Capítulo 13 - Neve no verão
24 de Dezembro, Ano 770.
Redor do Vilarejo Archi, Ástrea.
O sol brilhava intensamente, aquecendo a colina onde eu e Vie estávamos deitados. Era verão, e o calor tornava o ar ao nosso redor quase palpável. O verde das folhas e o dourado dos campos de cânhamo abaixo da colina criavam um contraste vívido com o céu azul sem nuvens.
De onde estávamos, podíamos ver a aldeia ao longe. Pequenas casas de pedra e madeira se agrupavam em torno da praça central, onde os moradores se ocupavam com suas tediosas tarefas diárias. Além da aldeia, os vastos latifúndios de cânhamo se estendiam até onde a vista alcançava, suas folhas dançavam suavemente com a brisa do meio-dia. Bem, eu esperava que o cânhamo não estivesse alterando a brisa.
Circundando tudo, como sentinelas antigas e majestosas, estavam as sequoias gigantes. Suas copas altíssimas pareciam tocar o céu, oferecendo uma proteção quase prânica 1 ao pequeno mundo que considerava como meu lar. As sombras que lançavam eram sempre bem-vindas, elas salvaram muitas tardes escaldantes deste maldito país tropical. Ah, Como daria tudo por uma passagem só de ida para o norte.
Vie estava ao meu lado, seu cabelo branco espalhado como uma nuvem sobre a grama. Seus olhos cor de mel brilhavam com a luz do sol, refletindo uma calma que eu invejava. Ela sempre era tão ativa, ver ela deitada ao meu lado, olhando para o horizonte com tanta paz, me trazia um raro sentimento de conforto.
— Olha só, Theo — disse ela, apontando para uma harpia que circulava alto no céu. — Aquele falcão deve estar procurando o almoço.
— Aquilo não é um falcão, é uma harpia.
— E qual é a diferença? Tem asas, voa, e é grande, pra mim é um falcão.
Com desdém abri um leve sorriso. Ela estava certa em quase toda sua descrição, quase; as harpias portam uma envergadura de mais de cinco metros, não é qualquer ave de rapina, elas são o segundo maior predador aéreo de Astrea.
— Uma das diferenças é a capacidade que as harpias têm em utilizar a prana no ar. Percebe que ela não atacou nenhuma vez? Seus olhos podem enxergar a prana. Ela sabe quão refinada é a membrana da barreira cruzada, por isso não ataca. Tenho que dar o braço a torcer, graças à barreira do sargento babaca, não vamos ser o almoço dela.
— Bem, pelo menos ele é bom para alguma coisa — ela encarou a criatura como se fosse seu adversário. — Será que vamos ser fortes o suficiente para enfrentar ela quando sairmos em patrulha?
Eu dei de ombros, ainda observando a harpia.
— Talvez. Mas por enquanto, estou contente em não ser o prato principal dela.
Meu cabelo ruivo provavelmente estava uma bagunça com o vento, mas eu não me importava. Era raro ter um momento como este, sem Marcius, sem deveres, apenas aproveitando o presente. Deitei a cabeça de volta na grama, sentindo o calor do sol na minha pele e o som distante das atividades da aldeia.
Olhei para a pequena cerca atrás de nós e o poste solitário que parecia vigiar nosso pequeno refúgio. Este era nosso lugar, um canto do mundo só nosso, onde podíamos ser apenas nós mesmos, longe das expectativas e das responsabilidades.
— Sabe, Esvie — comecei, virando a cabeça para olhá-la — Às vezes, eu queria que o tempo parasse nesses momentos. Tudo parece tão… perfeito.
Ela sorriu, aquele maldito sorriso que sempre me atraia.
— Sei não, Theo. Esse sol tá começando a me dar nos nervos, eu detesto essa onda de calor, quer saber eu detesto o verão.
— É tão ruim assim?
— É! — Reforçou. Ela bufou claramente irritada — Dezembro está prestes a acabar e nenhum sinal de neve, como sempre. É pedir demais que neve, pelo menos uma vez na vida?
Eu ri baixinho, desviando o olhar para o horizonte.
— Nunca houve registro meteorológico de geada em Astrea. Quem dera neve — respondi com toda a calma do mundo — Nossa região é tropical demais pra isso e você sabe disso.
— É uma merda, de verdade — repetiu sua reclamação, olhando para o céu azul sem uma nuvem à vista — Eu daria qualquer coisa para ver neve, só uma vez.
Eu a observava de relance, sua frustração era quase palpável. Vie tinha o pavio curto e uma boca suja, mas essa era uma das coisas que eu mais gostava nela. Sua paixão e intensidade contrastavam com minha serenidade, e de certa forma, isso nos equilibrava.
— Talvez um dia possamos viajar para o norte — sugeri, mantendo minha voz serena. — Dizem que em Escandinava a nevasca é severa e constante o ano todo.
Ela virou a cabeça para me olhar, com seus olhos cheios de ceticismo.
— E quem vai pagar essa viagem? Não somos exatamente ricos, rei do kã preto.
— Eu sei — admiti, coçando a cabeça — Mas eu sou um gênio, lembra? Talvez eu possa encontrar uma maneira.
— Você pode até ser um pouco inteligente, mas isso ainda não paga uma viagem ao norte.
Um leve suspiro desenhou um sorriso em meus lábios. Essa leveza em sua voz, a calmaria ao redor, preservava o pouco de humanidade que restava em mim.
— Sabe, Vie, acho que não precisamos ir para o norte para ver neve — ela me encarou, curiosa, com um leve arqueamento de sobrancelha — Seu cabelo é tão branco e puro quanto a neve mais fresca. É como se carregasse um pedaço do inverno com você.
Vie cruzou os braços, inclinando a cabeça para o lado. Seus lábios formaram um beicinho, e seus olhos grandes e brilhantes transbordavam uma doçura quase irresistível.
— Cuidado, Theo. Esse tipo de conversa pode fazer uma garota pensar que você tem um coração.
Eu sorri, mas antes que pudesse responder, um som reverberou por todo o local, um zumbido agudo que penetrava meus ouvidos como uma lâmina. Esse som sempre trazia uma sensação de urgência avassaladora, uma convocação que não podia ser ignorada. Era o professor, o babaca que odiávamos, tocando o sino de orin novamente. E, claro, ele sempre escolhia os momentos mais inoportunos para nos chamar, como se tivesse um sexto sentido para saber quando estávamos prestes a relaxar. Nosso tão aguardado intervalo não podia escapar de suas interrupções irritantes, como uma sombra persistente que nos roubava qualquer esperança de paz.
Respirei fundo, mas a preguiça falou mais alto; preferia ficar ali mesmo. Bom, pelo menos até Marcius resolver nos atazanar. Estranhamente, Vie se levantou, quebrando nosso pacto de desrespeitar e evitar o fim do intervalo.
— Theo, eu preciso ir — ela disse, sua voz carregava um tom que me fez estremecer. Por que ela teria que ir sozinha? Nós sempre íamos juntos. Algo estava errado.
De repente, uma dor aguda invadiu minha cabeça, como se meus pensamentos estivessem sendo rasgados em pedaços. Imagens confusas e fragmentadas se infundiam diante dos meus olhos, a realidade se desfazia em lapsos perturbadores.
Afinal, esse momento nunca passou de um memento.
DEVORE O FIO!
25 de Dezembro, ano 774 a.R.
Centro do Vilarejo Archi, Ástrea.
Dentro de mim, uma fraca chama buscava se alimentar constantemente com a esperança de que Vie estivesse viva de alguma maneira – talvez tivesse escapado pelas frestas entre os dedos ou destruído a própria mão de Deus. Vie sempre dava um jeito, ela não poderia ter morrido, não mesmo. No entanto, o calor dessa esperança se esvaiu após alguns segundos sem qualquer resposta.
Em vez de sangue, seu corpo explodiu em uma onda de prana, dispersando-se no ar em um brilho efêmero.
— Não, não, não, não, não… Não! — Minha voz ecoou em desespero, a dor da perda rasgava minha garganta.
A esperança que eu abrigava em meu peito encontrou seu leito em meus olhos. Aquela cena se repetia incessantemente em minha mente, como um pesadelo interminável. A barragem do meu âmago se rompeu, inundando minha alma com o mais puro desespero. Minhas pernas tremiam enquanto eu presenciava a morte tão de perto que meu corpo e espírito se lembraram de que eu era perecível, de que eu era vencível, e de que, a qualquer instante, eu poderia ser o próximo.
Como fui tolo. Aquela sensação de segurança sempre foi branda, sempre foi falsa, e a culpa era minha por me recusar a enxergar a verdade. E agora, minha mãe e Vie estavam mortas…
Então meu corpo, não suportando, pereceu no chão — novamente.
De joelhos, tentei coletar, a todo custo, as centelhas que pairavam no ar, mesmo que minhas garras as extinguissem toda vez que as tocava, eu continuava tentando juntar na esperança de reaver a minha amada.
Em desolação, meus olhos marejaram. Minhas mãos, em oferta, se umedeceram. Estava convencido de que seriam minhas lágrimas, mas era gélido demais para ser. Direcionei o olhar para o ponto branco sob a negritude de minhas garras.
— Neve…? — sussurrei incrédulo.
Um a um, observei os pequenos ornamentos esbranquiçados descerem dos céus, como se as estrelas estivessem se solidarizando com o momento, enviando seu conforto em forma de flocos gentis.
De repente, um gosto nojento se formou em minha língua, uma mistura horrorosa de angústia, arrependimento e culpa.
— Mas que merda! Os Tecelões estão tirando tudo de mim, e agora você insiste em tirar meu sofrimento?! — Gritei, mesmo sabendo que ‘ele’ não ouviria.
Então o nojo se transformou em ânsia que por sua vez, conduziu minhas emoções goela acima, na intenção que eu as vomitasse. Tampei minha boca com força, impedindo que parte de minha essência transbordasse de meu corpo.
Enquanto eu resistia ao roubo das emoções que tanto cultivava. Aquele que não podia ser visto, resolveu se pronunciar.
— Você é um erro invisível no roteiro, forjado fora do trajeto das linhas do Destino. Pelo menos foi isso que pensei à primeira instância. Mas sabe, até mesmo os Arquitetos cometem erros. O caçador estava certo, isso é obra de um Devorador.
Meus olhos se arregalaram. Ele havia dito algo impronunciável.
— Me chamou? Pensei que nunca mais ouviria tal palavra da boca de um Arquiteto — aquela voz agressiva rasgou novamente meu corpo, buscando seu próprio espaço. E, das costas de minha mão, sua boca surgiu.
— A fissura entre tudo e o nada, não passa de uma boca? Que deplorável.
— Olha a boca. Se tentar me rebaixar de novo, terei que devorar você, seu Arquiteto de merda — retrucou o Devorador. Então em descontração, ele fisgou com a língua um floco de neve. — Geladinho. O que seria isso?
Ele agiu como se não se importasse com quem estivesse ali, mesmo sabendo seu peso sobre o mundo. Devido a isso, uma dúvida consumia minha mente, “O quão forte é um Devorador?”
— Era de se esperar que você não soubesse de nada. Farei questão de que esse seu hospedeiro seja sua única e última tentativa de ressurgir.
— E como pretende exatamente fazer a inexistência deixar de existir?
Como resposta, todas as mãos presentes, que até então permaneciam imóveis, direcionaram seus dedos indicadores na minha direção.
— Antes, se atente ao seu receptáculo que está cedendo.
Eles estavam firmando um embate?
— Centelha, por que permanece cabisbaixa? Está acovardada por sentir o gosto da morte?
Ele poderia me escorraçar à vontade, se preferir; não me importava mais. Afinal, tudo o que me restou foram minhas lamentações. Por isso, eu estava ciente de que, se vacilasse, perderia o último elo que me ligava à minha mãe, e ela…
E nunca me perdoaria por esquecê-las.
— O que foi, está mordendo a língua para não perder suas emoções? — Sua amaldiçoada voz, havia se realocada, pois sua boca se rearranjou em gargalhadas sobre minha bochecha — Vou lhe contar um pequeno segredo, mera centelha. Você morreu três vezes nesses últimos minutos. Não acha que é burrice continuar temendo a morte? Ceda e aceite que suas emoções não passam de alimento.
“Três vezes?”
Mordi minha língua, suprimindo a extrema doçura da curiosidade. Eu não estava conseguindo mais segurar, o desejo de saber sobre o que ele dizia, se destacava dentre todos esses sabores emocionais.
— Vamos, deixe de resistir a tentação. Você não quer tanto saber quem é o maldito que tanto desgraça sua ínfima vida? Apenas, olhe para cima.
Meus instintos floresceram sobre os poros da minha pele como um crisântemo, enquanto o gosto da morte ainda mais putrefazia meu paladar. Contudo, recusava-me a acovardar-me.
“Olhar e morrer, ou ignorar e sofrer”, pensei, cedendo cada vez mais à tentação. Desta vez, nada me impediu, como se eu recuperasse meu próprio direito de ver o que sempre esteve diante de mim. Quem sabe, aquele infeliz tenha me concedido a oportunidade de olhá-lo devidamente.
Eu o observei com olhos arregalados, minha respiração se acelerando à medida que o Tecelão se materializou diante de mim. Era como assistir a uma estrela nascendo no epicentro de uma incursão, no ponto mais luminoso daquela noite estrelada. Sua presença era avassaladora, uma força da natureza que parecia dobrar a realidade ao seu redor.
Uma presença imponente que absorvia a luz, transformando-a em uma aura de poder puro. Marcas luminosas percorriam seu torso e membros, pulsando com o poder das estrelas e constelações. Embora sua face estivesse escondida em uma escuridão, dois olhos rubros brilhavam intensamente.
De suas costas, imensas asas cósmicas se estendiam, cada pena uma galáxia em miniatura, com olhos brilhantes que observavam o fluxo do tempo e das possibilidades. As asas se misturavam com o pano de fundo estrelado, projetando uma aura de poder inigualável.
Sobre sua cabeça, uma coroa etérea flutuava, composta de símbolos arcanos e constelações que se rearranjavam constantemente, refletindo o fluxo e refluxo do destino. A coroa emitia uma luz suave, quase hipnótica, que inspirava tanto temor quanto reverência.
O chão sob seus pés era uma série de plataformas flutuantes, parecendo pedaços do próprio céu estrelado fixados em uma superfície sólida. Cada passo que ele dava ressoava como uma sinfonia, harmonizando-se com as esferas celestes. Era como se o universo inteiro segurasse a respiração para cada movimento do Tecelão.
Ao seu redor, o espaço se preenchia com aquelas malditas linhas carmins, como se o próprio tecido do universo estivesse sendo constantemente redesenhado em sua presença. Cada movimento seu era gracioso e calculado, como se cada gesto carregasse uma importância que nós humanos jamais teríamos.
Modificador de probabilidade: 33,3%
Eu sentia uma aversão crescente, uma luta interna contra o sentimento de devoção que começava a se manifestar em meu paladar. Era uma emoção pura e irresistível, livre de qualquer gosto mundano. Ela gerava uma atração que me puxava para adorar o ser que eu mais queria odiar. Esse sentimento de devoção era insuportável, quase doloroso, como se minha própria alma estivesse sendo atraída pelo magnetismo divino do Tecelão.
E essa devoção nunca mais faria parte de meu paladar.
Sem pensar duas vezes, triturei as sensações e, quando moídas, as reuni de forma repugnante com minha língua, para então engoli-las de uma só vez.
Esperei que isso me preenchesse, mas infelizmente nem a sensação de esperança estava mais lá. Gradualmente, o vazio intermitente me dominava.
“Eu consumi todas as minhas emoções. Então porque me sinto tão vazio? Será que cometi algum erro?”, minha mente utilizava de seus últimos resquícios para encontrar uma resposta para o vazio eminente que me consumia. Uma moleza recaiu sobre meu corpo, minhas pálpebras desciam sem minha vontade, como se minha participação estivesse chegando ao fim.
Antes que eu adormecesse, o Devorador insistiu em me desejar uma boa noite.
— Apenas durma, minha centelha. Enquanto o vazio que emerge de suas entranhas, consuma o mundo.
- Aquilo que contém prana, ou, um adjetivo para tudo aquilo que não detém lógica[↩]
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