Capítulo III: Mesa de Interrogatório
O chefe de cozinha disse que já eram quase onze horas e pediu para que o deixassem preparar o almoço. Charlie não se importou e só o mandou responder suas perguntas enquanto procurava, junto de seu pupilo, o suposto abridor de latas.
— Por que continua preparando a comida se a Rainha suspeita que você tenha envenenado o Rei? — iniciou o interrogatório o detetive, enquanto olhava atrás de um armário.
— Bem… Vossa Majestade trancou a enfermaria real… e agora o mordomo prova tudo o que preparo antes de ser servido. — respondeu ele, enquanto enchia uma panela com a água de um barril.
— Quanto trabalho! Não seria mais fácil contratar outro cozinheiro? — perguntou Charlie, já sabendo a resposta.
— O reino não tem dinheiro para isso. Já mandaram quase todos os cozinheiros embora. Os últimos que restaram somos eu e Cecília, mas agora faço tudo sozinho, pois ela virou babá desde que a Duquesa Domitila chegou com seu bebê…
— Triste — comentou Charlie, verificando algumas gavetas. — E como está a situação do seu salário?
— Três meses, três meses sem receber! Eles sempre pedem para ter paciência, pois “o reino está passando por um momento difícil”, mas continuam dando suas festas e gastando com coisas fúteis como roupas e joias! — desabafou Romério, cortando alguns tomates.
— E não pensa em cobrar? — questionou Lance, enquanto olhava dentro de alguns potes.
— Infelizmente, sou covarde demais para isso — lamentou-se o pequeno homem. — Tenho medo de ser despejado sem nada, igual aos outros que tentaram…
— Mas para tentar assassinar o Rei você teve muita coragem, não é?! — acusou Charlie, verificando dentro de alguns recipientes de vidro.
— O quê?! — assustou-se Romério, quase se cortando por acidente. — E-eu… eu já disse que não fiz nada. Eu…
— Está bem! Está bem! — disse o detetive. — Pare com a ladainha e diga o que o Rei comeu no dia do atentado.
— É… fiz pato assado, lagosta na manteiga, ovos cozidos, sopa de lentilha, tortas de maçã, pães, queijo de…
— E quem serviu toda essa comida? — perguntou Lance, averiguando dentro de umas panelas prateadas.
— Eu mesmo. As camareiras puseram a mesa, mas fui eu quem serviu todos os pratos. — respondeu ele, pegando alguns rabanetes de um recipiente de madeira.
— E reparou se todos comeram as mesmas coisas que o Rei? — questionou Charlie, verificando debaixo de um armário.
— Hmm… a Duquesa não chegou a provar nada. Disse que estava com enjoos e se retirou para seus aposentos com seu bebê. A Rainha comeu bem pouco, como de costume. Já o Rei, com seu tremendo apetite, devorou praticamente tudo sozinho.
— Ok… já tenho tudo o que preciso — disse o detetive, se alongando e estalando as costas —; então, se ainda tiver algo a acrescentar, diga logo!
— …Teve um certo acontecimento… que Vladimir e a Rainha não levaram a sério…
Ele fez uma pausa aos rabanetes que cortava, soltou um longo suspiro e então prosseguiu:
— Sempre faço um chá de gengibre após o almoço somente para o Rei; porém, naquele dia, resolvi levar um pouco para a Duquesa para ajudar com seus enjoos. Deixei o bule aqui na mesa e fui até o quarto de Domitila; quando voltei, percebi que o bule estava aberto, sendo que eu nunca o deixo destampado… nunca! Eu disse que talvez o criminoso tenha aproveitado esse momento para envenenar o chá, mas não acreditaram na minha palavra…
Charlie não comentou nada sobre o último testemunho de Romério. Apenas pediu a Lance que continuasse procurando por mais um tempo. Depois, pegou sua maleta e se dirigiu à sala de jantar, onde todos o esperavam, sentados à grande mesa, exceto os dois soldados armadurados, que permaneciam de pé um ao lado do outro.
— Muito bem, já encontrei uma forma de capturar o culpado! — anunciou o detetive, chamando a atenção de todos. — Para resolver este enigma, apenas preciso descobrir onde o primeiro crime fora cometido; certamente o covarde envenenador estava próximo…
Charlie largou sua maleta, pegou novamente seu caderno e caneta, abriu na terceira página e escreveu: “Esta é a rota certa?”. Dessa vez sem olhar para o papel, pois sua visão estava fixa na mulher trajada com um longo e belo vestido roxo. Ele caminhou lentamente até ela enquanto guardava os objetos nos locais de costume.
— Então, senhorita Domitila… — iniciou ele o interrogatório. — No almoço de dois dias atrás… em qual prato pôs o veneno antes de voltar para seu quarto fingindo estar com enjoos?
— O quê? — assustou-se a Duquesa. — E… eu… não coloquei nada na comida de ninguém! Naquele dia eu realmente passei mal…
— Passou mal, é?! E onde está o seu filho neste momento?
— M-mas o quê!? Meu, o que meu filho tem a…
— Não gagueje! Responda a pergunta!!
— Meu filho está dormindo no quarto!
— Que tipo de mãe deixa seu filho sozinho sabendo que há um assassino à solta no recinto?! — questionou ele, batendo forte na mesa. — Mas é claro que você não está preocupada, pois é você, sua vaca, você é a própria assassina! — apontou para ela. — Guardas!!
— Que ultraje! — exaltou-se Domitila, se levantando da cadeira. — Deixei a porta trancada!.. E se duvida de minha palavra, pergunte a Cecília, que ficou o tempo todo comigo naquele dia! — acrescentou ela, apontando para a mulher sentada ao lado, usando um simples vestido preto e azul escuro.
Charlie outra vez parou o avanço dos soldados erguendo o braço esquerdo; olhou e encarou a cozinheira, esperando uma resposta.
— É verdade, senhor! A Duquesa não saiu do quarto em momento algum após o almoço — confirmou ela timidamente. — Ficamos o tempo todo tentando fazer o bebê dormir.
“Droga!”, pensou Charlie. “É hora do plano B.” Nesse momento, a porta da cozinha se abriu, e dela saiu o pupilo trazendo uma xícara de chá. Ele a entregou ao detetive e ficou próximo.
— Não encontrei nada, Chefe!
— Tudo bem, Lance, o importante é que você chegou na hora certa de ouvir a minha mais nova hipótese — respondeu ele, dando um gole na bebida. — Isso é o quê?
— Boldo, de acordo com Romério. — respondeu o pupilo. — E qual seria sua nova hipótese, Chefe?
Charlie deu outro gole no chá, depois apontou para as irmãs e proferiu:
— Clarisse e Alisse armaram tudo! Não suportando fazerem sozinhas o trabalho de dez camareiras, sem nem ao menos serem pagas por isso, decidiram vingar-se. Alisse envenenou o Rei para que não conseguisse chamar por ajuda, enquanto Clarisse assassinou-o a sangue frio. Resumindo, foi isso que aconteceu…
— Não pode ter sido Clarisse — falou abruptamente um rapaz, se levantando da cadeira. — Eu estive o tempo todo com ela na biblioteca.
— Então parece que Alisse fez tudo sozinha… — retrucou o detetive, dando calmamente outro gole.
— Isso é ridículo! Você é o pior detetive que já existiu! — gritou a acusada, também se levantando de seu assento. — Você só sai imputando crimes às pessoas sem ter nenhuma prova…
— Relaxa — interrompeu Charlie —; por que tanta agressividade? Está escondendo algo, mocinha?
— Claro que não, seu idiota! Só é revoltante você me acusar de tentar contra a vida do Rei; enquanto eu, sozinha, acabava com meus braços e costas lavando a roupa de todos naquela maldita tina!
— E ao invés de pedir demissão, você achou melhor matar o Rei? — perguntou calmamente o detetive, erguendo uma sobrancelha.
— Eu não fiz nada!! — gritou ela, dando um murro na mesa, com o rosto vermelho de raiva.
Todos ficaram perplexos com o que acabara de acontecer; nem a Rainha conseguiu ter alguma reação.
— Calma! Calma! Toma aqui — disse o detetive, entregando sua bebida a ela. — É boldo, você está muito exaltada… olha o clima que deixou no ambiente!
A moça de avental pegou a xícara e voltou a se sentar, calada e de cabeça baixa, completamente envergonhada. Charlie caminhou até o rapaz que defendeu Clarisse, parou em seu lado e lhe transferiu o interrogatório:
— E você, quem é?
— Sou Jiovani, o jardineiro… — respondeu ele, visivelmente nervoso.
— Hmm, e o que o jardineiro fazia na biblioteca?
— É… é que… eu estava com as costas doloridas e resolvi descansar, só um pouquinho, em um lugar tranquilo — justificou-se Jiovani, tentando evitar contato visual com a Rainha. — Clarisse me pegou dormindo enquanto fazia sua faxina, mas prometeu não contar nada. Então, para retribuir, resolvi ajudá-la a limpar a biblioteca. Não saímos…
— Você estava dormindo em horário de serviço?! — interrompeu a Rainha, furiosa.
— Mil perdões, Vossa Majestade — falou Jiovani, timidamente. — Mas, assim como Alisse apontou, está muito difícil para os criados que ficaram, fazerem todo o trabalho dos que foram — reiterou ele, um pouco mais confiante. — Vocês optaram por demitir alguns trabalhadores essenciais como os meus irmãos, mas mantiveram outros menos essenciais, como o bobo da corte e o organizador real. Sinceramente, não entendo esse tipo de decisão…
A Rainha até tentou achar uma justificativa plausível para contra-argumentar; mas antes que conseguisse, o comentário de Charlie já havia sido feito:
— Você tem um excelente ponto, jovem! — disse ele, colocando a mão no ombro do rapaz. — Eu também odeio aquele bobo da corte! Mas escute: o que seus irmãos faziam aqui exatamente? E quando foram demitidos?
— Faz uma semana, senhor! — respondeu Jiovani. — Eles também eram jardineiros… são os dois guardas que estão de plantão na porta dos aposentos reais — acrescentou ele. — Foram contratados de volta após o ocorrido, porém, agora para proteger o Rei.
— Espera aí… como assim contrataram dois jardineiros para proteger o Rei? — questionou o detetive. — Quem foi o responsável por tamanha estupidez?!
— O mesmo responsável por demitir todos e manter o bobo da corte e o organizador real — respondeu um homem trajando um fino terno preto, levantando de seu assento e se curvando em uma singela reverência —, eu mesmo, Leon G. Aguiar, o tesoureiro real.
— Então é você o culpado por o reino estar nesta crise? — indagou Charlie, arqueando uma sobrancelha.
— Não, senhor! — negou ele calmamente. — Sou aquele que está lidando com esta crise da melhor forma possível.
— Manter o organizador que organiza e o idiota do bobo da corte não parece-me a melhor forma de lidar com esta crise…
— Concordo com você, camarada detetive! No entanto, o Rei não quis abrir mão do seu bobo da corte e nem a Rainha do seu organizador real! — respondeu o tesoureiro. — E sobre a questão de contratar os jardineiros como guardas; foi porque eles foram os únicos que aceitaram o serviço por o valor escasso que o reino está podendo pagar no momento.
— Leon! — interveio a Rainha. — Não fique falando de assuntos pessoais na frente de todos!
— Perdão, Vossa Majestade — desculpou-se em uma reverência —, mas foi a senhora quem pediu para que cooperássemos com o detetive; só estou seguindo suas ordens.
— Onde você estava na hora do atentado, insolente?! — perguntou Charlie, antes que a Rainha pudesse falar algo.
— Perdão se soei insolente, Majestade! Não foi minha intenção — defendeu-se o tesoureiro, solenemente. — E respondendo sua pergunta, detetive: fiquei o tempo todo em minha sala; fazendo cálculos, verificando e assinando documentos e coisas do tipo… posso lhe mostrar, caso tenha paciência para lidar com papeladas, claro! — finalizou ele, sorrindo gentilmente.
— Já que insiste tanto… eu aceito! — respondeu Charlie. — De pé, pessoal, vamos para a sala do tesoureiro!
Leon não esperava esta resposta, mas mesmo assim não hesitou em levar a todos, exceto Romério, que continuou preparando o almoço.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.