Capítulo 7 - Noite Estrelada (Parte 1)
— Então, já começou… — Sua voz perdeu parte de sua habitual potência grave; como sempre, Marcius sabia muito, mas comunicava apenas o necessário.
Levantei-me sozinho, meus olhos semicerrados sondaram o perímetro, mesmo que as correntes emitissem suas auras douradas, permaneciam transparentes a percepção comum.
“Não há nenhum Alastrador no perímetro”, descansei minhas pupilas por um momento, meus ombros se descontraíram com a tensão que se esvaiu.
— O que diabos é uma incursão?
Vie parecia confusa. E para variar, Marcius a ignorou.
— Estas correntes… Como ela… — o mais velho resmungou consigo ao examinar o pequeno domo.
— Resumindo, alguém fez uma grande cagada. Os Tecelões tiveram que intervir, e, bem, estamos enrascados — expliquei, mantendo a calma, apesar de que agora em diante, só transpareceria isso, independente da gravidade da situação.
Ela assentiu, compreendendo a seriedade do que eu dizia.
De repente, um estrondo ensurdecedor rompeu o silêncio da paisagem, vibrando no ar como o rugido de um titã adormecido. O som reverberou pelas sequoias circundantes, ecoando como o anúncio de uma chegada iminente.
Em seguida, erguemos nossos olhares em sincronia para o espaço luminescente, onde uma visão espetacular nos aguardava. Mãos gigantescas, de proporções cósmicas, avançaram majestosamente pelas fissuras do firmamento, como se as próprias estrelas estivessem se contorcendo e se rearranjando para formar essas imponentes extremidades.
Cada dedo era uma obra-prima de grandiosidade, estendendo-se como arcos celestes que desafiavam a compreensão humana. A valsa de tons levava o violeta estrelado a dividir seu espaço com outras cores, o azul profundo dos céus e o negro cósmico do desconhecido, sua dança criou um espetáculo que transcendia a beleza humana.
Tentei agarrar com toda minha força a alça da bolsa, mesmo que sua língua nojenta me causasse calafrios, estava temendo que ela pudesse ser arrancada de meus braços pelos ventos furiosos que pareciam acompanhá-las. A bela albina sentiu seus cabelos voando ao redor de seu rosto, impulsionados pela força tremenda que emanava da chegada das mãos colossais.
Se já não bastasse, as correntes que formavam o domo começaram a fraquejar, abrindo brechas dentre elas, e se afrouxando, como se o próprio ambiente estivesse sendo alterado pela presença imponente das arquiteturas.
As mãos de Vie tremiam, em contraponto, seus olhos irradiavam uma determinação desafiadora diante da intervenção transcendental. Em vez de buscar conforto, ela apertava meu braço com tamanha firmeza que eu podia sentir suas unhas se cravando em minha pele, numa tentativa de esconder o medo por trás de sua expressão determinada. Poderia ser doloroso, mas valia a pena.
Marcius permaneceu calmo e imperturbável, sua voz ressoou com autoridade enquanto observava os céus.
— Nunca pensei que sobreviveria para ver outra incursão.
— Como assim outra Incursão?! Você…
Eu tentei cobrar uma resposta, contudo Marcius me cortou com uma rispidez similar a de um cuspe.
— Fique quieto.
— Você acha mesmo que vamos engolir a seco seus tiros no escuro?! Ao menos nos dê uma explicação! — Vie comprou a briga.
— Não precisa digerir, pode permanecer com ela entalada em sua boca, vai ocupar sua língua de falar baboseira.
Ela apertou meu braço mais forte ainda, não importava se doía, com tanto que ela não iniciasse um briga com ele. Mesmo que nosso professor estivesse mais babaca do que de costume, não tínhamos tempo pra isso.
— Esvie! Não perca a cabeça justo agora — segurei sua mão. A princípio, ela a puxou, mas seu olhar destemido encontrou a calmaria no mórbido fulgor dos meus olhos.
— Tsc… — Vie saiu da conversa com seu típico resmungo.
— Não me importo se você não quer se explicar, mas ficar quieto? Se aquilo vier até nós, garanto que essas correntes não nos salvarão. Precisamos agir.
— Theo. Atualmente, a sobrevivência de todos nós depende da performance de sua mãe nesta batalha.
DEVORE O FIO!
24 de Dezembro, ano 774 a.R.
Redor do Vilarejo Archi, Ástrea.
“Minha… mãe?”
Como eu pude esquecer da minha própria mãe?
Ergui minha mão ao peito, eu senti meu coração bater, sua pulsação seguia o ritmo suave da brisa noturna.
“Do que adianta ele estar batendo… se novamente suas batidas não tem um porquê.”
— Tá. Mas o que a tia Ely tem haver com tudo isso?
— Essas correntes são de Elyza. Mesmo ela me dizendo que não conseguia mais ativar seu Marco, eu sempre acreditei em seu retorno. E hoje pude ter a honra de rever a imponência da Torrente Suserana — exaltou o mais experiente, não sabia que ele admirava tanto a minha mãe.
— Porque eu sempre tenho que ser a última a saber das coisas?!
— Porque você é sempre a última a reparar nas coisas — refutou Marcius.
Para variar, Vie estava sempre no seu melhor humor.
“Bem que essa garota poderia me emprestar só um pouquinho de seus sentimentos…”, balancei com negatividade minha cabeça, precisava me livrar desses pensamentos intrusivos.
Enquanto ambos ignoravam suas diferenças, me dei o trabalho de me mover, a passos lentos me aproximei do limite da pequena cúpula, a bolsa não pesava mais, era apenas meu corpo relutante a crer o presente momento.
Elevei minha mão aos elos reluzentes que tanto nos resguardavam. Apenas aproximando meu corpo, uma calorosa recepção me raptou de tudo. Ao segurar as correntes, meu âmago foi preenchido por uma sensação há muito esquecida, a ternura que somente ela detinha.
— Onde ela está neste exato momento Marcius?
— Levante a cabeça, e testemunhe por si mesmo. Sua mãe está prestes a desafiar um Tecelão.
Alcei minha visão aos céus, senti meu queixo descer e uma fresta se formar entre meus lábios. Uma figura desconhecida se encontrava no topo de tudo, beirando ao limite da borda celeste, ao qual flutuava ignorando a própria gravidade.
As manifestações regidas pelo peculiar ser, hipnotizaram minha visão, quanto mais eu olhava, mais novas estrelas reluziam, num fenômeno de proporções ridículas, ao qual jamais saberia se eram pinturas ou infinitos céus.
Com as mãos celestiais se aproximando, um borrão vermelho emergiu da vila, envolto por correntes douradas que brilhavam sob a luz cadente. Reconheci imediatamente a figura emergente como a ruiva cabeleireira ao qual herdei.
— Ela chegou — avisou nosso babaca de plantão.
Eu não podia fazer nada, a não ser torcer pela minha progenitora. Mas, no fundo algo minava minha certeza, fortificando mais ainda a impotência que me sufocava.
Seus grilhões se enroscaram nos gigantes dedos, em seguida, ela cruzou os céus como uma bola de fogo, em direção às costas da colossal mão. Quando pousou sob aquela superfície, explodiu em uma intensa disparada, enquanto percorria pelo declinado braço, seu majestoso oponente tentou agarrá-la, mas escapou através de um mortal inverso, ao mesmo tempo, em que suas correntes se distribuíram por toda sua trajetória.
Não demorou muito para que novas formas de conter seu avanço aparecessem.
Tentando ser mais astutos que a intrusa, duas mãos em lados opostos surgiram, a frente um punho fechado, a suas costas uma palma aberta. Da retaguarda da figura carmesim, mais correntes apareceram, sendo lançadas contra o dedo indicador do potente soco, o envolvendo.
Aquilo me chamou atenção. Curioso, joguei meu raciocínio ao ar.
— Estranho seus movimentos não desaceleraram, muito menos sua agilidade. Essas correntes parecem ser muito flexíveis… Bingo. Talvez, só talvez, os elos dessas correntes tenham o peso de sua carga proporcionalmente divididas.
— Você é esperto, mas às vezes nem todas as respostas podem ser encontradas na lógica — Marcius cortou o meu barato.
— Então diz pra gente, o bambambã — Vie provocou ele.
— De fato, os elos dividem seu peso, sendo mais exato, eles transformam todo peso para sua menor medida, seja ela algo com capacidade de ultrapassar quilolitros ou mesmo seres massivos capazes de alcançar a teratonelada.
Sua fala me assustou, ele havia cedido uma resposta a um deboche de sua arqui-inimiga.
— Teratonelada…? — Ela sussurrou sua questão a mim. Para o seu azar, dessa vez eu estava por fora do assunto, cálculos nunca fizeram parte de meu tempo ócio.
— Também não sei, só deixa ele continuar falando — retornei com um murmúrio.
— Por mais específico que isso possa ser, são apenas medidas disponibilizadas pelos seguidores da Entropia. Afinal, a Iluminação transcende esses ávidos cálculos. As correntes que vocês veem, são a representação material da Torrente Suserana, pois o peso que estamos discutindo, só tem seu real efeito dentro da verdadeira localização de onde elas estão aprisionadas.
— Como é que é?! — Vie fez um escândalo. Era estranho esse convívio, Marcius representava muito mais a Entropia do que a própria marcada.
— Sem balbúrdia! — Marcius a repreendeu, e dessa vez, um milagre aconteceu, ela apenas obedeceu, na ânsia de receber mais informação.
— Como você sabe de tudo isso? — Indaguei o ex-emergente.
— Digamos que na minha época de moço, eu tive um professor famoso por seu intelecto, mas odiado por sua arrogância. Ele jurou que, se não aprendêssemos cada conceito básico como esse, nos condenaria ao fracasso.
“Conceito básico?”, sinto que ele não estava exagerando quando disse isso. Admito que às vezes nós o julgamos mal.
— Por ora. Aconselho a vocês um tempo para digerir tudo isso, aproveite o aprendizado e use-o para esclarecer ainda mais o combate.
Então o momento certo chegou, minha mãe estava a poucos metros da colisão. Em um ágil puxão, ela usou as correntes do dedo subjugado, para acertar um peteleco em cheio na mão que a seguia. Com a brecha feita, ela saltou para fora do impacto, fazendo as arquiteturas vivas, agora ludibriadas, se tornarem suas mais novas aquisições temporárias.
“Ela não estaria fazendo tudo isso por nada. Para onde você está indo mãe…”, meu raciocínio tentava acompanhar sua movimentação, minha percepção nunca foi das melhores. Mesmo caçando sua rota por todo o horizonte, seu trajeto era indecifrável, ela não estava indo em direção ao Tecelão.
Ela transformou todas suas capturas em armas improvisadas. Então a ruiva empregou uma das mãos subjugadas como plataforma para alcançar ainda mais altitude.
Minha mãe estava subjugando algo feito por um eleito do céu, era um sonho permeado na realidade.
As correntes chiavam e faiscavam enquanto minha progenitora lutava contra a força avassaladora das mão estelares. Ela tomou as rédeas sobre aquelas inefáveis estruturas, respondendo os ataques vindos da abóbada celeste na mesma moeda.
Pouco a pouco, minha mãe prevalecia sobre toda aquela conjuntura, no entanto, a sua significância foi ameaçada por uma série de mãos que emergiram das manifestações existentes, formando um globo de dedos entrelaçados, pressionando-a com brutalidade.
— TIA ELY!
Esvie estava mais preocupada do que eu, o próprio filho. Espero que um dia ela possa perdoar sua desgarrada prole, embora eu mesmo não sinta isso.
O súbito som estridente das correntes nos pegou desprevenidos. Todo o domo começou a se desfazer, enquanto elas avançavam cada vez mais rápido, seguindo um caminho reto em direção ao seu destino. À primeira vista, a tensão da derrota pairava iminente sobre o vilarejo.
Por conseguinte, o horizonte foi tomado por estrelas ascendentes, todas com um único objetivo: libertar Elyza. As correntes enforcaram os pulsos de todas as divinas manifestações, sufocando a força que elas exerciam, e uma vez acorrentadas, todas puxaram seus respectivos alvos. A consequência de tal feito, levou o desabrochar de uma petúnia cósmica, tão bela, quanto aterradora.
Não conseguimos saber a gravidade que aquele ataque a causou, graças à distância, mas nós três compartilhamos o mesmo pensamento: ela estava olhando para nós.
As mãos aceitaram um cessar-fogo. Não. A realidade era outra, toda a estrutura feita, estava assegurando que as mãos não se movessem ou tivessem brechas. Afinal, aquele conglomerado estava emperrado, não paralisado.
Nesse exato ato, tanto o Tecelão quanto minha mãe estavam em pé de igualdade.
— Theo. Esvie…
— Tá atrasado, velhote! — Vie interrompeu a instrução com um grito afobado. Quando percebemos, ela havia saltado colina abaixo — VAMOS SALVAR A NOSSA CASA!
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