyogre, mas não se moveu. Ele sentiu algo de errado entre os dois integrantes do Império Delta.

    Kyogre deu um passo à frente. Sua voz finalmente quebrou o silêncio, mas era baixa, quase um sussurro.

    — Ele era mais que meu companheiro… Ele era minha única família. Em meio aquele inferno robótico… Veskar.

    Veskar deu de ombros, claramente desinteressado na dor do replicante.

    — Ah, poupe-me do sentimentalismo. Você sabe que não há espaço para isso em nosso mundo. A força é tudo o que importa, e você não a possui!

    Kyogre riu, um som seco e perturbador que reverberou.

    — Força…? Vou te mostrar o que é força.

    Então aconteceu. A raiva reprimida explodiu em um instante. Kyogre se lançou contra Veskar com uma velocidade quase invisível. O chão rachou sob seus pés, e o impacto de sua lâmina foi como um trovão, jogando Veskar contra o pilar da catedral. O traidor grunhiu, surpreso com a força bruta que o replicante agora demonstrou.

    — Você acha que é forte porque traiu o Império? — rugiu Kyogre, avançando novamente. — Você não é forte. Você é um ser maldito. Um verme!

    Cada palavra era acompanhada por um golpe. O braço quebrado começou a latejar de dor, a faixa começou a se soltar, revelando um membro roxo, com um corte profundo que logo se abriu. Mas ele não parou. Ele esmagava Veskar com uma fúria animalesca, ele transformou cada ataque em um som lâminar difícil de desviar.

    “Que Replicante mais teimoso… mas ele é forte… muito forte”, pensou Veskar, que não conseguia tempo para reagir.

    Lacefull recuou instintivamente, mas não conseguiu desviar os olhos da cena.

    — Isso… isso é insano. Não é algo que devemos nos meter — exclamou, olhando para Nero, que permanecia imóvel, observando.

    Kyogre com um poderoso chute, lançou Veskar para o céu, num instante, o lutador apareceu por cima desferindo um corte em seu peito, lançando para o chão, abrindo uma cratera sobre o mármore. 

    Veskar, com um corte profundo em seu peito, cuspiu sangue. O filósofo tentou se levantar, mas foi em vão, o Replicante o imobilizou com o pé em seu peito.

    — Maldito! — gritou, grunhindo de dor, — mate-me logo, mostre que você não é diferente de mim! — gritava.

    Ele hesitou, mas com o outro braço quebrado e com uma tremenda dor, ele segurou o punhal da espada com as duas mãos com força. — Tsc… matar você seria um presente. Você viverá com vergonha, e todos saberão que o melhor Mago foi derrotado por um mero guerreiro com um indomável espírito de viver.

    Ele tirou o pé de cima do peito manchado de sangue de seu inimigo, e recuou. Veskar estava vivo, mas com poucas forças para conseguir se mover. Kyogre se virou para Nero e Lacefull. 

    — E vocês, saiam daqui! Estou sendo misericordioso.

    — E quanto a você? — perguntou Lacefull, hesitante.

    Kyogre não respondeu, ele caminhou até o corpo de Luwang. O local começou a estremecer, prestes a desabar, mas o Replicante não deu importância para aquele momento.

    Lacefull tentou argumentar, mas Nero o segurou, como se quisesse dizer que naquele momento não iria valer a pena. O coelho olhou para o guerreiro em luto, ajoelhado em frente ao seu fiel amigo. O prédio começou a desabar.

    Lacefull então se teleportou junto com Nero antes que fosse tarde. Veskar fechou seus olhos, sendo o primeiro a desabar junto com o prédio, e Kyogre logo em seguida, em meio a destruição. — Meu amigo… irei reencontrá-lo.

    Distante dali, os dois viajantes observavam a decadência da Catedral sendo engolida pela poeira. Não sobrou nada. Apenas resquícios de uma batalha pela vida.

    — É realmente triste… — falou Lacefull.

    Nero o encarou, apontando o dedo. — Você ainda acha que ele deveria viver?  — perguntou Lacefull. 

    Nero acenou com a cabeça, como um sim. 

    — Não… — falou Lacefull. — Talvez devêssemos deixá-lo partir. O destino dos dois era para ser travado nesse lugar, talvez. Não devemos mudar o destino…

    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.

    Nota