Alastradores…

    Seres macróbios, projetados para caçar, exclusivamente, todo o ser que em sua subsistência necessite de prana. Esses desgraçados detêm um corpo maleável que se adapta para cada caçada, e se não bastasse, onde anda um alastrador, mais seis estarão à espreita. Poucas situações me fizeram realmente temer a morte, e duas foram só hoje — que dia de sorte.

    “Quatro… Cinco, agora seis. Se continuar dessa forma, eles vão continuar nos usando de escada para se multiplicar”, enquanto os observava, tentei encontrar uma brecha em sua formação.

    Eles prosseguiram com aquela ciranda trevosa, e nós hesitamos, acabando por encostar as costas uma na outra em um gesto inconsciente de proteção. Não sabíamos quando viria o próximo ataque, muito menos como pará-lo, mas depositamos toda nossa confiança na retaguarda um do outro.

    Senti os braços de Esvie arrepiados, sua adrenalina estava à flor da pele. Seu coração batia tão forte que eu podia sentir sua pulsação ecoar no ar tenso ao nosso redor.

    — Tá com medo, princesinha? — Zombei, tentando aliviar a pressão em seus ombros, mesmo que isso a deixe mais tensa. Minha tentativa de descontração foi recebida com um olhar fulminante.

    — Por acaso você está falando comigo? — Rebateu imediatamente, com rancor em sua voz, enquanto desferiu um curto chute para trás. O impacto atingiu meus calcanhares, causando uma dor aguda que me fez franzir a testa.

    — Ai! Sai dessa. Temos que dar um jeito nesses vira-latas — tentei ser firme, embora a dor pulsante no meu calcanhar fosse quase insuportável.

    — Agora você tá todo ouriçado. 

    — Vie… sei que não é tempo para bater papo, mas você tá em condições de usar seus poderes novamente? — Minha voz saiu em um sussurro preocupado.

    Esvie respirou fundo, sua determinação esvaiu de seu olhar. Ela balançou a cabeça em resposta, mas não disse uma palavra, sua mandíbula cerrada mostrava sua concentração total na situação em mãos.

    — Você está duvidando da minha capacidade? — Seus olhos estreitados em desafio enquanto uma ponta de ofensa se insinuava em sua expressão.

    — Longe disso, mas quantas vezes você parou o tempo só nessa última hora? 

    — Umas quatro… — Esvie admitiu, sua voz um tanto constrangida, com seus ombros ligeiramente encolhidos.

    — Que merda, Vie! Quanto de prana filtrada você ainda tem? 

    — Eu sei lá! O suficiente para mais uma paradinha — sua resposta veio rápida, mas com um toque de incerteza que não passou despercebido.

    — Uma?! — Minha voz soou mais alta do que pretendia, a realidade da situação  começou a pesar em meus ombros.

    Diante de nossa conversa, a matilha resolveu agir, disparando em direções opostas que se cruzavam no mesmo centro, ou seja, em nós dois. Eles eram grandes, com certeza bem maiores se comparados a nós, desviar deles não seria fácil.

    — Esvie! Não pare o tempo! — Eu gritei, alertando-a do perigo iminente.

    No mesmo instante, por puro reflexo, soquei a criatura mais próxima. Minha mão estava envolta por prana. Eu sabia do risco, mas não podia medir a vida da minha melhor amiga em uma balança contra a propagação daquela criatura.

    O Alastrador voltou de onde veio, e como consequência, ele se repartiu em dois. Tudo o que podíamos fazer era resistir até os reforços chegarem, mas onde estariam os reforços nesse momento? Mais importante, quem seria o reforço?

    — Obrigado, Theo, de verdade… — agradeceu, surpreendida pela minha ação.

    — Apenas fizemos uma troca de favores, estamos quites agora, certo, princesa medrosa? — Tentei brincar, apesar da tensão no ar.

    — Quem é a medrosa aqui?! — Ela retrucou, mas seu tom de voz era mais leve agora, como se minha ação tivesse aliviado um pouco sua tensão.

    — Não tá mais aqui quem falou.

    Então um som peculiar chamou nossa atenção: mastigadas, seguidas de uma sucção. Rapidamente olhamos na direção do barulho e percebemos que um dos tenebrosos lobos estava sendo totalmente devorado pela… bolsa.

    — As coisas estão ficando cada vez mais bizarras aqui — comentou a albina.

    — Bingo… — murmurei, observando os alastradores recuarem da bolsa, apenas para se voltarem novamente para nós. Não pareciam intimidados; era como se a presença daquela bolsa fosse tão comum para eles quanto um membro da matilha a ser respeitado. Ao buscar seu apoio em seu olhar, anunciei.

    — Vie, eu tenho um plano.

    — Isso inclui eu parando o tempo? — Perguntou, preocupada com as implicações de usar seus poderes novamente.

    — Definitivamente não! O lobo que iria nos atacar foi devorado, e não se multiplicou. — expliquei, tentando tranquilizá-la.

    — Você não está insinuando que… — começou Vie, antes de perceber a direção para onde eu estava indo.

    — Sim, vamos convergir esses desgraçados. 

    DEVORE O FIO!

    24 de Dezembro, ano 774 a.R.

    Redor do Vilarejo Archi, Ástrea.

    — Sim, vamos convergir esses desgraçados.

    Sem esperar por uma resposta, avancei em direção à matilha, apenas visando a bolsa. Eu não me preocupava com as possíveis consequências. Afinal, se tinha algo que nós compartilhamos com os alastradores, era a nossa sincronia. 

    Assim que minhas mãos alcançaram as alças da minha bolsa, agachei-me na mesma hora. Num movimento rápido, ela usou minhas costas como trampolim para lançar um chute envolto de prana preciso no Alastrador à minha esquerda, enquanto eu golpeava a criatura à direita com aquela estranha boca.

    Coloquei todas as minhas expectativas na bolsa, e ela não decepcionou. A criatura foi envolvida pela extensa língua da mochila e devorada.

    Após vencermos os dois Alastradores, restavam ainda seis adversários para enfrentarmos. Mantendo-nos próximos um do outro, avaliamos a situação desesperados em busca de uma brecha.

    Sem hesitação, avançamos em direção aos alastradores restantes. Com rapidez, desferi um golpe com a minha bolsa, em apenas uma abocanhada deu cabo daquela criatura. Enquanto isso, meu duo lançou um ataque preciso contra outro alastrador, mas sua investida física foi em vão, pois mãos nuas, não afetavam carniceiros.

    Por sorte, antes que ela levasse uma mordida, eu interferi.

    Encurtei o espaço entre nós com um avanço desesperado. Eu não precisava chegar a tempo, bastava estar próximo o suficiente para que a bolsa fizesse o restante. Sua língua saiu de sua boca como uma extensão de meu braço, envolvendo a cabeça do alastrador. Imitando um sapo, ela o puxou, engolindo-o de uma vez. 

    Com os outros alastradores à espreita, eu balancei a bolsa no ar, como se estivesse preparando um ataque. A boca estranha se abriu, emitindo um som gutural, enquanto os olhos dos inimigos se fixaram nela, como se estivessem hipnotizados.

    Então, corri em direção aos remanescentes, a essa altura, a bolsa se tornou a extensão de meu corpo. A estranha boca devorou um após o outro, enquanto eu me movia com agilidade e precisão, garantindo que nenhum deles escapasse. A sensação de poder era incrível, como se eu estivesse dominando aqueles seres sobrenaturais com facilidade.

    Enquanto isso, Vie permanecia ao meu lado, observando com admiração e surpresa a eficácia da bolsa como arma de combate. Nossos movimentos estavam em perfeita sincronia, como se estivéssemos dançando uma dança mortal, lutando para saciar a fome.

    — Droga Theo, desse jeito eu vou ficar sem oponente, preciso ter história pra contar — Esvie resmungou, com uma pontada de frustração em sua voz.

    — Pode ir elaborando a minha, então — ri, tentando aliviar a tensão do momento.

    — Nem ferrando seu metido — revirou os olhos, mas um sorriso discreto brincava em seus lábios.

    Enquanto lutamos, uma sensação estranha me invadia. Estar ali, enfrentando esses perigos, quase me fazia esquecer da angústia que me assombrava desde o encontro com o Devorador. Será que essa sensação de diversão era apenas uma fuga temporária da realidade?

    Talvez, devesse me preocupar com isso depois que todos esses emanadores do caos deixassem de existir. É isso que você faz, não é mesmo?

    Encarei a bolsa com curiosidade, algo como isso aparecer sem uma explicação ou recordação, é praticamente impossível.

    Em meio ao impasse cruzado, o emaranhado vermelho novamente se teceu ao horizonte, eles costuravam aberturas dentre os lobos, como se traçasse uma rota em minha direção. Se minha opinião é válida, provavelmente é a rota de ataque desses quatro sobreviventes.

    Mesmo que seja isso, eu jamais usaria isso em benefício próprio, jamais aceitaria me enrolar em teus fios.

    Estava determinado a enfrentar a vermelhidão, sem perceber que ela estava me cercando. Quando me preparei para suportar todo o dano que viria, Marcius apareceu em um ato heroico para salvar seu pupilo. Ele se intrometeu, empurrando-me para longe do caminho dos ataques. Por pouco, esses monstros não se amontoaram em um ataque quase fatal.

    — Seu suicida! Por que você se acovardou?! — Esvie gritou em histeria, um pouco afastada de onde caímos.

    Eu não respondi, permaneci em silêncio. Marcius levantou e estendeu uma de suas mãos para mim. Eu estendi minha mão para selar a ajuda, entretanto, saindo de sua manga, um maldito fio vermelho estava sendo emanado. Era uma afronta a mim, eu estava começando a achar que seria impossível contrariar por mais tempo o Destino.

    Com o impasse surgindo e Marcius aparecendo de repente, a tensão já estava alta. Enquanto eu quase aceitava a ajuda dele, uma sensação de repulsa cresceu dentro de mim. Olhei para o fio vermelho que se estendia da manga dele, como uma manifestação física do destino que parecia me seguir.

    Comecei a me sentir inquieto. Será que tudo isso já estava escrito? Será que eu não tinha controle sobre minha própria vida? Um turbilhão de pensamentos bagunçou minha mente enquanto eu me debatia sobre aceitar ou não a ajuda de Marcius.

    Mas então, uma voz interior começou a sussurrar com frieza, “Você realmente precisa disso? Vai mesmo deixar que uma linha dite suas ações?”. Num ímpeto, dei um passo para trás, deixando a mão de Marcius suspensa no ar e me levantando sozinho. Não podia deixar que esse limiar controlasse minha vida.

    Então, com a recusa da ajuda de Marcius, um silêncio tenso pairou sobre nós por um instante. 

    De repente, sem aviso prévio, uma explosão estrondosa irrompeu na vila, seguida por uma onda de destruição avassaladora.

    Grande parte das casas foram reduzidas a escombros, as plantações estavam sendo castigadas por destroços, o caos reinava em meio ao cenário de devastação. No entanto, para nossa surpresa, um domo de correntes douradas se formou ao nosso redor, nos envolvendo em uma proteção de prana que nos salvou do impacto.

    Enquanto observamos a destruição ao nosso redor, percebemos que todos os moradores da vila, havíam sido salvos pelo poder misterioso das correntes. Era como se um milagre tivesse ocorrido, nos protegendo do pior da devastação.

    Após sermos salvos, um evento ainda mais surpreendente e assustador se desenrolou diante de nossos olhos atônitos.

    Uma rachadura gigantesca se abriu nos céus, como se o próprio firmamento estivesse se despedaçando diante de nós. Do interior da rachadura emergiu algo de tirar o fôlego e ao mesmo tempo intimidador: uma faixa brilhante e espiralada se estendia pelo céu noturno, adornada com estrelas cintilantes e outros corpos celestes que eu nunca imaginaria que existissem.

    Minha mente não conseguia processar completamente o que estava vendo. Aquela visão transcendental era ao mesmo tempo majestosa e perturbadora, como se estivéssemos testemunhando um acontecimento cósmico de proporções incompreensíveis.

    Ao lado deles, eu contemplava em silêncio a espiral brilhante que preenchia os céus, incapaz de desviar o olhar daquela manifestação celestial que desafiava a própria Entropia. 

    O vento sussurrava em meio aos destroços e o ar pulsava com a prana ambiente, cada respiração carregava o fardo de nossas visões, como se fosse a primeira ou a última vez que veríamos aquele céu. 

    Marcius quebrou o acordo mútuo de silêncio.

    — Isso é uma incursão.

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