Capítulo 12 - Perspectivas
Acordei com os ruídos matinais no hangar da Hammerstar, meu pescoço rígido de tanto dormir encostado na antepara da Peregrina. As luzes da nave haviam mudado para modo diurno, criando um contraste estranho com o crepúsculo eterno do lado de fora. Meu tablet marcava 0630 no horário local, e meu corpo sentia cada minuto da maratona de inspeção de ontem.
— Gente! Olha só o que eu achei, um engenheiro! — a voz de Tài ressoou enquanto ele descia para o convés inferior, jogando-me um pão que vagamente lembrava um croissant. — Os veteranos da Universidade de Zhankya sabem como festejar. Você perdeu uma noite e tanto.
Eu me espreguicei, estremecendo quando minhas articulações protestaram. — Alguém tinha que garantir que essa belezura não fosse explodir no meio do voo — brinquei, esperando que o humor disfarçasse meu cansaço.
— Enquanto você mexia nos canos, nós estávamos curtindo a vida — acrescentou Gulliver, seguindo de perto Tài. — Tinha uma garota que conseguia recitar toda a tabela periódica de cabeça enquanto plantava bananeira. Isso sim é o que eu chamo de talento!
— Parece… educativo — comentei, dando uma mordida no surpreendentemente bom doce.
— Educativo? Foi lendário! — os olhos de Gulliver brilhavam. — Tinha um jogo de bebida onde você tinha que associar estruturas moleculares. Cada erro significava um shot de algo que eles chamavam de “suco de nêutron”. Ainda não sinto minha língua.
Tài balançou a cabeça, sorrindo. — Você devia ter visto ele tentando explicar entrelaçamento quântico após o quarto shot. Tenho certeza de que ele inventou um novo ramo da física.
— Meu favorito pessoal — interveio Gulliver, descartando a provocação de Tài com um aceno casual de mão — era um jogo de IA onde ela projeta suas memórias em uma parede. Todos tentam adivinhar a história por trás delas.
— E por que, exatamente, alguém gostaria de fazer isso? — perguntei, erguendo uma sobrancelha.
— Em teoria, você escolhe o que compartilhar — Tài explicou. — Mas depois de algumas bebidas, se transforma na máquina de vergonha alheia mais eficaz da galáxia.
A conversa matinal continuou por alguns minutos enquanto eu apreciava meu café da manhã. Tài e Gulliver subiram de volta para seus postos enquanto eu permaneci no convés inferior, terminando o relatório.
Cirakari foi a última a entrar na nave, parecendo impossivelmente revigorada, apesar de ter, presumivelmente, participado das festividades da noite passada. Seu olhar agudo encontrou o meu, e eu instintivamente me endireitei.
— Relatório, Fred?
Pigarreei. — Concluí uma inspeção completa de todo o sistema de gestão térmica. Todos os componentes estão dentro das especificações, e não há sinais de danos físicos ou desgaste. — Mostrei os dados de diagnóstico em meu tablet, mantendo-o estável enquanto apresentava as descobertas. — A rede de tubulações, os trocadores de calor e todos os sistemas auxiliares estão funcionando normalmente.
Cirakari assentiu lentamente. — A análise de software da Broodmother sem desvios. Nenhuma anomalia nos algoritmos de controle ou protocolos do sistema.
— Então está confirmado — eu disse, encontrando seu olhar. — A falha foi inteiramente meu erro.
Um breve silêncio se instalou entre nós, contraposto apenas pelo murmúrio distante das vozes de Tài e Gulliver flutuando do convés superior.
Cirakari quebrou o silêncio com uma voz mais suave do que o usual. — Sobre ontem…
— Sem problemas — interrompi, ficando um pouco mais ereto. — Você estava certa. Eu deveria ter me apresentado imediatamente quando suspeitei do meu erro.
Ela inclinou a cabeça ligeiramente em uma expressão indecifrável. — Não era apenas sobre seguir o protocolo — disse de maneira calma. — Erros acontecem. Mas quanto mais cedo os enfrentamos, mais fácil é corrigi-los.
— Eu entendo — respondi. — Não acontecerá novamente.
Algo cintilou em seus olhos; respeito, talvez, embora fugaz, mas ela manteve sua compostura. Seu olhar varreu a sala, capturando a atenção do resto da equipe.
— Pessoal— ela começou. — Recebemos notícias da Broodmother. Há um tráfego pesado de reabastecimento lá em cima, e vamos pegar um atraso de pelo menos oito horas antes de conseguirmos uma vaga para atracar.
Tài gemeu de seu assento no console. — Oito horas? Fantástico. Mais tempo para contemplar os mistérios da vida enquanto olho para paredes de metal.
— Ou — Gulliver interveio com um sorriso aparecendo em seu rosto — poderíamos finalmente resolver o debate sobre quem é melhor em projeção orbital preditiva: eu ou a IA da nave.
— A IA — Cirakari respondeu secamente, sem hesitar.
Gulliver fingiu um suspiro dramático, segurando o peito. — Cirakari, estou ferido. Depois de tudo que passamos, você ficaria ao lado de uma máquina?
— Eu fico ao lado da eficiência — ela retrucou com um leve sorriso surgindo nos cantos dos lábios.
Tài me deu um aceno. — O que acha, Fred? O ego do Gulliver ou algoritmos frios e rígidos?
Dei de ombros, grato pelo tom mais leve na sala. — Como engenheiro, é difícil resistir a algoritmos frios e rígidos.
Gulliver levantou as mãos em falsa exasperação. — Até você, Fred?
Cirakari levantou a mão, silenciando a conversa. — Oito horas não é muito, mas já que temos tudo resolvido por aqui…
— Mais folga em terra1? — Gulliver animou-se esperançoso.
— Sim, mais folga em terra — confirmou Cirakari. — Tài, Gulliver, mostrem ao nosso engenheiro. Ele já viu o suficiente das entranhas da Peregrina para uma vida inteira.
— O Primeiro Habitat! — Tài exclamou, de repente animado. — Sempre quis ver.
✹✸✶✸✹
Enquanto eu descia para Zhynka, a vista distante da colina se dissolveu em uma paisagem viva. As veias luminosas que eu tinha visto lá de cima eram passarelas de pedestres, suavemente iluminadas com tiras bioluminescentes que pulsavam em ritmo com o coração da cidade.
De perto, os edifícios se mostraram mais orgânicos do que eu imaginava. Suas superfícies irradiavam calor sutil de sistemas térmicos integrados. As plantas não eram meras decorações, mas uma rede simbiótica, como Tài explicou animadamente, elas foram geneticamente modificadas para produzir oxigênio em larga escala.
O ar carregava uma nota terrosa, diferenciando-se apenas pelo ozônio da aurora crepuscular. Os cidadãos se moviam como um fluido através de canos, suas roupas ecoando a estética natural da cidade. Um vendedor oferecia raízes apimentadas de um carrinho bio-sintetizado, enquanto crianças brincavam nos parques.
— O local do primeiro pouso — anunciou Tài ao nos aproximarmos de uma estrutura maciça que dominava o centro da cidade — O Primeiro Habitat! — Tài explicou, falando como um guia turístico. — Quando os Overseers enviaram os colonos pela primeira vez, este foi o abrigo deles. Toda a cidade cresceu em seu entorno.
— Difícil acreditar que esta coisa carregou trezentas pessoas — eu murmurei, olhando para a estrutura.
— Trezentas e doze — corrigiu Tài. — Além de suprimentos, equipamentos e material genético suficiente para começar uma civilização. — Ele já tinha incorporado o guia turístico por completo, gesticulando entusiasmado enquanto falava. — Vê essas marcas no casco? São da entrada atmosférica. Eles as mantiveram sem conserto como um lembrete da jornada.
Entramos pela câmara de descompressão original, agora convertida em uma entrada moderna. Dentro, displays holográficos mostravam cenas dos primeiros dias da colonização. Tài fornecia um comentário contínuo, seu conhecimento parecia interminável.
— Os primeiros cinco anos foram os mais difíceis — explicou ele enquanto passávamos por um display mostrando a construção inicial dos processadores atmosféricos. — Eles tiveram que estabelecer o suporte básico de vida enquanto construíam a infraestrutura para a expansão. Cada suspiro de ar tinha que ser fabricado, cada gota d’água reciclada.
— Olhe para esses sistemas de suporte de vida — maravilhei-me, examinando a maquinaria. — Eles estavam usando tecnologia que pareceria mágica na Terra, mas em comparação com o que temos agora…
— O progresso avança — concordou Tài. — Embora às vezes me pergunte se realmente avançamos ou apenas complicamos as coisas desnecessariamente.
Gulliver, que estava suspeitosamente quieto, finalmente gemeu. — Mais uma velharia e eu me jogo para fora de uma câmara de descompressão.
À medida que saímos do museu, decidi abordar algo que estava me incomodando. — Gulliver, por que você é tão rápido em sugerir rendição? Toda vez que as coisas ficam difíceis, você menciona isso.
Ele deu de ombros. — Olhe ao redor. Pessoas vivendo suas vidas, trabalhando, estudando, se apaixonando. Você acha que elas se importam com quem está no comando? Esta guerra é apenas pessoas poderosas jogando com nossas vidas.
— Isso é… surpreendentemente filosófico vindo de você — admiti.
— O povo comum só quer viver sua vida — continuou ele. — Seja a Aliança ou os Overseers dando as ordens, a gravidade ainda puxa para baixo, e as contas ainda precisam ser pagas.
Tài balançou a cabeça. — Você está presumindo que os Overseers querem nos governar. Não acho que esse seja o jogo deles.
— O que você quer dizer? — perguntei.
— Pense nisso. TRAPPIST-1 está a 42 anos-luz da Terra. Manter controle a tais distâncias é impraticável, precisamos de 84 anos para enviar uma mensagem e ouvir sua resposta. Não, se eles vencerem, provavelmente destruirão tudo aqui.
O pensamento me deu um calafrio. — Mas por quê?
— Porque existimos — disse Tài simplesmente. — Somos a prova de que a humanidade pode sobreviver sem eles. Isso já é uma ameaça suficiente.
— Quero dizer… por que eles colonizaram o TRAPPIST-1 em primeiro lugar?
— Bem, eu gostaria de ter a resposta — ele respondeu.
Continuamos a vagar, visitando mais marcos e experimentando diferentes tipos de comida de rua. Nossa excursão foi interrompida pela voz de Cirakari em nossos comunicadores. — Hora de encerrar o turismo, pessoal. Temos autorização de lançamento em noventa minutos.
✹✸✶✸✹
De volta à Peregrina, a atmosfera se transformou do casual para profissional em segundos. A voz de Cirakari se espalhou pelo sistema de comunicação da nave, nítida e autoritária.
— Lista de verificação pré-lançamento iniciada. Todos à postos, reportem seu status.
— Sistemas de navegação online — reportou Tài. — Vetor de voo calculado e validado.
— Sistemas de armas seguros e travados — acrescentou Gulliver. — Toda a munição devidamente armazenada.
Realizei minhas próprias verificações, desta vez garantindo que estava seguindo os procedimentos corretos. — Engenharia reporta todos os sistemas nominais. Sistema de gestão térmica mostrando tudo ok para decolagem.
— Controle Hammerstar, aqui é a Peregrina, principal — a voz de Cirakari estava firme e profissional. — Solicitando autorização para lançamento vertical.
— Peregrina, Controle Hammerstar. Autorizado para lançamento no Vetor Sete. Condições meteorológicas ideais, ventos a três nós do noroeste.
— Motores auxiliares nominais — reportei, observando os níveis de potência subirem constantemente. — Sistemas térmicos respondendo normalmente.
— Dez segundos para lançamento — anunciou Cirakari. — Todos a postos, segurem-se para aceleração.
A contagem regressiva prosseguia em minha cabeça enquanto eu monitorava os parâmetros do motor. A vibração familiar crescia através da estrutura da nave, mas desta vez eu sabia exatamente o que cada tremor significava, o que cada indicador deveria mostrar.
A Peregrina levantou voo com uma explosão controlada de energia, subindo constantemente através do céu crepuscular de Vielovento. O pôr do sol eterno finalmente começou a mudar conforme subíamos, a atmosfera se rarefazendo ao nosso redor até que as estrelas se tornaram visíveis nos monitores.
— Trajetória nominal — reportou Tài. — Altitude cinquenta quilômetros.
— Sistemas térmicos funcionando conforme esperado — acrescentei, permitindo-me um pequeno sorriso de satisfação.
A ascensão continuou suavemente e logo estávamos em órbita, aproximando-nos da imponente Broodmother. Enquanto manobrávamos em direção ao nosso porto de atracação designado, Cirakari recebeu uma mensagem.
— Bem — disse ela após encerrar o canal — parece que o Grão-Almirante Baraka quer discutir nossa próxima missão pessoalmente. — Ela se virou para nos encarar. — O que quer que aconteça a seguir, vocês todos tiveram um desempenho excelente hoje.
— Isso significa que teremos outra folga em terra em breve? — perguntou Gulliver esperançosamente.
— Vamos ver o que o Almirante tem a dizer primeiro — respondeu Cirakari, mas havia diversão em sua voz.
Quando as garras de atracação se engajaram e a nave se estabilizou em seu berço, refleti sobre os últimos dias. Eu cometi erros, sim, mas também aprendi com eles. Mais importante, estava começando a entender meu lugar nesta tripulação, nesta nave, neste estranho novo mundo em que me encontrei.
— Ei, Fred — chamou Gulliver enquanto estabilizamos nossos postos. — Da próxima vez que estivermos em um planeta, mostro-lhe as verdadeiras atrações. Deu de baboseira histórica.
— Desde que não envolva jogos de bebida de física quântica — respondi.
— Sem promessas — Gulliver sorriu. — Mas ouvi falar de um lugar que serve algo chamado “soco de pósitrons”…
A voz de Cirakari interrompeu nossa conversa. — Certo, pessoal. Preparem-se para o debriefing. Algo me diz que nossa próxima missão não será tão simples quanto essa última.
Olhando ao redor para meus companheiros de tripulação, ou melhor, meus amigos, percebi que, apesar de todos os desafios e incertezas que estavam por vir, não havia outro lugar onde eu gostaria de estar. O pôr do sol perpétuo de Vielovento ficou para trás, mas de alguma forma, eu sabia que voltaríamos. Afinal, todo pôr do sol, mesmo que eterno, promete um novo amanhecer.
- Nota: Termo usado por marinheiros para denotar o periodo fora de serviço enquanto aguardavam em terra.[↩]
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