Capítulo 5 - Alastro Infrutífero
Eu podia sentir o cansaço em cada fibra do meu ser, e Vie, que momentos atrás enfrentava a bizarra entidade da bolsa, agora demonstrava uma tristeza profunda. Ela estava claramente abalada pela perda da pelúcia, e seus olhos refletiam uma melancolia que me cortava por dentro.
— Esvie, eu… eu não entendo o que está acontecendo. Essa bolsa… ela ganhou vida… Eu não sei… — balbuciei, ainda perplexo.
Esvie sempre tentava arrumar saídas para esse tipo de situação, seja mudando de assunto, ou até mesmo uma piada idiota, porém, destá vez foi diferente. Embora estivesse cabisbaixa, a ternura em seu olhar era familiar, tão manso quanto a de uma mãe, seu efeito sobre mim foram imediatos.
Agora mais calmo, observei a criatura inanimada. Tinha algo que não se encaixava como toda essa cena e não pude evitar de confirmar.
— Esvie, o que aconteceu com a minha bolsa? Ela nunca foi assim.
Com sua expressão descontraída, respondeu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo:
— Ah, Theo, você sempre foi desatento com suas coisas. Ela é assim desde que me lembro. Mas como é sua, acho que agora você vai ter que lidar com isso.
Aquelas palavras não faziam sentido para mim. Eu buscava em minha memória, tentando lembrar se minha bolsa sempre fora uma criatura viva, mas não conseguia encontrar nenhuma lembrança que confirmasse isso. Uma sensação incômoda de que algo estava fora do lugar começou a se formar.
— Não, não é assim. Minha bolsa nunca foi… viva. Isso é novo — argumentei, enquanto lutava contra a sensação de desorientação que começava a me envolver.
Esvie riu, como se achasse graça na minha confusão.
— Theo, Theo… Você realmente acredita que sua bolsa sempre foi uma bolsa comum? Acho que você precisa prestar mais atenção nas suas próprias coisas. Afinal, é sua responsabilidade agora.
Eu estava atordoado. Aquelas afirmações contradizem minhas recordações, mas Vie parecia tão certa. Uma sensação de desconexão se apoderou de mim, como se uma parte do meu passado estivesse sendo reescrita diante dos meus olhos.
— Esvie, estou falando sério. Minha bolsa nunca foi assim — estava determinado a fazer com que ela enxergasse a suposta anomalia.
Ela, no entanto, permanecia convicta e respondeu com uma risada zombeteira:
— Theo, você é teimoso demais. Eu disse, ela sempre foi assim. Aceita que doi menos.
Cansado da discussão infrutífera, pensei em desistir da insistência. Minha parceira parecia convencida da natureza peculiar da minha bolsa, mesmo que eu não compartilhasse dessa convicção. Em um gesto de resignação, pensei em deixar para lá, afinal, qual era a importância disso diante de todas as estranhezas que já havíamos presenciado?
Entretanto, enquanto me afastava da bolsa, algo peculiar chamou minha atenção. Não era a hostilidade que esperaria de uma criatura viva, mas sim um grunhido fraco, quase como um gemido de estômago. Olhei para o interior da boca da bolsa, agora aberta, e uma sensação estranha me envolveu. Quanto mais eu olhava, mais eu perdia a noção dos meus sentidos.
Aquela abertura parecia ser mais do que uma simples boca. Era como se fosse uma entrada para o abismo. Eu senti que, por um breve momento, uma sensação de vazio e desespero se espalhou em meu íntimo.
Compreendi que aquilo não era uma mera transformação da bolsa, mas uma manifestação do Devorador. O ser que me torturou a pouco tempo agora parecia enviar mensagens veladas, mexendo não apenas com minha mente, mas também com a realidade ao meu redor.
A noite estava longe de cumprimentar o amanhã, e esse canalha continuava a brincar comigo.
Abandonei a insistência sobre a bolsa, direcionando minha atenção para minha camarada, ela chutava as pedrinhas do chão para descontar sua frustração. Afinal, a raposinha era fruto de seu esforço, no mínimo eu precisava dar uma moral para ela, certo?
— Vie, não precisa esconder o que está sentindo. Sei que a pelúcia tinha um significado especial para você.
“Sério? Uma abordagem estragada dessas? Devia ter ficado quieto.”
Esvie hesitou por um momento, desviando o olhar para o vazio.
— Talvez eu tenha exagerado quando disse que não me importava tanto. Era importante para mim, sim. Queria que fosse um presente, mas está tudo bem Theo, as plantações de cânhamo estão prontas e vou ter mais tecido.
“Você não faz ideia da cagada que minha mãe fez né…”, meus olhos pesaram ao vê-la cabisbaixa. Nunca fui bom em situações como essa, porém, consolar com palavras era algo que eu detestava, por isso compartilhar de sua tristeza seria a melhor forma de confortar alguém.
Aproximei-me dela e joguei fora o que sobrou do kã. Então abri meus braços, com um movimento suave, fui na intenção de abraçá-la, mas ela me abraçou primeiro. Eu estava assustado com seu repentino avanço, mas ao sentir seu rosto encontrar um espaço em meu peitoral, decidi aceitar sua oferta e acariciar seus cabelos sedosos.
Enquanto a abraçava, o cheiro herbáceo de seus cabelos me acalmava. Eu estava deslocado há tanto tempo da realidade que sentir esse cheiro me trouxe de volta ao velho e comum vilarejo de Archi.
— Durante aquela badalar, eu vi algo… um futuro, talvez. Uma versão do futuro onde nós dois estávamos juntos. Parecia tão real, mas ao mesmo tempo tão distante.
Intrigado, olhei em seus olhos, esperando que ela compartilhasse mais detalhes sobre essa visão.
Em resposta, a garota desviou o olhar por um instante, como se estivesse ponderando se deveria revelar mais.
— Foi estranho, Theo. Eu vi um lugar que nunca conheci… ou pelo menos não reconheci, mas estava claro que éramos nós ali. Estávamos juntos, felizes, e havia uma sensação de calma e realização. Apenas desejei continuar ali por um eterno momento.
Percebi que sua inquietação em seus dedos, brincando com um pingente em seu pescoço, seus olhos fixos em algum ponto distante. Ela parecia hesitante, como se estivesse decidindo se deveria compartilhar algo mais. Optei por não pressioná-la, permitindo que se abrisse no seu próprio ritmo. No entanto, a curiosidade fervilhava em meu subconsciente.
— E você, Theo? O que viu na sua visão?
Senti-me relutante em compartilhar todos os detalhes sobre minha visão, em especial, a presença do Devorador e a angústia que senti durante o encontro. No entanto, decidi ser honesto sobre parte da experiência.
— Eu vi um… Um monstro, Vie. Encontrei-me com ele durante o badalar. Ele me torturou, mexendo com meus sentimentos e, por algum motivo, só você conseguiu preencher o vazio que estava consumindo meu interior.
Ela pareceu surpresa com minha revelação, segurando meu olhar por um momento, como se estivesse processando minhas palavras.
— Theo, eu… não sabia que estava passando por algo assim. Sinto muito por não perceber antes.
Sacudi a cabeça, tentando minimizar a gravidade do momento.
— Não é sua culpa. Eu mesmo mal entendo o que está acontecendo comigo.
A albina piscou duas vezes, como se estivesse processando minhas palavras. Em seguida, ela perguntou com uma expressão séria:
— Acha que essas visões são nossos destinos?
A ideia de destinos pré-determinados não me agradava. Franzi a testa e respondi:
— Não acho que destinos devam prevalecer aos nossos desejos. Acreditar em algo imposto por alguém que não conhecemos é mais loucura ainda. A vida é feita de escolhas, não de caminhos traçados.
Nesse momento, a lua começou a surgir no céu, banhando o local com sua luz prateada. Olhei para as sequoias que serviam como muros para a vila e lembrei a Esvie que jamais tínhamos explorado o mundo lá fora. Sempre que saímos, era acompanhado por Marcius, como se estivéssemos aprisionados por alguma razão.
— Quero ser livre. Quero ver o mundo e fazer o meu próprio futuro.
Esvie segurou meu olhar por um momento, como se estivesse processando minhas palavras.
— Você sabe que é suicídio sair por aí sem o treinamento devido. Por mais que eu odeie Marcius, sei que ainda sou fraca.
A inesperada confissão me fez perceber seu lado responsável. Ele existia, e isso era um bom começo.
— Eu sei. Não estou sugerindo que sairemos agora sem preparo. Mas o que nos impede de buscar nosso próprio treinamento? Não precisamos depender do Marcius para isso.
Antes que eu pudesse formular mais argumentos, ela desviou o olhar por um momento, como se estivesse lutando com algo dentro de si. Em seguida, olhou nos meus olhos e disse com sinceridade:
— Você, Theo. Eu não posso proteger você ainda, e eu não quero perder você.
Aquela resposta reverberou em minha mente, revelando a preocupação genuína que ela sentia por mim. Minhas sobrancelhas se arquearam e meus lábios rachados se separaram.
Vie manteve seu olhar firme, os olhos âmbar revelando a seriedade de sua visão.
— A pessoa mais livre desse mundo é a pessoa mais forte do mundo — com um suspiro ponderado, ela julgou — Theo, a força define tudo neste mundo. Os Arquitetos são a supra suma, eles impõem destinos aos mais fracos simplesmente porque podem. Eles são verdadeiramente livres, por isso acredito que a liberdade só é alcançada ao se tornar o mais forte do mundo. E eu serei, é a minha promessa a você.
Um sorriso bobo e genuíno se desenhou em seu rosto, como se a energia otimista dela tivesse o poder de dissipar até mesmo a presença daquele Devorador. Intrigada pela minha expressão, percebi que não demoraria muito para questionar o motivo do meu sorriso. Ainda com a felicidade estampada em meus lábios, soltei uma pergunta peculiar:
— E se eu pedisse para você prometer que nunca deixaria o mundo mudar quem você é?
Entre a surpresa e o sarcasmo, ela rapidamente deu uma resposta que estava na ponta de sua língua:
— Ah, claro, Theo, prometo solenemente manter minha pose intimidadora e não deixar que nada mude a incrível pessoa que eu sou.
Rimos juntos, e ela me empurrou brincalhona, mostrando a língua. Mas à medida que nos afastamos um do outro, algo no ar parecia mudar, uma tensão sutil começava a se infiltrar na atmosfera ao nosso redor. Uma sensação de inquietude pairou no ar, e a calmaria que nos envolvia foi quebrada pelo som de um trotar distante. Olhamos um para o outro, transmitindo a mesma expressão de surpresa.
Antes que pudéssemos reagir, uma série de criaturas surgiu dos recantos sombrios da floresta. Uma matilha de Alastradores, seres assombrosos, negros como a noite, seus corpos fluíam como sombras, e eles se moviam de maneira que não pareciam criaturas físicas. Uma sensação de inquietude se apossou de mim, e percebi que estávamos em perigo.
“A qualquer momento, a barreira de Marcius vai agir”, pensei enquanto minha companheira exalando confiança exclamou.
— Não se preocupe! Aquele babaca sempre cria uma barreira forte o suficiente para impedir esses Alastradores de nos atingirem. Eles não têm chance!
No entanto, um choque abateu minha frágil confiança. Eu arregalei meus olhos em compreensão súbita.
“Espere… o marco de Marcius está comigo. Mesmo que eu não possa acessá-lo, isso significa que a barreira que ele costuma criar para nos proteger não terá mais efeito!”
Nesse momento crítico, as criaturas avançaram de maneira ameaçadora, eu fiquei travado, qualquer passo em falso poderia e seria pego pelos Alastradores. Antes que pudesse reagir, a aspirante a emergente interveio sem temor. Com um movimento rápido, ela canalizou a prana ao redor de seu punho e desferiu um soco envolto em energia contra o Alastrador mais próximo, criando uma colisão que o afastou com sucesso, entretanto, o choque a ricocheteou para longe.
Esvie firmou seus pés ao chão tentando contar o empuxo com a aderência da grama. Um rastro se fez como consequência de sua imprudência. Então ela rapidamente recuperou a compostura, e com uma expressão séria, ela disse sem tirar os olhos da matilha que nos rodeava:
— Theo, preste atenção! Alastradores são um saco, se eles conseguirem uma conexão indesejada irão se multiplicar mais, e aí estaremos ferrados!
— Parece que alguém finalmente andou prestando atenção nas aulas — zombei e ela mostrou sua língua em resposta.
Então o mesmo assombroso monstro que foi socado para longe, se dividiu em dois ao absorver a prana do soco levado. Sério, Vie? Você é a própria definição do faça o que eu digo, não faça o que eu faço.
Os alastradores continuavam avançando, mostrando uma resistência maior do que o esperado. Era uma batalha complicada, e a falta da barreira protetora de Marcius tornava a situação ainda mais tensa. Eu buscava encontrar uma solução para lidar com essas criaturas, mas o tempo estava se esgotando.
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