Capítulo 3 - Do nada ao nada
Há algum tempo, folheei as páginas de um livro que a alta casta dos Emergentes, os “Redentores”, proclamam como o mais próximo da verdade pré-determinada.
O título?
“Ano I”, escrito por Heródoto e traduzido para o mundo por ele mesmo.
Desde que tomei consciência de minhas ações, percebi uma sensação de auto indução, algo bastante abstrato para ser expresso em palavras. Sempre foi um conceito difícil de entender, como se cada pessoa estivesse seguindo um caminho retilíneo, sem curvas ou voltas.
No entanto, em tudo o que eu entrava em contato, sentia essa sensação se dissipar, como se pressentisse a distorção dessa trajetória. Ao ler este livro, suas características opressivas intensificaram essa sensação, levando-me a perceber que algo estava profundamente errado.
A vontade de desafiar essa linha, de provar que estava equivocada, surgiu simultaneamente ao meu ódio pelo destino descrito em metáforas.
Heródoto descreve o destino como uma teia tecida com os mais belos fios, cheia de bifurcações interligadas por inúmeros cruzamentos. Mesmo assim, os fios permanecem presos à teia. Como moscas indolentes tentando escapar de suas amarras, somos eliminados pelas aranhas, os Arquitetos. Para eles não passávamos de meras moscas, e era inconcebível o esforço de nos libertar. Então os Tecelões foram criados para reparar e defender a teia, justamente como as aranhas faziam.
Os Tecelões, no entanto, carregavam consigo uma peculiaridade. Nutriam compaixão pela humanidade. Assim, decidiram comunicar-nos a iminência da incursão. O badalar de Orin ecoaria como um prenúncio para os tolos que desejassem desafiar os céus.
E eu, o ouvi.
DEVORE O FIO!
24 de Dezembro, ano 774 a.R.
Capela didática – vilarejo Archi, Ástrea.
A luz do fim da tarde derramava-se pela única janela do recinto, criando sombras suaves e destacando a poeira suspensa no ar. O silêncio era quase tangível, quebrado apenas pelo murmúrio distante da vila e pelo ranger ocasional da porta.
“Se este badalar é mesmo o que suspeito, em breve testemunharemos a fúria dos eleitos pelos céus”, ruminei meus pensamentos e apertei o Marco, sentindo a pressão em meu punho, como se pudesse esmagá-lo. A angústia de minha impotência transbordou em uma lágrima tão solitária, quanto ácida, como se corroesse o caminho percorrido em minha pele.
Após enxugá-la, meu tutor resolveu se pronunciar, com seu típico semblante fechado.
— Você andou lendo demais — como sempre, sua disposição para um diálogo positivo era nula — Garoto, aqueles que buscam a verdade acabam se decepcionando com ela.
— Não faço ideia do que você tá falando — fiz-me de desentendido, gesticulando leves movimentos de mãos.
— Não finja surdez. Todos nós ouvimos o badalar. Eu, Elyza, o velho Cícero, sua amiga insolente e até mesmo você. Nós, marcados, fomos sintonizados por uma força maior. E você sabe com exatidão por quê.
— Quantas vezes preciso dizer que eu não sei de tudo?!
— O suficiente para eu acreditar em você.
— Tudo bem, você quer ouvir da minha boca que a incursão se aproxima. Essa porcaria já está acontecendo. Era isso que você queria ouvir, não é? Satisfeito?
Odeio admitir que algo daquele livro estava certo.
— Você leu o suficiente — enfatizou com firmeza, enquanto o encarava com convicção — conhecendo você, pensei que não acreditaria em nenhuma descrição sequer.
— Não dá para negar o que não se acredita. Eu nego o destino porque estou obstinado a desafiá-lo.
Ele alongou o pescoço e caminhou a curtos passos até mim. Recuei meio passo, mas sua mão áspera me impediu; ele agarrou meu pulso, justo onde escondia seu marco.
“Ele percebeu”, exasperei em minha mente, tentando transparecer calma. Estávamos a poucos centímetros de uma conexão indesejada.
— A sintonia é a forma dos Tecelões trazerem o despertar dos marcos para a atual geração, e subscreverem a realidade para a próxima. Você enxergou o seu princípio dentro daquele momento. Por isso quero que me… — Marcius suspendeu sua explicação ao deslizar ligeiramente o polegar sobre meu pulso, levando consigo a manga de minha camisa. Em seguida, apertou com extrema precisão minha pele. Meu músculo enrijecido, flácido ficou, deixando meu punho aberto.
A palma da minha mão estava vazia, o alívio que senti foi estourado com a surpresa do sumiço do orbe.
— Theo, levanta sua manga — sua rispidez, me pegou desprevenido, mas eu estava curioso demais para desobedecê-lo. Então arregacei minha manga.
A combinação do olhar semicerrado e suas olheiras inchadas, transmitiam a ideia de um homem sério e antipático. Presenciar o esbugalhar de olhos aos quais sempre permaneceram neutros, implicou na complexidade da situação.
Em meu braço, um conjunto de bocas sinistras se aglomerava, cada uma exibindo lábios torcidos em sorrisos grotescos. Algumas permaneciam seladas, enquanto outras se entre abriram, revelando fileiras de dentes ameaçadores, apinhados e desalinhados. Então, as bocas se fecharam lentamente, afundando na pele, como se procurassem se esconder de Marcius.
— Garoto. O que você viu durante o badalar? — Sua voz carregava uma negação inabalável, recusando-se a aceitar o que tinha sido testemunhado.
“Esse pesadelo ainda não acabou?!” Gritei em pensamentos. Precisava contar a verdade, mas meus lábios não conseguiam se juntar.
— De… vo… Devo… — Me esforcei, mas minha voz dava nós na garganta.
Que diabos Theo! Como você não consegue pronunciar uma palavra qualquer?!
— Esqueça pequena centelha, meu nome é uma palavra indesejada — a voz do vazio se pronunciou do além. Por poucos segundos entrei em choque, dirigi meu olhar para Marcius, ele permanecia apreensivo pela minha resposta. Ele provavelmente não o ouviu. Não, é certo que apenas eu escutei.
— Eu não consigo dizer… — Minha voz, carregada de decepção, mal conseguia se manter firme.
— É claro que não consegue dizer — percebi seu deboche, mas o que eu poderia fazer para ele acreditar.
Seu comentário me incomodou, mas… por que eu não queria retrucá-lo?
Eu não sei, é como se estivesse faltando…
“Raiva”, pensei e encarei com um olhar descrente para Marcius. Ele virou as costas para mim e se dirigiu a sua mesa.
— Acredite em mim. Eu só não consigo — murmurei, reforçando meu fracasso.
— Eu acredito em você.
A confiança de sua voz descarregou um arrepio em minha pele. Ele acreditava em mim. Contudo, essa branda confiança não conseguia suprir o vazio em mim, precisava de mais, o meu interior implorava por mais emoções e não por mais sentimentos.
O professor abriu a gaveta, retirando dali um frasco com uma tonalidade escura que interagia com a luz, seu interior estava saturado de um líquido translúcido. Ele retirou o lacre com sua boca e o desrosqueou com seus dentes, em seguida, despejou aquilo sobre sua mão esquerda. Eu não tinha percebido, mas sua mão estava sangrando.
— A princípio senti uma quantidade considerável de prana concentrada em sua mão. Contudo, após ver aquilo em seu braço, não sinto mais um pingo sequer de prana vindo de você. Por um momento pensei em ser seu princípio agindo, mas algo tão vil quanto é aterrorizante não poderia ser um — disse ao terminar de esterilizar seu machucado. Enfaixou sua mão com compressa de algodão, e puxou com sua boca o nó, o finalizando.
— Professor. O que nesse mundo seria, se não um princípio? — Perguntei, ocultando alguns fatos. Estava cansado de perguntas sem respostas, precisava remar contra essa maré de informações, mas sem escorar nas pedras.
— Algo indesejado — em alto e bom tom, esta foi sua resposta.
— Algo indesejado?
— Sim. Nunca disse nada sobre esse assunto, pois preferi excluir essa matéria da grade curricular. Entretanto, situações complexas demandam respostas complexas — explicou, em meio a um longo suspiro.
Na parede atrás dele, repousava um pedaço de madeira longo, todo rabiscado com desenhos que com certeza demandaram muito esforço. Na ponta, uma engenhosa gambiarra de barbante e uma pinça de madeira, simulando dedos articulados. Era um presente meu e da Vie, uma celebração para o último aniversário do professor, destinado a ajudá-lo com seus problemas de articulações.
Ele pegou no cabo e apertou o simples mecanismo de abrir e fechar da engenhoca, fazendo com que a poeira do giz se espalhasse sobre sua roupa fardada, enquanto escrevia no quadro duas ações ascendentes ao que foi mencionado.
— Theo, existem coisas que não devem ser pronunciadas e coisas que não podem ser pronunciadas. O que não deve ser dito são blasfêmias sujeitas a punição divina, enquanto o que não pode ser dito são anomalias abolidas da existência. Uma incógnita indesejada pelo divino.
— Isso é impossível. Como pode haver palavras impronunciáveis?
— Então repita e você verá.
— Tsc. A questão não é como, e sim porquê. Por que os arquitetos temem tanto o “indesejado”, a ponto de abolirem do mundo?
— Isso é uma pergunta cabível apenas para um arquiteto.
Foi o xeque-mate. A verdade sempre pairou sobre nós, e essa conversa trouxe à tona os verdadeiros culpados por tudo o que estava acontecendo.
— Marcius… o que acontece com aqueles que já estão marcados? — Indaguei, enquanto observava a frágil luz do vilarejo lutando contra a escuridão que se aproximava.
— Você se refere a todos os despertados antes do badalar?
— Sim. Você disse que minha mãe, seu Cícero e até mesmo você ouviram o badalar. Quero saber o que acontecerá com vocês.
— Eu não sei. Ainda estou tentando digerir tudo.
— Então, o que diabos você viu durante o badalar? — Fixei meu olhar no fundo de seus olhos.
Marcius nunca mentiria, mas também nunca deixaria de sonegar informações. No entanto, desta vez, percebi que ele também perdeu seu olhar no horizonte, respondendo com voz oca:
— O meu dever.
— Você não vai…
Minha voz vacilou antes de ser cortada por ele, cujo forte timbre se sobrepôs à minha.
— Deixe acontecer o que deve acontecer, Theo. Saber a causa não vai mudar o efeito.
“Morrer, é isso que você quer dizer?”, terminei a fala em vagos pensamentos. Eu deveria… eu queria sentir preocupação pelo meu professor, mas não conseguia.
Eu havia mudado.
Não apenas meu olhar… meu instinto, meu âmago, sinto um vazio. Mesmo que aparente ser sereno, é pura encenação; estou me esforçando ao máximo para não desmoronar.
— Marcius… eu preciso tomar um ar — pedi, desviando minha vista da sua reta.
— Eu sei que você deve ter muito a assimilar. Mas temos muito ainda com que conversar, Theo. Muito mesmo… — seu sobreaviso foi finalizado por um sussurro culposo — Por hora, vou arrumar essa bagunça e irei ver o estado de Halo 1. Espero que a febre dela tenha abaixado.
Halo… a pequena preciosidade deste vilarejo. Seu Cícero a encontrou em estado catatônico dentro de um dos sacos de malte em sua carroça de suprimentos. Ninguém sabe de onde ela veio, quem são seus responsáveis, nada. Ela é praticamente um fantasma.
— Por hora, encontre sua mãe. Ela saberá lidar melhor que eu, nesta situação. E Theo… — Ele engoliu a repreensão, reconhecendo o beco sem saída em que estávamos — Só… só não esqueça que precisamos conversar.
Ignorei suas palavras, mantendo-me determinado em sair dali.
“Eu preciso encontrar a Vie”, priorizei meus pensamentos enquanto me deslocava às pressas em direção à saída. Sem mais diálogos, sem mais olhares, apenas um silêncio culposo pairava entre nós. Meus passos não acompanharam a rapidez da queda dessa culpa em meu volúvel coração.
A prevalência do vazio era possível; no entanto, ele era preenchível, como um recipiente pronto para ser ocupado.
Encher um pote demanda uma quantidade de massa ideal para o volume necessário. No entanto, como mensurar o necessário para preencher um vazio de volume indefinido? A resposta é simples: apenas uma singela gota é suficiente para ocupar aquilo que nunca teve ocupação. E após o primeiro pingo, os respingos subsequentes não são capazes de saciá-lo; assim, nem mesmo uma correnteza será suficiente.
Essa era a primeira sensação que meu interior buscava: a voracidade.
Sentir, repetidas vezes, o novo.
- Nota: se pronuncia; Heilou[↩]
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