Tiveram de ficar todos aglomerados, pois o local claramente não fora projetado para comportar dezessete pessoas, e além disso, ainda tinham que dividir o espaço com a coleção de aves empalhadas, enfeitando as paredes do recinto.

    Dentre flamingos, papagaios, gralhas, canários e periquitos, o que mais chamou a atenção de Charlie foi uma pequena, porém imponente, águia-careca, com o peito estufado; sobre a bela mesa polida do tesoureiro.

    — Grande coleção, senhor Leon… — comentou o detetive, observando os animais. — Você mesmo quem matou-as?

    — Ah, obrigado! — agradeceu ele, enquanto reunia os papéis espalhados sobre sua mesa. — E; praticamente! Foram quase todas abatidas por mim, quando mais jovem… — estendeu os papéis para Charlie. — Estes são todos os documentos que estive mexendo nos últimos dias.

    — Então você costumava caçar aves… — disse o detetive, soltando sua maleta e pegando os documentos. — Já matou muitos pombos, senhor Leon?

    — Pombos?! — questionou ele, soltando uma risada fraca.  — Por que eu mataria pombos?

    — Ora, por que você ‘não’ mataria pombos!? — retrucou Charlie, se sentando na mesa, sem tirar os olhos dos papéis. — São umas pragas! Não acha que deveria variar um pouquinho suas vítimas?

    — Creio que seja um pouco tarde… não caço mais. Eu costumava fazer isso com Vossa Majestade, o Rei, mas depois de ele ver minha aptidão para lidar com números, me encarregou de cuidar das finanças do reino. Então não tive mais tempo. — respondeu Leon, disfarçando com um falso sorriso seu visível incômodo em ver o detetive sentado em sua reluzente mesa.

    — Ressentimento? Foi por isso que decidiu matá-lo? — questionou ele, passando e olhando atentamente as folhas em suas mãos.

    — Não diga essas coisas nem brincando, senhor — negou o tesoureiro, mantendo o mesmo tom de voz. — Raugust é meu amigo de infância. Jamais teria coragem de fazer algum mal a quem considero um irmão, jamais.

    — Você é bem persuasivo, Leon — confessou Charlie, pondo os papéis de volta à mesa. — Não gosto de você!

    O detetive sacou seu caderno e caneta, abriu na quarta página e escreveu: “Qual direção deve-se olhar?”. Depois os retornou mais uma vez aos bolsos e cruzou os braços soltando um longo suspiro.

    — Lance?

    — Diga, Chefe!

    — Esse caso está bem complicado, não acha?! Tem algo em mente?

    — Tenho sim, Chefe! Percebi que há um farsante entre eles!

    De repente, todos estavam olhando uns para os outros, espantados.

    — Não esperava menos do meu querido pupilo… vamos, desenvolva!

    — Eu perguntei algumas coisas sobre o escudeiro do rei para Romério, quando ficamos a sós na cozinha, e o que fiquei sabendo é que — apontou para o rapaz de cabelos longos no meio do grupo —, este homem é um farsante mentiroso! — acusou Lance.

    Todos se viraram para o jovem escudeiro; que estava nesse momento estático, de olhos arregalados.

    — O cozinheiro disse que este mentiroso se chama Tomel Fidal — prosseguiu o pupilo. — Mas já o vi se apresentando em um estabelecimento que frequento. Seu nome verdadeiro é Thiago Florêncio; é um músico, e dos ruins! Foi demitido quando o dono do bar descobriu que ele já havia sido preso por dar golpes nas pessoas!

    — Ora, ora, ora… quem diria… — disse Charlie, se levantando da mesa. — Então você é um amante da música, Lance? Você é uma caixinha de surpresas, sabia?! Vamos, conte-me, por que diz que o rapaz é um músico ruim?

    — Por sua voz melancólica e desafinada, Chefe! Era impossível não sentir um embrulho no estômago quando ele abria a boca!

    — Coitado! Não acha que está pegando pesado demais? Com quem você aprende essas…

    — Senhor Mighnovit! — chamou a Rainha em voz alta. — Você ouviu a parte de este homem ser um criminoso?! Que tal falar sobre isso?!

    — Tenha calma, Alteza — respondeu Charlie. — Eu ouvi sim, e já ia tratar disso — acrescentou ele. — Então, músico horripilante, tem algo a dizer em sua defesa?

    — Me desculpem! Por favor, me desculpem! — implorou o rapaz, apertando as mãos. — Eu realmente já fui preso, mas agora mudei de vida. Só menti sobre meu nome porque sempre me demitem quando ficam sabendo do meu passado. Juro que é só isso!

    — Bem… parece que voltamos à estaca zero. — declarou Charlie, enquanto suspirava; cruzando os braços novamente.

    — Como assim “estaca zero”?! — questionou a Rainha. — É só isso? Não voltará a interrogá-lo agora que sabe sobre seu passado criminoso?!

    — “Voltar” a interrogá-lo? — indagou o detetive. — Essa é a primeira vez que falo com ele. Além disso…

    — Espera aí, senhor detetive… — interrompeu ela, suspirando e tentando se manter calma. — Então você ainda não havia falado com ele!? — franziu as sobrancelhas. — Não acha que o primeiro a ser interrogado em uma cena de crime como esta, deveria ser justamente a pessoa que encontrou a vítima?!

    — Foi ele quem encontrou o Rei? — questionou Charlie espantado. — Mas Lehandro disse-me que havia sido Clarisse.

    — Não, não! — negou o médico, dando um passo à frente. — Eu falei que a camareira foi apenas à minha sala me chamar. Nunca disse que ela havia encontrado o Rei, senhor!

    — Puxa vida! — disse Charlie, coçando o queixo. — Parece que deduzi de forma errônea… mas acontece! A lição que podemos tirar disso é que: Até um gênio como eu, raramente, pode cometer falhas também!

    — Então, detetive! — exclamou a Rainha impaciente. — Esqueça isso, apenas faça o favor de interrogar este bandido criminoso!

    — Mas ele já disse que mudou de vida, Alteza! O que mais você quer? — retrucou Charlie. — Lembre-se que não devemos julgar as pessoas por suas ações. — ensinou, apontando o dedo indicador para cima, tal como um professor.

    — Você só pode estar brincando comigo! — respondeu ela, se exaltando. — Você julgou a todos, inclusive a mim, Sua Majestade, e agora vem com essa conversa!? — fechou o cenho. — Me diga, detetive! Que tipo de critérios você usa para julgar alguém?!

    — Essa é uma excelente pergunta, Alteza! — declarou ele, pressionando levemente a ponta de seu queixo. — Eu apenas sigo meus instintos de detetive fora da curva! Sempre dá certo.

    — Você é uma piada mesmo… — debochou a Rainha, já com uma aparente veia em sua testa. — Seus instintos, é? Os mesmos que deduziram errado quem havia encontrado meu marido!? Os mesmos que suspeitaram da pessoa que o contratou!? Esses que só sabem fazer acusações sem fundamentos e que até o momento não descobriram nada de útil?! — julgou ela, se aproximando lentamente de Charlie. — É com esses instintos chulos que pretende achar o culpado, seu hipócrita?!!

    — Com todo respeito, Alteza… — iniciou o detetive, respirando fundo. — Está vendo-me questionar seu nível de inteligência pelo jeito horrível que lida com a crise do reino? Está vendo-me duvidar de seu caráter em demitir seus funcionários sem nem ao menos remunerá-los? Está vendo-me desconfiar de sua moral por gastar o que o reino não tem em vestidos, joias, festas e banquetes enquanto recusa-se a pagar os salários atrasados das pessoas que servem-lhe? Não, não é?! Então você não precisa saber dos meus métodos. Eu achar o culpado no fim do dia é tudo o que importa!

    Todos na sala ficaram aterrorizados, temendo o que aconteceria a seguir. Lance pegou sua maleta e foi para trás de Charlie. O cavaleiro real tentou sacar sua espada; mas, outra vez, fora impedido pela Rainha.

    — Você faz a mínima ideia do que posso fazer com você por tamanha insolência?! — perguntou ela cerrando os dentes. — Quem você pensa que é para zombar assim de mim?!

    — Mas eu adverti que era com todo respeito, Alteza…

    — Majestade! É Majestade, bastardo!! Você consegue falar!!? — explodiu ela, soltando o que guardava há muito. — Pare de me chamar de Alteza, seu infeliz, maldito, filho de uma…

    — Não acho legal ficar xingando os out…

    — Cala essa boca!!! — gritou ela, mais alto ainda. — Pare de me interromper, desgraçado!! Sou sua Majestade, cretino!! Quando falo, você deve ficar calado e abaixar sua cabeça igual a um inseto, que você é…

    A Rainha ficou gritando, esbravejando e, principalmente, xingando Charlie com todas as ofensas que conhecia, por um bom tempo. O detetive, percebendo que aquilo não iria acabar tão cedo, estalou os dedos. Lance na mesma hora entendeu o recado e abriu sua maleta.

    — …Você nem ao menos sabe o que está fazendo, seu ignóbil, prepotente! Aposto que comprou todos jornalistas para falarem bem de você nas manchetes! É inconcebível que alguém tão pífio, ignorante, estupido e idiota feito você, tenha conseguido se tornar um investiga…

    Desta vez, fora o pupilo quem a interrompera, borrifando o conteúdo de um frasco azul dentro de sua boca. A Rainha se afastou imediatamente, desorientada e tossindo, como se estivesse sufocada; até cair ao chão.

    — Pronto, Chefe!

    — Malditos! —  gritou o cavaleiro, sacando sua espada. — irão pagar com suas vidas!!

    — Acalme-se, Vlad! — disse Charlie, tranquilamente. — Não é para tanto. Foi só um xarope… já, já a Rainha…

    — Perdão, Chefe — interrompeu Lance —, mas o xarope está na sua maleta. O que usei foi seu perfume: Carrasco do Amor.

    Mesmo sendo pego de surpresa, Charlie agiu rápido para tentar apaziguar a situação. Ele ergueu as mãos na altura do peito e fez um breve discurso:

    — Está tudo bem! Está tudo bem!… Quando equivoquei-me sobre quem havia encontrado o Rei; fui humilde, reconheci meu erro e perdoei-me, pois não fiz por mal. Agora meu pupilo também errou; e, de novo, não foi por mal. Então não serei hipócrita e darei o perdão a ele também… — olhou para o rapaz. — Lance, eu perdoo-te.

    — Obrigado, Chefe!

    — Vladimir! — gritou a Rainha, se recompondo aos poucos. — Degole esses dois miseráveis e pendure suas cabeças em praça pública! — ordenou ela, com o rosto e pescoço vermelhos.

    — Com prazer, Vossa Majestade!

    Uma gigantesca confusão se instaurou; Charlie e Lance pegaram suas maletas para se defenderem. Leon segurou o braço de Vladimir; implorando para não matar os detetives ali, pois iria manchar o carpete, seus documentos e, principalmente, suas aves. Mas o cavaleiro não parecia se importar.

    Sem se darem conta, os quatro já estavam rolando no chão. Vladimir perdeu sua espada e foi para cima de Charlie na tentativa de um estrangulamento, enquanto Lance tentava impedi-lo com um mata-leão desajustado. Todos estavam em cima do braço direito de Leon, que tentava retirá-lo a todo custo. O detetive tentou chamar seus dois guardas armadurados, mas ambos não sabiam como agir naquela ocasião, então só ficaram olhando.

    Os que estavam em volta não paravam de gritar e tentar sair da sala ao mesmo tempo; o que ocasionou uma série de atropelamentos. No meio de toda essa loucura, Lehandro passou mal e desmaiou. A Rainha, vendo o incidente, ordenou que parassem com a briga e levassem imediatamente o médico para um quarto; dando assim, um ponto final à confusão.

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