Capítulo 9 - Noite Estrelada (Parte 3)
— Ei Vie, levanta. Eu sei que você está acordada.
Suspirei com o silêncio de sua resposta.
Fazia alguns minutos que eu havia me separado de Marcius. E ela permanecia ali, de bruços, sem se importar com os fiapos da plantação emaranhados em seus fios de cabelo.
— Que droga.
Não podíamos desperdiçar mais tempo, sabe se lá quando um alastrador apareceria, sabe se lá quanto tempo mais minha mãe aguentaria.
Encaixei meu pé para debaixo de seu corpo e a virei. Sendo bruto ou não, quem essa garota pensa que é para ficar jogada na porta da vila.
— Inacreditável — reclamei em alto tom. Com uma mão em minha cintura, aguardei sua última chance de resposta. — Bolsa, estamos entrosados o suficiente para você saber o que deve ser feito?
Era estranho tratar isso como um parceiro.
Sua língua serpenteava em direção a adormecida, deixando uma trilha pegajosa em seu rosto. Aquilo era nojento, sua face estava coberta por uma gosma espessa e transparente.
De repente, ela esbugalhou seus olhos.
— Ei, Vie…
Suas constantes tentativas de respirar me assustaram, seus pulmões pareciam ser incapazes de suprir tanta demanda de oxigênio. Sua ofegação foi interrompida por soluços angustiantes que pressionaram meu corpo a agir.
De imediato me prostrei ao seu encontro, agarrei sua mão que tremia sem parar, não era o frio, muito menos nervosismo. Seus lábios queriam se encostar, mas sua fala era sufocada pelo peso esmagador de seu medo.
— Vie. Olha nos meus olhos, se concentre em mim.
Seus olhos suavizaram ao encontrar meu rosto tranquilizado. A respiração antes ofegante, parecia se estabilizar aos poucos.
— T-Theo…? — As palavras que antes estavam presas em sua garganta agora começavam a fluir, ainda trêmulas, mas audíveis.
— Você acha que consegue ficar de pé?
Ela deu um breve aceno em confirmação.
Com sutileza auxiliei ela se sentar, seria prejudicial erguê-la de uma vez, mesmo ela querendo se levantar era só sua teimosia falando, já seu corpo, fraquejou pendendo a retornar a maciez do cânhamo escalpelado ao chão.
— Você consegue falar?
— Por que minha cara tá toda melada? — Perguntou ao esfregar entre os dedos a saliva da bolsa.
— Meu camarada tentou te acordar — confessei. Então premeditei sua reclamação me oferecendo — Nem começa, eu limpo para você.
Minha mão livre se aproximou de seu rosto, hesitante, enquanto aguardava sua possível rejeição. Um leve rubor coloriu suas bochechas, indicando uma recepção calorosa ao meu toque. Sem objeção, prossegui, sentindo a suavidade de sua pele sob a ponta dos meus dedos.
Tocá-la não era uma experiência nova, então porque eu sinto meu rosto tão quente?
Com movimentos delicados, meu polegar deslizou com suaves pela superfície, removendo o excesso do visco pegajoso que ali se acumulava. Sua pele macia como a seda, me fez confundir com a textura de um alabastro bem polido.
Uma pequena pinta, discreta e charmosa, repousava perto do limite de seu queixo, como uma estrela solitária no vasto céu noturno.
“Sabe, você é minha válvula de escape para todo esse caos, por mais que não tenha coragem de te dizer isso, espero que você já tenha percebido.”
— Pronto. Agora que você está mais calma, poderia me dizer… o que diabos foi isso? — Cortei aquele clima estranho.
— Se eu soubesse já tinha falado. Mas se quer tanto saber, eu desmaiei, satisfeito?
Suspirei em decepção, a garota fofa de antes era uma ilusão de minha cabeça, a verdadeira era rabugenta e estava reclamando como de costume.
“Provavelmente o desmaio não foi por ela ter se arregaçado no chão. A forma que ela acordou, duvido muito que seja uma reação a saliva da bolsa, senão eu teria sofrido dos mesmo sintomas … Que saco.” Estava incomodado com essa situação, talvez, mais curioso do que incomodado.
— Então… O que aconteceu enquanto eu estava apagada?
— Marcius foi até o celeiro desligar o filtro de energia e encontrar aquela garota de antes… A Halo, lembra dela?
— Quem?
— A garota que o velho Cícero encontrou semanas atrás.
— Tinha me esquecido dela… Tá, mas e daí? A gente tem que salvar o pessoal.
— Faremos isso enquanto destruímos os lampiões de prana. Aparentemente os alastradores estão se guiando por elas.
— E quanto a barreira do babaca? Não dá para fazer três coisas ao mesmo tempo — assim que terminou sua frase ela cobriu sua boca com as mãos, uma sobre a outra, deixando sua voz abafada — Eu acabei de fazer um trocadilho?
Eu soltei uma risada contida.
— Um trocadilho horrível por sinal.
Vie puxou suas pernas para perto, eu me levantei e ofereci minha força enquanto ela se levantava com meu apoio. Sua cabeleira passou de relance por minhas narinas, percebi que não tinha odor algum.
Notei um pequeno ramo de cânhamo ao meu alcance, então o apanhei.
— Voltando ao assunto da barreira… — Respirei fundo, captando seu forte odor, que se assemelhava ao de incenso, horrível por sinal, mas ao menos confirmava que meu olfato estava em dia. — É uma longa prosa. Em resumo, a Barreira Cruzada caiu para nunca mais se erguer.
— Isso só pode ser uma piada de mau gosto… não é?
— Eu sinto muito — foi um pedido genuíno de desculpas, a culpa era minha no fim. — Marcius passou o bastão para nós. Por hora, Somos os únicos capazes de fazer algo em terra.
— Mas isso não faz sentido. Por que iríamos destruir os lampiões, se aquele birrento vai desligar o filtro da vila?
— Lembra do Ciclo de Palissy?
Seu olhar semicerrado e seu dedo à frente do lábio, só diziam uma coisa, ‘Eu não sei’.
— Você sabe que o único nome que eu decoro é o seu.
Ela abriu um sorriso provocante. Desviei meu olhar para o poste remanescente desta estrada.
— De dia os seres vivos consomem a prana, de noite a prana permeia o ambiente. O ciclo natural da Prana — disse, contendo minha voz.
— Ah. E o que isso tem haver com os postes?
— De noite, a prana é densa o suficiente para servir de ignição para o mecanismo da lamparina. Se quiser visualizar esse processo, pense em nosso moinho. Ele precisa de uma corrente de ar para girar, sem isso ele está estagnado. Não é diferente com a Prana, pense que a noite essa energia desenvolve uma correnteza própria, forte o suficiente para acender as placas voltaicas do lampião.
Ela bateu a base de sua mão fechada contra a palma aberta em um gesto fofo de compreensão. Ela me força a simplificar meu raciocínio e isso era divertido.
— E o que estamos esperando? — Sua determinação emanou de seus olhos.
— Agora que você está acordada, apenas a sua boa vontade.
— Então prove da minha boa vontade! — Disse, antes de desaparecer diante dos meus olhos, deixando apenas centelhas ao ar.
Vie se dirigiu até o poste e o golpeou com tamanha força que mal tive tempo de me virar.
O som de ferro retorcido ecoou. Enquanto caía, ela desferiu um soco contra a gaiola da lamparina. A princípio, a claridade aumentou com o golpe de seu punho, mas o núcleo acabou por estilhaçar.
Vie dissipou a energia de seus punhos com um sopro, um gesto que, apesar de desnecessário, a deixava destemida.
— Pronto?
Algo não estava certo…
Eu não conseguia me mover. Na realidade, eu não queria prosseguir, e não poderia fugir dessa afirmação. Afinal eles estavam novamente tentando retomar o controle sobre minhas decisões.
As linhas carmesins fluíam ao fundo por todas as direções, cruzando-se cada vez mais próximas de Vie.
— Eu preciso te contar algo.
— Me contar algo? Seja o que for desembucha logo. Precisamos ir.
Quanto mais ela se recusava a ouvir, mais as linhas se fortaleciam, como uma aranha reforçando sua teia.
— E se déssemos um fora daqui?
— Como é?
— Esqueça tudo. Começamos do zero em outro lugar.
— Ficou maluco?! Precisamos agir Theo! — Ela gritou e com pisões sobre a terra veio em minha direção.
— Você não está entendendo. Esvie, você é uma das únicas pessoas ao qual me importo, eu não posso perder você, vamos embora.
— Não.
— É praticamente suicídio seguir as ordens de Marcius!
— Eu sei. E as pessoas que juramos proteger?! Tem coragem de dizer isso na cara delas? Se recomponha… — eu a interrompi antes que pudesse terminar.
Sendo sincero.
Nunca me importei com o tamanho de seus seios, suas curvas ou suas partes íntimas.
Sentia-me alienado quando Bené e os outros secavam as mulheres apenas pelos seus atributos físicos. Eu estava perdendo algo que não conseguia compreender, ou como se eles estivessem profundamente errados em seus julgamentos.
Mas depois de ser esvaziado, meus desejos mais profundos emergiram, como se estivesse agindo por puro instinto ao buscar o corpo de Vie toda vez que eu a encarava.
Seus seios não eram grandes, nem muito pequenos, eram perfeitamente proporcionais. As curvas de seus quadris eram sinuosas o suficiente para minhas mãos as conduzirem.
Eu entendia agora o prazer carnal que aqueles bebuns tanto me cobraram, até porque…
Eu havia roubado um beijo dela.
Ter tanto contato com outra pessoa a princípio era algo novo, no mínimo estranho. Não sabia o que fazer, apenas apoiei minhas mãos em sua cintura. Isso era muita exposição, eu me sentiria incomodado se estivesse em seu lugar, mas ela não contestou.
A sua altura era quase parelha a minha, ela era um pouco mais alta, mas nossos olhos ainda conseguiam se encontrar, ela estava surpresa e eu incerto. Afinal, nossos lábios estavam encaixados, e isso era muito… muito constrangedor.
“Acho que fazemos isso quando gostamos de alguém.”
Após poucos segundos, desencaixei minha boca da sua, na mesma sintonia a valsa de fios carmesins recuou.
— Vie, eu gosto de você. Não posso dizer que é algo a mais do que isso, pois nem eu mesmo sei diferenciar o que eu realmente sinto agora.
Ela disse com firmeza:
— Nunca mais faça isso. Não tente me convencer a largar a minha casa, a minha vida, por pirraça sua!
Seu rosto estava coberto por um rubor ambíguo. Não conseguia decifrar se era raiva ou vergonha.
— Eu sei que errei. Prometo nunca mais repetir isso.
Admito que fiquei confuso. Eu a beijei por estar impulsionado pelo desespero de a perder, e isso ia contra um de meus pilares mais fundamentais, a liberdade.
“Eu tentei encarcerar Esvie”.
— Eu tentei te prender. Como pude me sujeitar a isso?
— Também não é pra tanto…
Enquanto estávamos perdidos na conversa, uma sombra súbita envolveu o ambiente. O ar ao redor pareceu pesar, como se uma presença colossal estivesse pairando sobre a gente. Minha bolsa estava inquieta com a situação, ela estava se contorcendo querendo dizer algo.
Pensando melhor, como um céu tão luminoso poderia ter se transformado em sombras tão densas?
Olhei para cima, mas preferiria não ter visto o desastre aos céus.
— Vie… corre — avisei, regressando passo a passo.
— Correr…? — Sua pergunta foi respondida quando subiu sua visão, seus olhos pendiam pular para fora ao avistar aquela calamidade.
— Só corre! — Gritei puxando seu braço.
As mãos celestiais, estavam desabando dos céus, prontas para esmagar tudo o que estivesse sob a área de impacto.
— Que merda! O que tá acontecendo lá em cima?! — Vie gritou acompanhando minha corrida.
Será que minha mãe conseguiu conter a incursão? Ou isso era resultado do combate entre dois seres mais próximos da potência de um arquiteto?
Independente da resposta, tudo o que importava era escapar dessa situação.
— Theo eu vou ter…
— Não. Você só pode usar isso mais uma vez! Enquanto houver outra maneira, não pare o tempo!
Corremos como se não houvesse amanhã e ainda assim não era o suficiente. A essa altura alcançamos a entrada da vila em poucos segundos. E ainda não era possível enxergar aquele maldito céu estrelado.
A linha carmesim, nos ultrapassou, delineando o caminho ao qual prosseguimos.
— Cadê todo mundo?! — Esvie exaltou sua preocupação.
É verdade, não havia ninguém na entrada do vilarejo. Havia sacos e sacos de cânhamo largados, sem ninguém ao alcance de removê-los dali, as poucas janelas que pude bisbilhotar não me permitiram encontrar sequer um morador. Nem mesmo na grande avenida, muito menos nas poucas vielas, todos os moradores do Vilarejo Archi desapareceram.
Mesmo que eu não tenha encontrado ninguém, ainda existia a possibilidades deles estarem muito bem entocados. Porém, todos que acolheram essa ideia irão morrer.
— Vie… Quantos segundos você aguenta?
— Estamos correndo, não tenho tempo para guardar fôlego!
— Uma estimativa que seja.
— Aaa… Eee… Menos de dez segundos!
Nem lascando seria tempo o suficiente para salvar quem estivesse nesta rua, “Preciso tirar essa responsabilidade dela.”
— Vie. Marcius disse que todos provavelmente todos vão se abrigar no bar do velho Cícero! — Tirei essa ideia ridícula da manga, enquanto pulamos os escombros do que um dia foi uma casa.
— Sério?! Aquele veio sempre me surpreende! — Senti a esperança adoçando sua voz.
Me doía mentir para ela, mas provavelmente doeria mais ainda ter de encarar ela desolada por não conseguir salvar ninguém.
Um dos dedos havia encostado no solo, o impacto gerou uma onda de destruição em formato de poeira. Era tamanho que começou a varrer tudo o que tínhamos percorrido. Em contrapartida, eu podia ver o fim daquela extensão transcendental, mesmo que não conseguisse me imaginar atravessando ela.
— Será que vai dar tempo?!
— Tem que dar!
Minhas pernas estavam relutantes, a linha de chegada carmesim me aguardava. Desacelerei, restando-me apenas a visão de seus cabelos prateados se afastando cada vez mais.
— Não… Não dessa vez.
Correspondendo à minha determinação, meus pés suportaram a intensa exposição à prana que provoquei. A sola do meu calçado foi corroída, as feridas abertas em meus pés pelas pedras irregulares da estrada não eram suficientes para me deter.
“Você queria fugir e largar a sua mãe? Você é Patético.”
“Por que odeia tanto aqueles que nem reconhecem sua existência? Você é Irrelevante.”
“Beijar sua única amiga por desespero? Você é Desprezível.”
Meu subconsciente estava me confundindo com suas perguntas incessantes. No entanto, havia uma questão em particular que eu estava determinado a responder.
“Até quando vai continuar negando sua própria essência?”
Eu abri minha boca e, expondo toda a minha arcada dentária, devorei aquele maldito fio.
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