Capítulo 10 - Noite Estrelada (Parte 4)
No inverno, ocorre um fenômeno chamado solstício, quando os dias se tornam mais curtos e as noites se prolongam. Era difícil ignorar essa eternidade gélida. Afinal, o que mais explicaria essa noite sem fim?
O som agudo ecoava incessantemente, sem indícios de cessar. Da mesma forma, a ventania abafada continuava sem fim. Perturbado pelo incômodo zumbido e pela fria correnteza que me cortava, decidi enfrentar de frente o enigma que me consumia.
Dois destroços colidiram acima de mim, e cruzei os braços instintivamente em proteção. À medida que os detritos passavam rente ao meu corpo, uma visão se revelou diante dos meus olhos: Elyza, minha mãe, segurando com firmeza as correntes que pareciam sustentar o próprio céu.
‘Bingo… todo esse tempo você queria alcançar os céus, não o Tecelão…’, sussurrou a voz fatigada do meu ego, lutando para se manifestar em meio ao caos mental.
Pisquei uma vez, depois duas, mas, na terceira, relutei em abrir os olhos novamente.
O cenário estava prestes a mudar. Minha mãe provavelmente já havia resolvido tudo, certo? Quando acordasse, esperava estar em uma cama confortável, saboreando bolinhos de chuva no café da manhã…
— Theo… acorda… você está… — uma voz distante gritou meu nome. Ou talvez fosse apenas o chiado irritante interferindo em seu chamado.
Então criei coragem, forcei meus olhos a se abrirem mais uma vez. Desta vez, um pouco mais lúcido, percebi a merda do problema que precisava encarar.
Eu estava em queda livre.
Modificador de Probabilidade: ERRO%
“Modificador de probabilidade?”
Sem tempo para me acostumar com a estranha mensagem, uma corrente foi lançada para me resgatar. No entanto, seus elos começaram a desintegrar-se em pó, forçando-a a se desfazer antes que a deterioração a consumisse por completo.
Uma sensação de vigilância pairava sobre mim. Quem, ou o que, estava por trás disso? A resposta estava fora do meu alcance. Me restando apenas a paranoia sobre alguém que claramente insistia em minha fatalidade.
Mesmo relutante, eu decidi agir. Virei para um lado, depois para o outro, mas tudo estava fora de alcance. Estendi minha mão para pegar minha bolsa, mas ela havia desaparecido.
“Acho que vou ter que improvisar.”
As linhas vermelhas que tanto me atormentaram agora estavam soltas, sem destino algum — que irônico.
Com um impulso de determinação, meus braços estavam para agarrar os fios de energia rubra que flutuavam ao meu redor.
“O destino que vocês traçam eu vou moldar.”
Aqueles fios sentiram pela primeira vez o tato mortal quando as agarrei. Eles eram flexíveis como a própria vida, mas resistentes como o destino. Minha boca chorou, clamando pelo amargor carmesim, mas dessa vez não pude atender suas expectativas.
Fazendo de meu torso o carretel, e a pipa os céus, guiei a imensidão escura por intermédio dos fios pulsantes. O panorama havia ganhado mais um astro, que se distorcia conforme o destino era puxado. Uma vez estendido, percebi que ele não era elástico, talvez ele não tivesse mais uma rota, e eu estava orgulhoso disso.
E então, no ápice da minha queda, quando tudo parecia perdido, os pinceis do ‘acaso’ se estabilizaram, antes de se partir como um galho prestes a desgarrar do tronco.
De bruços, aterrissei sobre os escombros, onde o odor da morte impregnou minhas narinas, a poeira ofuscou parcialmente minha visão, e os destroços cravaram-se na sola dos meus pés nus.
— Vie! — Gritei, preocupado, mas não avistei nemhum sinal dela em meio a devastação ao redor.
“Ela tem que ter sobrevivido aquela destruição.”
— Vie! — Clamei novamente, esperando por uma resposta que não chegava.
Subi sobre um amontoado de escombros, e o bar do seu Cícero se destacava intacto. Tudo ao redor estava devastado, menos aquele bendito bar.
À frente do boteco, inúmeros corpos de aldeões estavam espalhados pelo chão. Eles não pareciam cadáveres, mas algo de muito errado estava acontecendo com eles; estavam petrificando-se lentamente diante dos meus olhos.
— Mas que merda… — murmurei para mim mesmo enquanto corria até o local, examinando desesperadamente cada um dos corpos.
Benette, Zeferino… todos petrificados.
— A Vie está bem. Ela está bem… — repetia para mim mesmo, tentando me convencer enquanto revirava os corpos em busca de qualquer sinal dela.
— Me pergunto. Se pronúncia Es-vai como sugere ou Es-vie? — Uma grossa e distorcida voz, buscou a minha atenção.
De imediato olhei para trás.
Aquele estranho estava protegido da cabeça aos pés com uma armadura negra perfeitamente ajustada ao seu corpo, como se não precisasse de mais revestimento para assegurar quem estivesse dentro.
Havia fissuras pelo seu corpo que irradiavam uma energia carmesim, ao qual saiam de sua pele metálica pela folga na região do pescoço completavam sua imponência. Essa estranha energia se dividiu em uma capa e um cachecol; o cachecol permanecia em constante combustão para o lado esquerdo; já a capa soltava incessantes centelhas em suas pontas rasgadas.
Tive que erguer minha cabeça para encará-lo, mas sem sucesso, uma vez que ele usava um capacete, embora tivesse uma abertura em ‘V’ na altura de seus olhos.
Modificador de probabilidade: 16,6%
”É a mesma mensagem de antes. Mas a dele tem alguma porcentagem”.
— Cadê ela? E quem é você? — gritei, minha voz carregada de preocupação.
— Basta! — exigiu ele, cruzando os braços com autoridade — Você não está em posição de exigir alguma coisa. Responda minha pergunta.
Me sentia subjugado por sua postura imponente, mas decidi responder.
— Se fala Es-vai, mas se escreve Es-vie.
O indivíduo anti-balístico colocou a mão na frente de seu capacete, parecendo ponderar minha resposta. Sua aparência revestida de seriedade, não refletia sua curiosidade.
— Um nome um tanto distinto dos demais. Bem, com o alvo certo em mãos, só me resta esperar — disse, acomodando-se nos degraus da entrada do bar.
“Alvo certo?” Eu não entendia o que ele queria dizer com isso.
— O da armadura! O que significa isso? — Questionei, mas ele parecia mais interessado em seu próprio pensamento do que em me responder.
— Eu não vou repetir mais uma vez — interrompeu-me abruptamente, como se antecipasse minha pergunta.
— Eu não vou… — fiquei perplexo. Ele parecia ter previsto minha resposta antes mesmo que eu a pronunciasse.
— Garoto, estamos numa zona perigosa. Se você não quiser morrer engasgado com sua própria saliva, é melhor calar a boca — advertiu, com um tom sério e ameaçador.
— Não me importo. Me diga onde a Esvie está! — Exclamei, avançando em sua direção. Apesar de sua posição sentada, sua presença permanecia inabalável.
— Ei menino, cuidado com o que procura. Estou avisando de antemão, você não vai querer ser meu inimigo.
— Você virou meu inimigo, assim que fez da minha amiga seu alvo.
Ele riu, um som sinistro que enviou calafrios pela minha espinha.
— Gostei da sua atitude, pequenino.
“Desgraçado! Ainda tá zombando de mim?”
Ele ergueu três dedos, bem pontiagudos por sinal.
— Responderei a três perguntas suas, caso consiga carregar um objeto para mim.
Ele cruzou suas pernas, o tilintar do encaixe das juntas metálicas ecoou no silêncio tenso entre nós.
“Pera, aquilo no pé dele é um salto?”
— Tá encarando muito, garoto. Vamos, responde logo.
Ergui meu nariz, determinado a não me deixar intimidar.
— De repente ficou com pressa?
— Diga apenas se aceita ou não.
— Eu aceito.
— Então me acompanhe — ele se levantou e abriu as portas do bar.
Assim que adentrei o recinto, meu olhar foi imediatamente capturado por uma pequena cratera no centro do ambiente, alinhada com um rombo proporcional no teto. O indivíduo moveu-se em direção ao balcão principal, habilmente contornando o buraco, e apoiou os cotovelos na bancada, encarando-me com intensidade.
— Se quer saber o paradeiro da minha presa, basta recuperar o que está nesse buraco.
Observando o ser diante de mim, percebi que ele absorvia prana em quantidades extraordinárias. Seus filtros pareciam ultrapassar a capacidade de Marcius; talvez estivesse no mesmo patamar que minha mãe.
Ele era como a própria encruzilhada dessa energia no ambiente, um monstro a poucos passos de drenar a prana do meu corpo. Qualquer golpe revestido de prana seria inútil, pois ela seria consumida antes mesmo de tocá-lo. E, como se não bastasse essa humilhação, o que quer que estivesse abaixo estava drenando o que restava.
— Já percebeu que isso vai além de um simples objeto. Você pode ser mais interessante do que eu pensava.
Instigado, decidi investigar o conteúdo do buraco.
— Não pode ser… — minha voz saiu quase inaudível, embora eu tenha fingindo coçar o nariz.
Eu havia acabado de nivelar o nível deste desafio.
— Pretende desistir? — Provocou-me.
Com o objeto em mãos, dei um puxão. Era pesado, mas não suficiente para causar aquela cratera.
— Onde está Esvie? — Indaguei enquanto segurava a alça da minha bolsa.
— Excelente, pequeno. Você atendeu minhas expectativas.
— Já peguei essa bolsa, agora responda a minha pergunta.
— Não. Disse que responderia a três perguntas, mas nunca a ordem. Deixaremos o melhor para o final, por hora se contente em elaborar as outras duas perguntas.
— Que seja. O que aconteceu com os aldeões?
— Eles transbordaram. Desmaio, insuficiência respiratória, são alguns dos sintomas que vocês seres perecíveis sentem ao serem expostos em quantidades exorbitantes de prana. Seus poros imaturos se fecham na intenção de conter, mas falham por não serem capazes de controlá-los com exímio. O que leva à erupção da prana por todo seu corpo, iniciando o processo de petrificação. Num geral são belos decorativos para uma sala de estar.
— A Vie está bem, né? Ela não petrificou, certo?
— A Vie…
Ele fez isso de novo.
— Dá para esquecer ela um pouco? Essa será a minha última resposta. Se concentre na próxima.
— Esses modificadores de probabilidade acima de nossas cabeças. O que eles tem haver com a gente?
— Duas perguntas pertinentes. Bom trabalho em não gastar meu tempo, pirralho.
— Tsc… — fechei meu semblante. Se ele não fosse tão forte, já teria triturado essa armadura.
— O que foi? Quem causou essa zona na realidade foi você, sua praga.
“Eu? O que eu poderia…”
Só uma coisa passou em minha mente, o fio ao qual devorei.
— E se foi eu mesmo. O que eu desencadeei? — Dei de ombros.
— O fim de uma realidade.
— E daí? — Deixei a arrogância escapar de meus lábios.
— “E daí?” — Sua profunda respiração parecia rasgar sua garganta. — Quando o limiar do destino é maculado, tudo entra em colapso, regredindo a realidade para o seu estágio primordial: o caos. Neste exato instante, palavras podem se tornar realidade e ações podem se tornar nulas. Tudo está fora do controle do Roteiro.
— Roteiro?
— Você quer mesmo trocar a sua amiga por essa pergunta? — Ele inclinou sua cabeça para trás — Se bem que, é a melhor opção a ser feita.
“Tem algo de errado nesse cara enlatado. Ele sabe de mais. Não existe nada sobre o estágio primordial da realidade”.
— Disse sem pensar. Vou manter minha última pergunta.
— Garoto. Vem cá pra que insistir nela? Você não vai conseguir consumar essa relação.
Meu rosto aqueceu como uma chaleira prestes a explodir.
— Só terminar de responder logo essa pergunta!
— Crianças… — então pegou o coquetel aparentemente vazio — Qual a minha porcentagem?
Eu o observei sem entender, “Como ele não sabia?”
Modificador de Probabilidade: 20%
“Parece que seu modificador aumentou.”
— Atualmente está em vinte por cento.
— Então há vinte por cento de chance de que quando eu virar esse recipiente, ainda haja alguma sobra. Quer apostar? Uma pergunta adicional caso você vença.
— Odeio apostas. E o que isso tem haver com a pergunta?
Então ele virou o copo sobre a pequena fresta de seu capacete e um líquido magenta escorreu.
“Não é possível… isso estava… vazio,” pensei, perplexo diante daquele milagre.
— Pitaya? Quem escolheu essa bebida tem bom gosto — elogiou antes de estilhaçar o recipiente. — Grave na sua mente, isso só é possível pois minha aposta alcançou os vinte por cento.
— Como isso é possível? Você não pode simplesmente querer algo e isso acontecer.
— Pequenino, existe sentido no caos?
Ele estalou os dedos metálicos, gerando um som que reverberou em minhas reservas de energia. A prana ressoava em resposta, enquanto o bar se enchia com aquele som familiar.
— Esse é o Badalar de Orin.
— Esse é… você é ridículo — murmurei.
— Apenas não gosto de desperdiçar tempo com trivialidades do presente, quando o futuro é incerto — respondeu com despretensão.
Das pontas rasgadas de sua capa, fios flamejantes se teceram, eles se espalharam pelo local quase me acertando no processo.
Eu o encarei e ele apenas riu de volta.
— Anime-se, vou responder a sua última pergunta.
Uma parede de fios chamuscados se ergueu ao lado, irrompendo em chamas como se estivessem queimando a própria essência da realidade. Em um instante, o espaço à esquerda desvaneceu, deixando para trás apenas as tonalidades monótonas do preto e branco, que permearam o cenário como os últimos vestígios de um mundo desvanecido.
Mesmo que tudo ao nosso redor se transformasse em uma paleta de tons cinzentos, eu sabia que conseguiria reconhecê-la.
— Vie?! — Chamei e corri em sua direção, meu coração batia esperançoso.
Ela estava deitada ao lado do buraco, seus olhos encontraram os meus e um sorriso aliviado se formou em seus lábios ao me ver.
Ambos tentamos desesperadamente atravessar aquela barreira invisível que nos separava, nossas mãos estendidas na esperança de alcançar o outro lado. Mas, apesar de nossos esforços, ainda permanecemos separados por essa barreira dentre dimensões.
— O que você fez com ela?!
— A realidade em que nós vivemos é feita de camadas, mas isso é uma conversa que você ainda não está preparado para ter.
— Liberte ela. Agora.
— Ela nem está presa para começo de conversa. Apenas estou protegendo ela, até que tudo esteja resolvido, sabe, o destino dela foi tirado de percurso.
— Vá para o caralho com o destino! Você mesmo disse que ela era o seu alvo!
Então aquele desgraçado começou a rir como um louco.
— Eu nunca disse que ela era meu alvo. Você ainda não entendeu? — Ele se levantou, e se direcionou até mim.
Eu o encarava, segurando firme a vontade de despedaçar cada parte daquela armadura. Decidi não dizer mais nada; meu próximo passo seria romper aquela barreira a qualquer custo. No entanto, era evidente que precisaria superá-lo primeiro.
— O erro que trouxe essa incursão, foi o mesmo que comprometeu essa realidade. E ele é você, Theo D’Arc.
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