24 de Dezembro, ano 774 a.R.

    Centro do Vilarejo Archi, Ástrea.

    O entardecer rubro cercou o horizonte. Os poucos postes de luzes se esforçaram para iluminar o início da penumbra que aproximava, era o momento perfeito para a abertura dos botequins. O fedor da fermentação de aguardente era como incenso para a meia dúzia dos gatos pingueiros daquela vila, mas aquela produção chula de uma aldeia medíocre afastava as crianças famintas com o seu cheiro de vinagre.

    Os últimos raios de sol desvaneceram-se no horizonte, tingindo os céus com um profundo azul. A ausência das tão belas estrelas que eram tão bem vistas por este povoado, se tornou um sinal de mau presságio.

    — Vish. Parece que um Deus metido a besta asssoprou as veliinhas do céu.

    Aquela voz soprosa do homem obeso provocou uma resposta imediata de seu companheiro de banqueta.

    — Deixa de ser abestado! Não são veliiiinhas. São vagalumes de Barabara… é por aie…

    Ambas as vozes eram arrastadas e o linguajar empolado denunciou a embriaguez dos homens. Eles estavam sentados em banquetas esbranquiçadas, o pobre pé de plástico rachou com o peso do balofo que ali ficou. Seu companheiro magricelo gargalhou com a situação, tirou seu boné esquálido e usou para bater contra sua perna.

    — Dá pra ouvir até o gritinho de dor do banco! “Ó não! É o Zé de novo!” — O volume exagerado de sua entonação atraiu a atenção de quem passava.

    — Bené se não me faça riscar o facão!

    — Sai dessa… Você sabe que tu e eu ssomos como carne e ossso! É lógico, eu sou o osso e cê a carne! — com um sorriso de orelha a orelha, colocou seu boné sobre a careca de seu colega — seu Cícero! Dá uma da mior pro Zé!

    O bafo forte não incomodava o esguio homem atrás do balcão. Ele dizia que a catinga de um bebum era o aroma preferido de seus bolsos.

    O bar do Cícero era um local acolhedor e rústico, localizado no centro da vila Archi. Ao adentrar no estabelecimento, os visitantes eram recebidos por uma atmosfera intimista e familiar. O ambiente era iluminado por uma suave luz amarelada, proveniente das lâmpadas dispostas em alguns cantos e dos poucos postes de prana que cercavam o local.

    O balcão de madeira maciça, desgastado pelo tempo e pelo apoio constante dos frequentadores, ocupava uma posição central, tornando-se o coração do bar. Ali, Cícero, um homem de cabelo espalhafatoso e nevado, comandou com maestria o serviço de bebidas, servindo seus clientes com destreza e precisão.

    As paredes do bar eram adornadas com antigas garrafas vazias de bebidas alcoólicas, exibindo uma espécie de história visual das experiências compartilhadas entre aqueles frequentadores assíduos. O cheiro suave e característico de madeira envelhecida misturava-se com os aromas dos drinques que eram preparados ali.

    As mesas e cadeiras de madeira espalhadas pelo ambiente exibiam marcas do uso frequente, testemunhando inúmeras conversas animadas e momentos de descontração entre os clientes. Além disso, uma área reservada nos fundos do bar abrigava uma mesa especial para Bené e seu companheiro, permitindo que desfrutassem de suas bebidas enquanto apreciavam a movimentada calçada.

    — Independente de suas crenças. O nome correto é Barabudur — disse e entregou a dose com um líquido esverdeado para seu fiel cliente.

    Um tom de autoridade nato, esse era o velho e meticuloso Sr. Cicero, nenhum detalhe escapava de seus olhos semicerrados ou de suas pontudas orelhas.

    — Agora. Se vocês julgam que a falta dos astros é um sinal de mau presságio, talvez devam olhar para quem está vindo nessa direção. Talvez ela seja o tal do problema da noite.

    — Ahn? A última vez que você disse isso, a mulher do Zé apareceu e deu uma chaave de cadeeia nele.

    — Foi-se uma longa madruga… — lamentou Zé.

    De repente, uma moça interrompeu a informalidade com sua chegada.

    Seus cabelos lisos e volumosos possuíam um vermelho tão genuíno que os tons carmins ou escarlate não eram dignos de nomenclatura. Era visível, ao encará-la, o par de olhos celestes em aflição. O pequeno nariz empinado não combinava com a sutil curva em seus lábios. No entanto, a visão objetificada dos beberrões não subia além de seu avental verde sobre um justo vestido branco, que enalteceu seu firme busto e suas curvas sinuosas.

    Mesmo sendo comprometidos, não resistiram ao desejo carnal de apreciar uma mulher atraente.

    — Isso que eu chamo de chave de cadeia… — sussurrou Bené.

    — Bené. Vá para a frente e pegue uma mesa, você e seu companheiro podem beber na calçada.

    — Vambora Zé!

    Sem hesitar, eles se levantaram de seus assentos e saíram apoiados, é claro, não antes de agarrar a garrafa aberta. Logo, apenas o proprietário e a beldade permaneceram ali. 

    Com um toque gentil, ela pegou o pano do prato do balcão e, com suavidade, livrou o acento de qualquer vestígio de sujeira. O velho apenas a observou, desde sua limpeza até a devolução de seu trapo. Em seguida, ela passou sua mão por debaixo de seu vestido, antes de se acomodar na banqueta.

    — Eu não sei mais o que fazer, Cícero… — Sua voz açucarada era amargurada com um fim embargado.

    Cícero apenas lhe deu as costas e ergueu seu braço em direção ao topo de sua prateleira de licores. Lá, três garrafas de modelo franconiana permaneciam bem preservadas. Sua mão trouxe ao balcão a de conteúdo rubro.

    — Estou cansada de inventar desculpas esfarrapadas para explicar por que ele não pôde conhecer o próprio pai! Me sinto mal por enganar ele. Poxa! Ele é o meu filho no fim das contas. Mas essa busca pela iluminação… droga.  

    — O que você disse dessa vez?

    — E-eu disse que se ele realmente quiser encontrar seu pai. Então deveria se tornar tão forte quanto os Arquitetos de Barabudur — sua fala arrastada e o baixo tom, enquanto olhava de canto, demonstravam seu desconforto.

    Cícero apenas arqueou uma de suas sobrancelhas em resposta. Enquanto Elyza continuou seu desabafo.

    — Este Marco… Está maldita marca da Iluminação. Sempre que me olho no espelho e vejo o que me tornei, sinto vontade de vomitar… — Resmungou, apertando o punho com força — Mas ao olhar para o meu filho, meu coração se enche de orgulho.

    Solitárias lágrimas escorreram por suas bochechas rosadas, ao qual respingaram sobre a palma de sua mão direita. Sua pele alva destacava o símbolo negro ali marcado. Era uma espiral que seguia um trajeto de linhas curvas, sob outra percepção, as acentuações se mostravam ser dois oito descansados e interligados antes de traçar em uma linha retilínea.

    O senhor prestou um ligeiro contato visual com a dama. Então retornou a preparar a bebida, ele despejou o líquido em uma coqueteleira e, em seguida, espremeu meio limão sobre o recipiente com a mão. Sem uma necessidade aparente, realizou um malabarismo com uma garrafa de Éter antes de adicionar poucas gotas deste líquido de fragrância irresistível. Sem dúvidas, eram habilidades de um profissional na arte da mixologia.

    — Você conseguiu encontrar alguma forma de reativar seu Marco? — Indagou Cícero, que a olhou de canto.

    — Não. Desde a gestação de Theo, meu Marco não reage a nenhum chamado. Eu descobri que é normal a diminuição da energia de uma mulher em gestação, até porque sua energia está sendo consumida pelo feto para a formação da energia do seu bebê e mais alguns blablablá, que sinceramente, eu cansei de ouvir da parteira — rolou suas sobrancelhas, pendendo a se distrair com o copo na bancada — E isso é muito estranho porque a minha energia sempre se manteve nula até depois do parto. Então tive a brilhante ideia de pedir ajuda ao birrento do Marcius, mas foi inútil.

    A frustração que sentiu saiu por um longo e pesado suspiro ao qual passou pela fresta entre seus lábios finos e rosados. Sem querer, ela derrubou o copo, o rosto daquele homem ameaçou ficar mais enrugado, mas Elyza foi mais ágil e guardou o recipiente.

    Cícero pôs a tampa da bebida e o chacoalhou durante poucos segundos. Em seguida, exauriu o licor, antes rubro e agora magenta, em um copo largo de altura mediana.

    — Provavelmente não foi a gravidez que causou sua perda — disse ele, com inexpressividade na voz.

    — N-não me entenda mal! Eu sei muito bem que Theo não tem nenhuma responsabilidade sobre minhas escolhas, mas…

    — Eu sei. Estou dizendo isso por experiência própria.

    Ela se surpreendeu com sua revelação. Esta reação não foi desencadeada pelo fato de descobrir que aquele indivíduo experiente tinha uma família, mas sim pelo mesmo estar ali, vivendo o restante do tempo que lhe restou neste pacato lugarejo, sem eles.

    Cícero retirou com delicadeza a luva negra sem dedos de sua mão direita, revelando a carcaça pálida das costas de sua mão. Um sentimento de pavor tomou conta de Elyza, que instintivamente cobriu a boca. O vômito latente em sua garganta regrediu, a ânsia permaneceu. Entretanto, sua visão não teve outra opção senão testemunhar a horrenda carcaça. 

    — Quando o “Grande Cerco” estava no início, devastando cada grão de trigo e corroendo cada alma inocente… Lá estava ele, um garoto de dez anos que sujou pela primeira vez suas mãos com sangue inocente para proteger sua noiva, ele sabia que o caminho que trilhou o guiaria para um destino sangrento. Mas o que ele não mensurou ao fazer sua escolha… O que ele não havia mensurado…

    Suas cordas vocais tremiam e suas carúnculas continham o amargor de suas lágrimas. Elyza ficou perplexa com a situação. 

    — Ele não mensurou que seus entes queridos se tornariam presas fáceis para que qualquer Caçador as cace. Esse foi o ensinamento que aprendi Elyza.

    Então, seus dedos, do polegar ao mindinho, pressionaram a palma de sua mão carcomida. Um som imprevisto, semelhante ao estalo de madeira retorcida se fez ouvir do epicentro de sua mão fechada. Ao abri-la, um pequeno e ornamentado galho de hortelã surgiu, como se trazido à vida por um toque de magia, antes de ser solto sobre a bebida.

    — Estamos predestinados a um destino, seja qual for, criará um ciclo imutável que vocês seres perecíveis se acomodaram a chamá-lo de Marco.

    Subitamente, o retinir do sino de Orin trespassou ambos os ouvidos. 

    A mulher verteu lágrimas que refletiam um brilho que jamais voltariam a iluminar seus olhos. Ela permaneceu solene, acolhendo a dor como uma mãe para sua cria desgarrada.

    Enquanto isso, o outro lutava contra a dor que penetrava em seus tímpanos, uma angústia que ele sabia ser um fardo insuportável. Com uma tremedeira abrupta, o velho derrubou as vidraças e utensílios em sua área de trabalho. Às pressas, tentava encontrar, entre os estilhaços, alguma maneira de escapar daquele tormento.

    Então em poucos instantes, seus ouvidos foram destampados, e aos poucos a pressão retornava a seus corpos.

    Cícero prosseguiu seu discurso, como se esse peculiar evento fosse periódico.

    — Sabe… Há uma inveja que me consome quando observo o ciclo de vida de vocês, os mortais. Nascer, crescer e morrer, uma progressão inevitável para seres tão efêmeros.

    Ele observou a folha se mover como uma canoa sobre a superfície do coquetel — era um milagre ela ter sobrevivido à sua recaída. Cícero estendeu os braços em direção à pia ao lado de sua bancada de trabalho, onde utilizou água corrente para escorrer o excesso de sangue em suas mãos.

    — No entanto, mesmo eu sendo um ser macróbio, há semelhanças entre nós. Ambos somos marcados por nossas escolhas e ambos carregamos o fardo dessas escolhas.  

    O odor ferroso predominou o ambiente. O velho não retirou os cacos de sua pele. Mesmo sabendo disso, ele se aproximou de Elyza, mostrando a palma de sua mão repleta de perfurações, algumas estavam estancadas, outras gotejavam.

    — A grande diferença é que a sua dor terá um fim no leito de morte, enquanto eu, esse ancião amaldiçoado diante de você, carregarei para toda a vida o peso do ódio que disseminei. 

    — Eu lamento a sua dor. Entretanto, a vida está fora de nosso controle, sendo imortal ou não, para ela somos todos iguais, e mesmo assim, tentamos persuadi-la. Seja escolher ser uma Redentora, ou até, ter um filho. Você não pode negar seu papel dentro do mecanismo da vida, contudo, você é livre para se ajustar e se reajustar quantas vezes puder antes da engrenagem parar de girar.

    Elyza com ternura em seu tom respondeu o rancoroso senhor. E depositando uma mão sobre a outra em seu peito, ela clamou.

    — Não estou pronta para deixar Theo, mas o mundo precisa dele mais do que eu. Peço a você que quando encontrá-lo, diga a ele para olhar aos céus e receber minha benção todas as noites, pois sempre estarei lá, brilhando para ele.

    — Elyza. 

    Então, os cacos de vidro começaram a saltar de sua pele, por causa da rápida cicatrização. Com uma inesperada voz calorosa, ofereceu a bebida.

    — Muito bem, aproveite o seu último gole. Preparei o seu licor favorito, de Pitaya. Não se preocupe, eu mesmo direi a ele que a sua mãe era uma chorona.

    — Cale a boca! Nem no meu último desejo você consegue ser agradável. Você é um velho decrépito! — Exclamou, virando o copo de uma só vez e batendo-o na bancada.

    — Ah, então vou ter que informar ao seu filho sobre a alcoólatra que você era?

    Então, Elyzia, abriu um singelo sorriso.

    — É uma pena não ter mais tempo para conhecer melhor esse lado seu, Cícero. Elas devem estar orgulhosas de quem você se tornou.

    — É melhor você não cometer o erro de falar sobre aquilo que desconhece.

    A rispidez na voz de Cícero encerrou com ranço o diálogo, suas palavras amarguradas pairavam no ar. Os músculos de seu punho se contraíram com uma força intensa, enquanto a pele morta que o envolvia começou a se regenerar sobre cada fibra muscular.

    — Cícero, você…

    Elyza ficou sem palavras ao testemunhar a transformação que ocorria diante de seus olhos. Uma borda de carne sã emergiu, trazendo consigo uma intensa vermelhidão. O que mais a surpreendeu foram os traços negros que se entrelaçavam pela pele, formando um padrão intricado e estilizado.

    O sangue escorreu pelos contornos do símbolo, unindo-se em linhas fluidas e curvas. A tonalidade escarlate resplandecente representava o sangue derramado nas caçadas. Era como se o próprio símbolo emanasse destreza e habilidade em rastrear suas presas.

    No centro do símbolo, a representação clara de uma presa, denotando o objeto da caçada. A partir dali, linhas curvas se estendiam em direções diversas, lembrando os galhos de uma árvore emaranhados. Era um símbolo que transmitia a ideia de uma busca incansável e a habilidade de perseguir o alvo em qualquer direção.

    Elyza, não teve tempo para digerir a situação, pois sua atenção foi capturada por um súbito portal a suas costas.

    Relâmpagos púrpuros racharam as moléculas no ar, desenhando uma fenda na realidade. Sob um olhar vertical, as faíscas roxas que preenchiam a fenda pareciam as bordas delicadas de um olho que se estreitava nas extremidades.

    No coração dessa manifestação cósmica, o símbolo da Entropia revelou-se em toda a sua majestade. Sua forma exibia duas linhas verticais paralelas que se estendiam ao alto, conectadas por uma linha horizontal curva no ápice. Essa curva, levemente sinuosa, assemelhava-se a um “V” invertido, fluindo para baixo e unindo as linhas verticais. 

    As linhas verticais eram perfeitamente espaçadas e retas, enquanto a linha curva horizontal exibia uma graciosidade sutil, evocando um movimento ascendente. Essa curva, por vezes, parecia um infinito deitado, transmitindo a sensação de uma continuidade eterna e infinitude matemática.

    Com uma aura enigmática, uma silhueta misteriosa emergiu de entre as brumas de luminescência púrpura. Seus olhos, tão hipnotizantes quanto intrigantes, eram heterocromáticos. O olho esquerdo irradiava um profundo índigo, destacando-se pelo símbolo de Aleph no centro, enquanto o olho direito era cativado por um rosa fúcsia vibrante, cuja tonalidade contrastava de forma deslumbrante com o marcante brilho do marco da iluminação em sua pupila.

    Com uma voz imponente e grave, aquele ser descrente se pronunciou.

    — Então, neste intricado enlace de destinos, finalmente nos encontramos, Elyza D’Arc.

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