Capítulo 16 - Aquele que protege, aquele devora (Parte 1)
Escorado contra um antigo carvalho, um monge repousava. Entre seus dedos esguios, linhas rubras e pulsantes se entrelaçavam como veios vivos de uma tapeçaria invisível. Sua voz, grave e compassada, rasgou o silêncio do pequeno recanto etéreo.
— Estamos seguros aqui.
O capuz ocultava-lhe o semblante, mas não havia receio em ser desvelado; sua presença era como o vento — discreta, inevitável, em plena harmonia com a calma que reinava. Prosseguiu, o tom firme, quase solene.
— Nós somos Tecelões, sombras silenciosas à margem do existir. Preservar. Proteger. Podar. Costurar. Essas palavras não são apenas mandamentos: são o sangue que pulsa em nossa essência, as colunas que sustentam o vasto tecido da realidade.
Uma folha desprendeu-se do galho acima e começou a cair. No trajeto, secou como se séculos a tivessem consumido, e, ao tocar sua mão, esfarelou-se em pó — o leito frágil de uma história ainda não contada.
— Porém, nosso papel não é escolher. Escolha? Não há espaço para ela no tear do mundo. Nós seguimos o Roteiro, aquele livro sagrado escrito em fios de ouro, onde cada ato, cada ponto de nossa existência está registrado. Não há desvios. Não há improvisos. Pois cada desvio seria uma mancha, cada improviso um rasgo irreparável no tecido do Destino.
Um sopro suave escapou de sua palma. A poeira se ergueu em turbilhões frágeis, até se recompor em uma nova folha, alva. Ao tocar a pele do ouvinte, tingiu-se de um azul fervente.
— Mas e quando o Destino se corrompe? Quando forças externas, inconcebíveis, ousam tocar naquilo que não lhe pertence? Ah… então, meus irmãos e irmãs, conhecemos o verdadeiro peso de nossas existências. Não nos cabe agir diretamente. Não podemos. Nossa interferência seria uma contaminação, um veneno no próprio coração da criação.
Os olhos, marcados por pupilas luminescentes e heterogêneas, desceram até a pequena linha carmim que uma aranha tecia. Ele a prendeu entre os dedos e a esmagou. Da carapaça estourada escorreu uma negritude viscosa, que logo contaminou o fio e o galho que o sustentava.
— Quando as linhas se maculam, tudo o que podemos fazer é costurar com as mãos dos mortais. Aqueles fadados a trilhar as trilhas do Destino agora distorcidas… eles, e apenas eles, podem reconduzir o fluxo. Não é fácil. Os mortais são frágeis, seus corações, confusos. Muitos se perdem. Muitos desistem. É uma tarefa cruel, mas o Destino nunca prometeu gentilezas.
Sua voz carregava o pesar, mas não vacilava.
— E, mesmo assim, nossa fé está neles. Porque deveria estar. Somos guardiões de um tecido que não nos pertence. O Destino não é nosso para moldar. Somos apenas seus servos, presos ao juramento de observá-lo, mesmo que nossas próprias mãos desejem agir. Pois, no fim, o Destino é mais do que fios e linhas. É o pulsar de todas as histórias, uma sinfonia que exige harmonia, não caos.
De sua mão aberta nasceu um casulo, branco, pulsante, como um coração vivo. O casulo rompeu-se. Uma borboleta emergiu, frágil, efêmera, alçando voo.
— Você consegue perceber esse paradoxo, Marcius Crossfield? O Destino não se importa com os Tecelões. Mas nós nos importamos com ele.
Dentro do Fio!
XX, X de XXX.
Fluxo Entre-Fios.
Marcius agarrou a folha. Era prânica. Um raio de singularidade percorreu cada centímetro de sua pele, como um trovão silencioso.
Atrás dele, Tereza — a imensa cruz — permanecia aberta, erguida como um portão sagrado. Sua luz imaculada se expandia, assimilando o ambiente com uma paz que não condizia com o peso da revelação. Marcius ergueu o olhar, sem temor.
— Então foi você que me trouxe até aqui, Tecelão.
O homem carrancudo deu um passo à frente. A ventania ergueu-se sob o peso de sua presença, açoitando as copas e arrancando folhas em redemoinhos.
O Tecelão calou-se por um instante. Sua quietude pesava mais que a própria ventania. A borboleta, levada pela correnteza, se fragmentou em um festim de prana. Então sua voz, grave, quebrou o silêncio:
— Theo, seu aluno… é o elo que conecta este mundo ao Vazio. Ele é a passagem para a prisão de uma calamidade. Enquanto existir, o rasgo feito no tecido do mundo pode se propagar.
Marcius avançou, os olhos em chamas — não de ódio, mas de fervor. Sua voz cortou o espaço como aço.
— Não fale como se fosse culpa dele! Theo é apenas uma criança. E você ousa chamá-lo de portal para a destruição? Não. Ele é mais do que isso. Ele é meu aluno. Minha responsabilidade.
A cada palavra, folhas caíam da árvore e, ao tocarem o ar, se tornavam quadros fugidios de futuros ainda não vividos — bocas famintas, distorcidas, devorando reflexos do que não deveria existir.
O Tecelão permaneceu imune à emoção.
— Você está certo, Marcius Crossfield. Ele é mais. É reflexo do que você o moldou. Uma centelha de esperança na vastidão do caos. Mas foi essa mesma luz que atraiu o Vazio. O Vazio fez dele um lar. E se você não agir, ele o consumirá por completo.
Marcius respirou fundo, forçando as palavras como quem arranca ferro em brasa da garganta.
— Então quer que eu o destrua? Que eu apague a centelha que vocês dizem ameaçar o mundo?
— Não a destruição — respondeu o Tecelão. — A salvação.
Marcius silenciou. Sua mente e seu coração lutavam por um mesmo destino, mas não pela mesma linha.
O Tecelão prosseguiu, com voz firme como sentença.
— Há um caminho. Uma chance de libertar o Vazio e contê-lo. Mas exige tempo. E, para isso, você precisará usar todo o potencial de seu estigma — agora.
Os olhos de Marcius ardiam, desta vez em dor.
— Quer que eu o trate como se fosse nada além de um erro? Como se fosse minha responsabilidade remendar aquilo que vocês, Tecelões, permitiram acontecer? Não. Eu não sou carrasco de Theo. Eu sou seu mestre. Meu dever é guiá-lo. Não destruí-lo.
O Tecelão puxou a linha corrompida com um gesto seco. Toda a luz do recanto foi sugada como se o mundo respirasse ao contrário.
— E se guiá-lo for exatamente o que o Vazio deseja? A cada instante que ele permanece neste mundo, a fissura cresce. Ele não tem destino, Marcius. Ele é a ausência. E a ausência nunca pode ser preenchida.
Marcius cerrou o punho. Um fogo-fátuo se abriu em sua mão, trêmulo. Sua voz veio baixa, mas irredutível:
— Ele não pediu por isso. Não pediu para ser usado. Nem por vocês. Nem pelo Vazio.
O Tecelão avançou um passo. Sua silhueta indistinta pareceu adquirir contornos humanos, e, pela primeira vez, sua voz carregou algo que se assemelhava à compaixão.
— Vamos. Esta realidade já se corrompeu.
Marcius vacilou, mas atravessou a luz de Tereza, que oscilava atrás dele. O silêncio do Tecelão apenas ampliava a luta que se travava em seu coração.
Por fim, sua voz quebrou o peso do ar.
— Se eu fizer isso… se eu enfrentar Theo… não será pelo Destino que vocês pregam. Será por uma promessa: ninguém mais carregará esse fardo em meu lugar. Mas saiba, Tecelão… se houver outra saída, mesmo contra tudo o que acredita, eu a encontrarei.
A luz do portal brilhou em resposta, como se reconhecesse sua determinação. O Tecelão inclinou levemente a cabeça.
— Que sua determinação não vacile, Marcius. Pois a escolha que você fez é tanto um caminho quanto a cruz que terá de carregar até o fim.
Com gesto solene, tocou-lhe as costas.
— Seu Marco está se desfazendo, filho do Égide. Posso estendê-lo, mas o preço será alto. Carregará esse peso até que tudo se resolva. E se falhar… Theo será apenas o começo.
O ar escapou dos pulmões de Marcius, liberando a tensão que o sufocava. Sentiu em suas costas a pulsação do Marco, regravado em linhas carmim que queimavam sua pele. O símbolo sagrado latejava com a promessa de dor e sacrifício — mas ele não hesitou.
— Se é necessário, farei. Não pelo Destino que vocês veneram. Mas porque ele precisa de mim. Não como carrasco. Como mestre. Como protetor.
O Tecelão permaneceu impassível, mas sua voz soou como um selo.
— Assim seja.
Sua mão vaporosa tocou o peito de Marcius. O símbolo cintilou, expandindo-se até o limite da carne. A dor foi atroz, mas o homem não cedeu. A luz dourada de Tereza o envolveu, afirmando que ele não estava sozinho.
Quando o processo cessou, Marcius arquejou. O peso em seu corpo era imenso, mas seu espírito estava renovado. Ele ergueu o olhar e declarou.
— Eu vou salvá-lo. Não importa o custo.
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