24 de dezembro, ano 774 a.R.

    Ao redor do Vilarejo Archi, Ástrea.

    Desde o primeiro respiro somos lançados à mercê de um destino que não controlamos. O brado feroz de um recém-nascido é seu primeiro protesto contra a crueldade do mundo; é ali que ele aprende a beber o ar amargo da existência.

    Belos ou ásperos, todos os caminhos partem do mesmo jugo, indiferentes aos nossos esforços de domá-los. Tentamos ajustar as engrenagens da vida, forjar uma ilusão de controle. Alguns buscam harmonizar-se com o mecanismo; outros se rompem na soberba, acreditando poder governar o sistema. Mas a vida, implacável, não distingue virtudes de falhas.

    Disseram-me, certa vez, que o destino é como uma teia de aranha — um labirinto de bifurcações, fios carmins que convergem para o mesmo fim. Cada vibração nessa arquitetura viva é obra das aranhas, aquelas que tecem o inevitável.

    Quase sempre.

    Afinal, eu sou o inseto indolente que ousará desafiar as aranhas. Desafiar o próprio destino.

    — Seu vagal… por que eu tenho que aturar a “putinha” de sargento enquanto você finge de surdo para enganar o mudo? — a voz de Esvie cortou minha divagação.

    Mah… achei que tivesse despistado ela.

    — É pedir muito um tempo só para mim e meus amigos? — brinquei, dando petelecos nos fios carmesins que se manifestavam ao redor.

    — Ainda nessa fissura de ver trapos vermelhos?

    Trapos? Ela não via os fios se tecendo desde a ponta de seus cabelos brancos?

    Impulsionei a brisa passageira com um suspiro. Espreguicei-me no campo verde da primavera, evitando encará-la; precisava manter meu monólogo intacto — sua beleza estragaria ele.

    — Até quando você vai ignorar que estou aqui, Theo D’Arc?

    — Até você fingir que não me viu e dar meia-volta.

    O riso breve dela me forçou a relaxar… mas era um golpe.

    Estava de guarda baixa.

    Aquela mulher tinha corpo de viola, mas sua força destoava da aparência. Antes que notasse, seus dedos delicados me erguiam pelo colarinho como se eu fosse um nabo arrancado da terra.

    — Ou você sofre comigo, ou eu te torturo. A segunda opção vai fazer você escolher a primeira.

    — Sou um homem indolente, dor nenhuma me afeta.

    — Sem kã por um mês.

    — Você disse aula? Estava indo para lá agora mesmo.

    Como seguir com minhas reflexões sem aquela tragada? Sou fraco, eu sei. Mas aponte o primeiro dedo quem nunca.

    Com a bolsa nas costas, subi em direção ao topo da colina. O frescor da primavera interceptou minha caminhada.

    — Veja o cubículo em que nascemos. Quinze anos de vida e nada muda. Nada envelhece. Nada acontece. Se eu não tivesse você ao meu lado, já teria me matado, sério — disse ela, sua voz mais baixa.

    Permaneci calado. As enxadas no solo e as foices ao vento pontuaram a rotina enraizada da vila. 

    — Ele sempre nos alerta do inferno lá fora, além da barreira cruzada. Mas sei que somos fortes. De todos os aldeões, apenas nós dois conseguimos usar prana. Nossos marcos ainda não despertaram, mas é questão de tempo. Você também acha que podemos chegar à capital, né?

    Sorri de canto.

    — Que mãos de veludo você tem, Princesa de Archi. Quer que eu prepare seu chá real?

    Eu posso perder a vida, mas não perco a piada. 

    — Vai se foder, Theo.

    Assim a “realeza” se despediu, deixando-me com um vergão no ombro. Enfim, a monarquia.

    — Não costumo divulgar minhas reflexões… mas suas incertezas também são as minhas, Vie.

    Ela apenas ergueu o polegar antes de seguir. Quem sabe, mais tarde, não a levo ao bar do seu Cícero. O velho sabe o que fala.

    Respirei fundo. Ela já deveria saber: o mundo não é uma teia, é uma bola de lã. Os fios vermelhos se entrelaçam sem começo nem fim, sem pontas soltas, apenas uma esfera imutável girando num ciclo imposto.

    Todos que conheço têm seus fios constantes, visíveis ou não. Eles os guiam, os prendem, os multiplicam. Não importa quanto eu tente desatar seus nós; eles sempre se refazem.

    Já eu… sou mais para uma agulha. Preso nessa bola de lã. Sem força para costurá-la, mas incômodo o bastante para ameaçá-la.

    O que uma agulha pode fazer diante de um novelo inteiro? Talvez nada. Talvez só se perder no emaranhado.

    Mas, se enfiada no ponto certo, até uma agulha pode desfazer o tecido inteiro.

    E se o destino insiste em me costurar, eu insisto em ser o furo que o desfaz.

    E talvez, Esvie… só talvez, eu possa te livrar desse emaranhado.

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