Mentalmente exausto e emocionalmente instável, uma combinação perigosa para um momento tão desolador.

    Após fechar a porta com força, me apoiei nela, ofeguei em busca de recuperar o ritmo da respiração. Lentamente, escorreguei pela porta de madeira maciça, talvez excessivamente lixada.

    Um estalo alto, como se algo tivesse caído, chamou minha atenção; logo, o som se repetiu, um barulho mais intenso, como se coisas estivessem se partindo. De repente, a voz de Marcius chegou aos meus ouvidos:

    — Que droga! Não brinque comigo… Droga… Eu não quero morrer… — Sua voz falhada demonstrava desespero, como se à medida que sua aflição aumentasse, seu tom diminuísse.

    Permaneci em silêncio, aquilo me abalou. Jamais esperaria isso de Marcius. Sempre imaginei que esse homem encararia a morte de frente, sem dar um passo atrás.

    O desespero alheio por pouco não me consumiu. Tudo o que sentia se dissipou de maneira igualitária, como um desmembramento, a culpa pelo marco roubado, a raiva pelo ritual de marcação, a ansiedade pela vinda dos tecelões, o choque com a instabilidade de Marcius, tudo foi sobreposto pela indiferença. Ali estava eu, uma casca carmesim, vazia por dentro.

    Não sei como, nem porquê, mas fios rubros se emaranhavam à minha frente, guiando-me de volta para a sala. Eles tentavam me controlar, como sempre faziam, mas a vontade deles nunca seguiria. Jamais aceitaria um destino imposto por eles. 

    Assim, como eu os contrariei, em frente eu segui.

    DEVORE O FIO!

    24 de Dezembro, ano 774 a.R.

    Redor do Vilarejo Archi, Ástrea.

    Ao examinar o local, notei que as duas bolsas que eu carregava estavam espalhadas ao meu redor. Eu estava caído, minha bermuda provavelmente suja com a terra seca do chão, e a pelúcia que carregava estava prostrada — talvez eu tenha esquecido de fechar a mochila. Ao estender meu braço na sua direção, movi inconscientemente meu polegar, imitando o gesto de girar o isqueiro.

    “Preciso colocar a cabeça no lugar e me acalmar”, bufei em desdém.

    — Tudo está acontecendo rápido demais, e estou tentando assimilar na mesma intensidade. Talvez eu precisasse apenas deixar tudo fluir… — resmunguei para a raposinha que detinha em mãos — Se pudesse falar, gostaria que me dissesse onde sua dona guardou o restante do Kã.

    Ele podia não ter o dom da fala, mas era perspicaz. Na mesma reta em que encarava o bichinho, meus olhos se encheram de encanto; à frente, uma linda albina estava encostada em um dos postes que iluminavam o caminho para a descida desta pequena colina em que estávamos. Alguns insetos rodeavam a iluminação que os atraía, mas minha atenção estava presa abaixo deles. 

    Ela exalava uma beleza natural, como se nem precisasse se esforçar para isso.

    — Alguém tão sagaz quanto você merece mais do que ficar surrado dentro dessa bolsa — observei ela soltar pela boca a fumaça do que acabava de tragar. Então, levantei-me e caminhei com dificuldade; algo pesava em meus ombros, uma das mochilas estava sobrecarregada. Ainda assim, segui até onde ela estava.

    A brisa suave fazia as pontas de seu cabelo dançarem; as mechas, por sua vez, atrapalhavam sua visão, o que a incomodava, levando-a a ajustá-las constantemente.

    — Toma — disse com casualidade. Entreguei-lhe a bolsa com a indiferença de sempre. Para mim, não passava de um gesto trivial, mas sabia que para ela cada pequeno ato de gentileza contava.

    Um grunhido leve escapou de seus lábios; de repente, seu rosto alvo tingiu-se de vermelho, semelhante a um pimentão. Como um turbilhão, Vie arrancou a pelúcia de minha mão, em seguida, se virou, tentando esconder o rosto com sua preciosidade — tão adorável quanto envergonhada.

    — Quem te deu permissão para mexer nas minhas coisas?!

    — Desculpa? Se quiser, eu coloco a bolsa de volta onde estava, e você mesmo vai pegar. Marcius adoraria ter a chance de ter outra conversa amigável com você.

    — Idiota… Nem se caisse o mundo eu daria moral para aquele babaca — ela resmungou e bufou como uma criança irritada. Decidi me aproximar, espalhei as duas bolsas pelo chão e me debrucei na pequena cerca a frente, permanecendo ao seu lado.

    — Não precisa se estressar, vocês vivem discutindo, por que você não dá uma chance a ele? 

    — Hm… Nem morta.

    Resposta clássica para suas birras.

    — É divertido te ver assim — abri um sorriso singelo, enquanto um biquinho surgia em seus lábios.

    — Você é péssimo nisso, sabia? — A albina afirmou, conduzindo o rumo da conversa.

    — Péssimo em quê?

    — Dar em cima de mim. Você é melhor agindo como um idiota do que tentando. Quando finalmente vai assumir o que sente por mim? — Simples e direta, Esvie Zeitler ataca novamente.

    Aquilo me deixou sem reação. Minha face corou enquanto eu lutava para recuperar a linha de raciocínio. Ela me encarava com uma esperança genuína de resposta. Em contrapartida, estava perdido na tentação de seus lábios finos e levemente rosados.

    Mesmo sendo uma conversa tão trivial, foi o suficiente para eu esquecer, por um momento, todos os problemas eventuais deste dia. Eu não estava mais vazio; a presença dela me mantinha aquecido, e uma hora ou outra isso me faria…

    — Viciar em você — deixei meus pensamentos falarem por mim. Seu rosto alvo se manchou de vermelho, ela tentou esconder sua cara através da pelúcia, mas era tarde demais — Desculpa, Vie, deixei escapar essa.

    Um silêncio constrangedor permeou o recinto. Abrindo espaço para a serenata de grilos, que de vez em outra, eram ofuscados por sons inoportunos do vilarejo abaixo. O cheiro herbal que o cânhamo detinha nunca nos incomodou, quem sabe o costume seja responsável por isto.

    A brecha que surgiu com minha distração ainda permanecia aberta, o que se mostrou uma oportunidade perfeita para a ilustre garota ao meu lado. Ao formular sua pergunta, de primeira, gaguejou um pouco, mas depois fechou os olhos e completou sua fala de uma vez.

    — T-Theo… é verdade que você prefere mulheres de cabelo curto?

    Esvie era durona, nunca deixaria algo como a vergonha a impedir de se expressar. Sempre tive inveja desse seu lado.

    Arquei levemente uma de minhas sobrancelhas. Eu não lembro de ter comentado isso com ninguém, isso está me cheirando a dois bebuns muito recorrentes em minha vida.

    — Quem te contou isso?

    — Não interessa! Só responda!

    — Preferência é uma palavra forte. Mas sim, eu acho mulheres de cabelo curto atraentes.

    — Entendi — afirmou com uma voz astuta, enquanto brincava com as mechas de seu cabelo. 

    Ambos decidimos avistar o horizonte, um breu singular cobria todo o céu. As estrelas foram apagadas, e a lua, vendo sua solidão, se escondeu entre as nuvens.

    “Seu Cícero sempre disse que a falta do brilho celeste é um sinal de mau presságio… Talvez devesse conversar com ele depois.”

    Descendo um pouco minha visão, avistei o centro da vila Archi. Os habitantes estavam acordados, aproveitando o horário para bater papo, uma rotina da qual eu e Esvie escapamos por pouco. Acordar, plantar, descansar; às vezes colher, às vezes arar, uma vida mísera, sem graça e muito menos bela.

    Para nossa sorte, fomos privilegiados pela forte afinidade com a prana; desde sempre, filtramos passivamente a prana ambiente para melhorar nossos atributos físicos. Por isso, Marcius nos fez aprendizes. Ele nos ensinou a lutar, caçar e ajudar. Só não sei por que, mesmo tendo trajetórias idênticas, conseguimos nos divergir nos mesmos princípios.

    — Eu escutei um intenso badalar há pouco tempo. Primeiro, pensei ser nosso sino de orin, mas lembrei que eu o quebrei, após fazer aquela conexão indesejada… — Esvie se auto-interrompeu ao tragar um pouco de seu kã. Então, ela cedeu sua gambiarra, estendendo-o em minha direção.

    Estava mal bolado, dava para ver que ela fez às pressas e com má vontade. Com certeza devido a discussão mais cedo. 

    Entretanto, o necessitado era eu, e não farei desfeitas.

    “Nada melhor do que um Kã compartilhado.”

    Esse foi meu último pensamento antes de tragar; esperava não pensar depois disso. Isso não era só uma droga; um calmante era a melhor definição. Nada alucinógeno e zero enfermidades, claro, se fosse guardado da forma correta — Eca, gosto meio amadeirado.

    Em um gesto peculiar, ela ergueu a mão direita como se estivesse prestes a tocar o próprio reflexo no tempo. Com um movimento suave e preciso, fechou sua mão em um punho, como se estivesse roubando o tempo do mundo. O ambiente estremeceu, e o efeito foi imediato.

    Vagalumes, com suas pequenas esferas de luz, começaram a pairar no ar ao redor dela. Suas luzes cintilantes criaram um espetáculo etéreo, iluminando o espaço com uma luminescência mágica. Vie parecia igualmente atônita. Tudo durou por meros segundos.

    Quando o mundo retornou a sua translação, ela estava ofegante; era nítida sua dificuldade para respirar, como se estivesse desesperada.

    — Esvie! — Exclamei preocupado; eu estava pronto para ajudar, contudo, ela me interrompeu ao tocar no meu peitoral.

    Ela tentou manter o dom da fala enquanto ofegava.

    — Está… tudo… sob controle. É assim que funciona agora. Parece que eu posso, tipo, brincar com o tempo ou algo assim… — ela murmurou, mais para si mesma do que para mim. Seu rosto antes roxo, agora voltou para seu tom natural.

    Pisquei, tentando assimilar a revelação.

    — Parar o tempo?

    De imediato, olhei de relance o que havia dentro deste bem bolado.

    Ela tentou sorrir, mas era mais um sorriso incerto.

    — São poderes estranhos que aparecem quando você se joga nesse negócio de Entropia. Eu mesma não entendo direito, mas, ei, olha só! Isso aconteceu.

    Vie então pôs seus longos e sedosos cabelos sob os ombros. Apontando para o símbolo א marcado em sua nuca.

    — Este é o meu preço por mexer com o tempo. Este é meu Marco, e sempre que uso esse poder, sinto como se o ar ao meu redor parasse também. É como se o oxigênio fosse parte do mesmo jogo de congelamento temporal. A ironia é que, enquanto o tempo desacelera para os outros, para mim, fica mais difícil de respirar.

    — Isso é incrível, Vie. Por mais que não sejam muitos livros, jamais encontrei relatos de usuários do caminho da Entropia ao qual não fossem estudiosos — debochei, enquanto sorria ao ver sua felicidade se transformar em raiva. 

    “Que inveja”, eu tinha inveja da sua facilidade de transitar entre emoções, afinal eu nem sabia mais quando eu pararia de sentir as minhas.

    — Repete se você for corajoso! Porque se você for, vai morrer com ela enfiada… — Me ameaçou enquanto segurava no colarinho de minha blusa.

    — Ei, ei, ei! Vamos com calma. Só estava enchendo seu saco… — choraminguei ao interrompê-la e acenei com minhas mãos buscando trégua. 

    Vie descarregou uma sequência de xingos, mas minha mente estava fluindo para um lugar bem distante. Sabia que era errado ignorá-la, entretanto, o vazio, novamente atormentava minha mente. 

    Afinal, eu deixei passar algo.

    Todos aqueles que um dia foram marcados, encontraram sua própria vertente dentro da prana. Vie, de forma fabulosa, acabou de exercer a função do próprio tempo, mas eu, eu estou de mãos abanando desde aquele incidente com o Devorador.

    Fui arrancado das minhas ideias tumultuadas pela cena absurda diante de mim. Minha bolsa, estendeu-se de maneira bizarra, transformando-se em algo que mais se assemelhava a uma criatura viva. Dentes surgiram onde antes havia um zíper, e uma língua serpenteante emergiu.

    Ela envolveu a pequena raposa de Vie, iniciando uma luta frenética com a mesma.

    Diante da inusitada situação, os olhos desesperados de Esvie encontraram os meus, e ela gritou:

    — THEO! FAZ A SUA BOLSA LARGAR ELE!

    Sem querer acreditar no que estava acontecendo, me movimentei no instinto para ajudar Vie. No entanto, a bolsa, ou essa estranha entidade que ela se tornou, estava determinada a não se deixar vencer.

    Em meio à confusão, a pelúcia que Esvie segurava foi engolida pela abertura agora voraz da bolsa, desaparecendo em seu interior de maneira surreal. O momento absurdo deixou-me ainda mais atônito, com a sensação de que, talvez, eu estivesse perdendo não apenas a compreensão da realidade, mas também o controle sobre o que quer que estivesse acontecendo ao meu redor.

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