A floresta albina estava manchada. A neve, cúmplice silenciosa, absorvia o sangue do Ratrator.

    Eu apenas desejava que a geada mantivesse meu jantar fresco.

    No auge de sua fúria, o desespero lhe concedeu força o bastante para estourar a ligação do tronco cortado. O ódio escorria pela sua baba — tão rubra que, por um instante, pensei em fazer um chouriço. Um desperdício de sangue, convenhamos.

    O que foi? Na fome vale tudo. Bem… quase tudo.

    Meus instintos se aguçaram. Cada fio de feno em meu corpo se aprumou. Recuei um passo, atento — ainda assim, meu foco permaneceu preso ao adversário.

    Para minha surpresa, o Ratrator também recuou.

    Uma penumbra se aproximava. Talvez fosse a noite anunciando sua chegada. Não… eu havia acordado há poucas horas. Como assim já era noite?

    Os espectadores carmins se estendiam entre as árvores, como serpentes prestes a dar o bote.

    O assobio agudo do vento foi o gatilho. A criatura disparou na fuga.

    Enquanto ele corria pela própria vida, eu enrolava neve o suficiente no pedaço de carne.

    — Vamos, vamos, vamos…

    Que diabos! Esse linguarudo me dá trabalho até nisso.

    Com a língua virada, deslizei o máximo de neve que pude juntar com o punho. Ri, um riso torto — de nojo. Tudo isso por um pedaço de língua.

    É sério, estou enjoado. Acho que vou vomitar.

    Apertei as entranhas para resistir.

    Mas acabei regurgitando, ali, de joelhos. De mim só saía água, misturada com o que restou de meu corpo, se não fosse o bastante, algo estava entalado em minha garganta. Lágrimas de esforço se misturavam ao líquido sujo que escorria de meus beiços. 

    — Argh… — Soquei meu estômago repetidas vezes, e só assim, meu rosto esfriou e minha respiração voltou. Seja lá, o que, diabos estava entalado, já havia saído.

    O vento se dividiu em lâminas.

    Que se dane…

    Por puro instinto, eu me abaixei, peguei o que restava da língua congelada entre meus dedos e, por pura teimosia, levei à boca. Só então finquei minhas garras no algodão até chegar ao solo.

    Um vendaval dilacerou as sequoias e levou junto meus pensamentos. 

    Ah, pronto.

    A penumbra não era a noite — era uma asa.

    A criatura mergulhou, com um bater de asas que mais pareciam trovões. O ratrator, aquele desgraçado peludo, nem teve tempo de gritar. A neve se ergueu, o sangue rabiscou minha “cama”, e por um instante tudo parecia calmo demais.

    Enrijeci cada músculo, porque a morte parecia me observar bem de perto. 

    — Vuu… fu… vu… fuu — o vento emitia sons, constantes e repetitivos.

    Da neve erguida, flocos se fizeram de chuva. Caiam como penas e se misturavam ao solo. Entre um floco e outro, encarei o próprio inverno encarnado.

    Com sua crista levantada, aquela colossal águia me observava à frente, suas garras enclausuram o ratrator, falando nele, acho que ele apenas aceitou sua morte. 

    — Qual foi. Quer dividir o jantar? — De boca cheia, não me amedrontei. 

    Vossa majestade poderia até levar a melhor, mas ele não iria roubar minha refeição, eu morreria por ela.

    — Fuu… vuuu… fu…. — O mesmo sussurro, desta vez outro padrão.

    A harpia inclinou a cabeça, como se tentasse decifrar se eu era presa, ameaça… ou apenas idiota.

    A julgar pela forma como me olhava, acho que ela escolheu a terceira opção.

    Com um único bater de asas, ela ergueu redemoinhos de neve. O vento cortante me chicoteou o rosto, e o cheiro do Ratrator sendo levado embora me irritou mais do que deveria.

    — Ei! — gritei, cuspindo gelo. — Pelo menos deixa um pedaço dessa bola de pelo!

    Ela não deixou nada. Óbvio. Criaturas gigantes nunca deixam nada.

    Mas enquanto subia, algo se desprendeu dela. Uma pena cristalina — enorme, translúcida, cintilando como se tivesse engolido a própria lua. Ela girou no ar, quase graciosa.

    Até cravar no meu peito.

    — Mas que— ARGH! — tropecei para trás, mais irritado do que ferido. — Que mania de me atacar por tabela!

    Agarrei a pena com força e a arranquei. Saiu fácil, sem rasgar carne demais. A ponta sequer estava vermelha.

    — Hmph. 

    Joguei a pena para longe. Ela se despedaçou como vidro congelado.

    Só então ouvi um som abafado atrás de mim — uma respiração trêmula.

    Me virei, e com o canto do olho vi o buraco cavado pela fera. A entrada, antes escura, agora revelava dois brilhos dourados.

    — Halo? — me aproximei, afastando neve e raízes com a mão. — O que está fazendo aí dentro?

    A menina encolhida, com seus cabelos brancos cheios de neve, piscou para mim. Sua auréola tremia fraca, quase apagada.

    — Ela… ela quase me achou… — sussurrou, a voz tão miúda que parecia desaparecer no ar frio.

    — Tá tudo bem. — Estendi a mão. — Ela já foi. Consegue ficar de pé?

    Ela assentiu devagar.

    Foi quando senti.

    Uma fisgada.

    Uma pressão.

    Um… silêncio dentro de mim.

    Meu coração pulou uma batida.

    Depois outra.

    — Hã… — toquei meu peito. — Isso é… normal? Acho que não é.

    O ar ficou pesado. Ou talvez fosse eu caindo.

    — Halo… só— se afasta um pouco, tá? Não quero cair em cima de você.

    O mundo virou branco.

    Depois preto.

    Depois nada.

    Acordei com cheiro de lenha queimando.

    Meus olhos se abriram devagar, queimando com a luz da lareira. Uma cabana de madeira, pequena, aconchegante, com prateleiras tortas e ervas penduradas no teto. Pelos lados, peles grossas bloqueavam o vento.

    Eu estava sobre uma cama. Uma cama de verdade. Com cobertas. Com almofadas.

    Privilégios inalcançáveis há algumas horas.

    — Finalmente acordou… — disse uma voz feminina atrás de mim. Doce, morna, quase… manteiga derretida.

    Me virei devagar.

    Uma mulher aproximava-se, segurando uma tigela fumegante. Seus cabelos vermelhos eram familiares demais.

    — Meu filho — ela sorriu, tocando minha testa com a ponta dos dedos — você me deixou preocupada.

    Filho?

    Meu filho?

    Eu a encarei. Procurei em algum canto da memória. Nada. Uma névoa densa. Mas… havia algo no jeito como ela respirava, no jeito como suas mãos tremiam ao me tocar, que parecia real demais.

    — Quem… é você? — minha voz saiu rouca, fraca. — Eu… conheço você?

    Ela sorriu triste.

    Um sorriso que parecia ter sido treinado para esconder séculos de dor.

    — Claro que conhece, Theon. Eu sou sua mãe.

    Mas que caralhos….

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