Capítulo 15 - A luz guia do Sul
“Aguente, Elyza! Aguente!” Minhas preces mentais eram tão inúteis quanto folhas ao vento. A cada segundo, o peso do caos ao meu redor esculpia minha mente com golpes de martelo. Eu queria desistir, fechar os olhos e finalmente repousar.
Mas a morte digna que tanto busquei sempre parecia escapar de minhas mãos.
— Tio… por que as nuvens estão pretas e fedidas? Tô com medo… — A voz suave e inocente da pequena menina em meus braços rompeu minha concentração. Seus olhos grandes, que ainda não compreendiam o horror ao redor, buscavam em mim uma proteção que, naquele momento, eu temia não conseguir oferecer.
Estávamos cercados por uma densa fumaça, sufocante e implacável, entre os campos de cânhamo em chamas. O THC liberado pela queima poderia nos envenenar com seus prazeres alucinógenos. Eu não podia permitir que ela fosse corrompida por essa névoa.
— Liberação de Prana: Camada Dupla! — Bradei, e minha prana respondeu ao comando.
Uma película fina como a mais delicada das teias envolveu todo o meu corpo, e, por extensão, a pequena Halo, que se apertava contra mim, também foi coberta pelo brilho ciano que há tempos refinei com disciplina. Minha prana estava suficientemente purificada para filtrar as toxinas e boa parte do gás carbônico, mas o risco permanecia: respirar demais naquela atmosfera seria fatal.
— Halo, ouça-me bem. Não respire essa fumaça, está bem? — Ela acenou com a cabeça, seus pequenos olhos ainda confiantes em mim. A auréola que brilhava sobre seus cabelos se moveu junto, uma visão angelical contrastando com o inferno ao nosso redor.
Mas para mim, isso ainda não era suficiente — que cansaço. Vou utilizar até a última gota do Marco gravado em meu espírito para salvar essa criança, ela não merecia participar de tamanho massacre.
“Ó Égide, protetor imbatível, uma vez mais rogo por teu escudo. Concede-me este voto: carrega sobre mim o fardo da respiração dela.”
Este voto traria a responsabilidade da falha de Halo como um fardo para que eu resguarde, se ela não conseguir prender a respiração por tempo o suficiente, meus pulmões aguentariam por ela. Como é de praste a prana aumenta a capacidade física do usuário quanto mais ele desenvolve ela em seu corpo, graças a isso: concentrar mais, ou, diminuir o gasto de oxigênio em seu corpo são apenas pontas do que se pode aprimorar.
E, mesmo que fosse o último fôlego que eu desse, garantiria que ela respirasse em segurança.
Sem tempo a perder, lancei-me numa corrida desenfreada através da opressiva escuridão. Os caules que chicoteavam meu corpo tornaram-se uma mera sensação distante à medida que me embrenhava mais fundo na mata. A fadiga ameaçava me derrubar, mas dessa vez não era apenas o cansaço; havia um propósito mais pesado sobre meus ombros.
O “Sagrado Tesouro do Vaticano: Tereza”.
Uma cruz dourada, imersa nas lágrimas do pai dos desafortunados. Tão vasta que poderia envolver qualquer alma clemente em sua sombra. Diziam que a filha do Égide, em sua compaixão infinita, forjara Tereza como o mais sublime de seus atos, um símbolo capaz de proteger a esperança e aniquilar qualquer tormenta que ousasse apagá-la.
“Preciso entregá-la a Elyza, custe o que custar.”
— AUUU! AUUUU!
Os uivos ecoaram distantes, um ao norte, outro a leste. Estava cercado. Os Alastradores estavam cada vez mais próximos, guiados pelo epicentro etéreo que a Incursão havia provocado. Ah, como doía lembrar que, em meu esforço de proteger os alunos, acabei entregando a eles uma ilusão, uma peneira para cobrir a luz ofuscante dos problemas. E agora, o Destino seguia seu curso imutável, implacável.
— Cof… cof… — A tosse seca de Halo me alertou. Ela estava no limite. Mas o fim daquele inferno parecia tão distante quanto a redenção que busquei.
Logo senti minha própria garganta enrijecer, os pulmões se apertando enquanto o voto de proteção se manifestava. Eu agora carregava o fardo de sua respiração. A cada segundo, o peso do ar envenenado tornava-se mais brutal, e ainda assim, não podia ceder.
“Destroços?! O que está acontecendo na vila?” Meus reflexos, antes afinados pela experiência, agora pareciam falhar. O corpo começava a se desalinhar da mente, e os escombros que choviam ao nosso redor eram difíceis de evitar. Mas a “Camada Dupla” que me envolvia resistia. Os destroços se desintegravam ao contato, reduzidos a pó. Ainda que isso retardasse meus movimentos, agora precisava ser mais do que um guerreiro — precisava ser um escudo, uma carcaça blindada, para atravessar a tempestade e proteger Halo.
De repente uma ventania começou a varrer tudo a frente, o mar negro foi aberto como um puxar de zipper. Por instinto, repassei toda a prana em meu corpo para que meus pés fixassem no solo como as fortes raízes das sequoias. Então meus braços se tornaram escudos de carne para cobrir a pequena Halo, era inadmissível que ela sofresse qualquer retaliação.
— Em busca de preservar nossos tesouros, ansiamos pela proteção dos menos afortunados, sempre crendo na previsão divina ao qual nos resguarda. Que a santíssima trindade nos proteja, amém — orei, em um tom baixo beirando a um sussurro.
Fechei meus olhos, mas minha mente só conseguia imaginar aquela bendita cabana que sempre prometi construir. Meus ouvidos tapados pela ventania, escutavam apenas a maresia constante do mar que nunca pude nadar.
Os cortes infligidos em minha pele, eram amortecidos pela brisa suave do litoral.
Quando foi que eu troquei esse paraíso por todo esse inferno?
A memória me escapava, fragmentada. Um momento, deixe-me lembrar.
As cicatrizes do trabalho ao qual dediquei toda uma vida agora pesavam em meus ombros. Marcas de um homem que já não existia. Tudo o que me restou foi apenas um sonho não resguardado.
Mas… espere… que luz é essa?
Um clarão tentou transparecer minhas pálpebras, guiado pela ternura que se manifestou como mãos ao qual empurraram minhas costas, decidido, resolvi ceder minha visão ao mundo.
Tudo ao meu redor havia sido rebaixado à terra sobre entulho, e entulho sobre terra. O incêndio foi apagado por não haver mais o que queimar e a fumaça foi dispersada por uma ventania sem precedentes.
— Não pode ser… — murmurei, incapaz de aceitar o que via.
No centro da vila, o que antes pulsava como um coração de vida agora havia se tornado uma cova, uma enorme mão repousando ali, colossal. O embate entre titãs havia deixado uma destruição irreversível. Pequenas centelhas dançavam no ar, confundindo o que era real com o que minha clarividência me mostrava. Não. Estava claro, a realidade e meu destino final, estavam se infundindo pouco a pouco.
Proteja o Fio!
24 de dezembro, ano 774.
Ruínas do Vilarejo Archi, Ástrea.
Elias, Petrax, Melani, Cassandra, Alexius, Estér, Lalatina, Estevan, Marta, Kairos, Cidca, Marco, Élio, Mimosa, Estevan, Petra, Omar, Mel, Chadwick, Wonder, Bruno, Martinez, Carla, Karl, Mariah, Samuel, Zeferino, Benedito, Cícero.
Nomes que carregavam histórias, promessas, vidas pelas quais eu lutei e jurei proteger. Agora, esses nomes pertenciam apenas à memória. Todos mortos. Suas vidas roubadas por um destino implacável, esmagadas sob a mão imensa de um Tecelão, ou petrificadas pela prana que consumiu os céus. Eu falhei. O peso dessa realidade fazia minha alma tremer, mas não podia me permitir parar.
“Você e sua companheira devem destruir os postes de luz, eles atrairão os Alastradores à aldeia.” Minha própria voz ecoava na mente, como uma sentença de morte que eu mesmo havia decretado. Eu mandei meus pupilos ao encontro do inevitável. Ordenei o sacrifício, e agora suas vidas pagavam por isso.
Com um urro abafado pela dor e pela ira, reuni toda a força que ainda me restava. Meus pés, presos no entulho e nos escombros, pareciam enraizados como árvores no chão devastado. E ainda assim, comecei a andar. Cada passo sobre aquele solo áspero rasgava a pele de minhas solas, deixando um rastro de sangue sobre a terra ressequida. Mas nenhuma dor era suficiente para me deter. Nada importava mais do que seguir em frente.
Nos meus braços, a pequena Halo, desacordada, permanecia leve como uma promessa frágil. Sua respiração calma e superficial era a única certeza de que ela havia sobrevivido à suspensão da oração. Com sua segurança garantida, elevei o olhar, e lá, diante de mim, havia a luz do alvorecer revestindo o símbolo da proteção divina. O “Sagrado Tesouro” nos protegeu do pior, e agora nos guiava com a luz que emanava de cada uma das suas quatro extremidades.
Aquelas arestas douradas rasgavam o céu, guiando meus olhos a um caminho de luz que ascendia aos céus. Cada uma de suas quatro pontas cintilava com um brilho sagrado, refletindo uma fé que, mesmo agora, se recusava a morrer.
Magalhães, Mimosa, Pálida, Rubídea.
Eu reconhecia dentre as infinitas estrelas os reminiscentes brilhos de meus companheiros jazigos.
Dizem que quando um marcado morre sua essência se mistura aos céus, e sua fé intensifica seu brilho. As estrelas eram os túmulos daqueles que em vida seguiram seus destinos sem temor.
— Será que quando eu for, terei espaço ao lado de vocês?
Minha prece ao vento se guiou por um assobio morboso do que restou. Então, um borrão carmim cruzou minha visão, guiando douradas correntes que por ventura dançavam dentre a fissura celeste como se costura-se a própria realidade. Já não sabia mais se ela estava suspensa aos céus, ou se a força exercida nas correntes a sustentava, de qualquer forma, o fato dos céus serem subjugados por ela, era tão assustador quanto esperançoso.
— Elyza… — murmurei, e ao proferir seu nome, um som seco de rachadura partiu a cruz divina à minha frente.
Pequenas frestas caíram para se abrir na superfície, liberando feixes de luz como se aquela estrutura fosse uma cascata frágil prestes a se despedaçar. O material divino, brilhante e quase como ouro, dividindo-se de forma lenta e ordenada, abriu-se como um leque, e um brilho ofuscante dominou minha visão, apagando o mundo ao redor. Um som de folhas sendo viradas preencheu o silêncio, um ruído suave e misterioso que parecia ecoar direto de algum lugar antigo e intocado.
— Marcius Crossfield — sussurrou uma voz impassível, surgindo das profundezas daquela luz divina. — Teu ato final está marcado para o vigésimo quinto dia de dezembro, às quatro horas e quarenta e quatro minutos. Ao final desse evento, deixaremos de existir; as causas são incertas, mas o efeito será um mundo que seguirá um curso pútrido e degenerado, onde a mesma vida que tanto custa a proteger se tornará alimento dos Alastradores.
A cada palavra, o peso da mensagem se aprofundava, como se fossem raízes fincando-se em minha mente. Um vazio gélido abriu meu peito quando a voz transmitida, compartilhou uma serenidade cruel:
— Sendo você o único capaz de restaurar o roteiro e alinhá-lo ao seu eixo, será-lhe concedida a oportunidade de costurar o destino que outrora foi dilacerado. Que escolha fará?
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