25 de dezembro.

    Epicentro da Corrupção, Ástrea.

    O mundo estava mais uma vez, face a face com o seu predador natural, um Devorador. As grotescas presas que tanto rasgavam a realidade, formavam aquele sorriso sádico e estático ao relento.

    A sua frente, o predador, utilizando o corpo de seu receptáculo para seus próprios fins, permanecia firme, mantendo a sua conexão. Nada escapava da fissura que tanto castigava estas terras, era implacável, tudo o que havia sido recriado pelas mãos do Tecelão aos céus era consumido de imediato pelo Devorador ao solo.

    — Isso está se tornando um tanto quanto tedioso. Fazer o que, esperei o mínimo de um ser tão ínfimo como você e nem isso você teve a pachorra de me fornecer — a soberba de seu tom dissimulado, tentava atingir o mais luminoso dentre o mar estrelado.

    — Sua insistência só mostra o quão imerso está diante das emoções latentes de seu receptáculo. Ouça-me, não irei repetir uma outra vez. Eu não sou seu adversário.

    Sua resposta não era apenas para o ser perverso, talvez estivesse buscando alcançar algo além. 

    — Ho, ficou ganhando tempo para que seus criadores interviessem, vossa bucha? 

    Uma luz abrasadora, repentina e incessante, forçou suas pálpebras a se fecharem contra sua vontade. Ele, contudo, amaldiçoou novamente a fragilidade do seu receptáculo e insistiu em desafiar o brilho que o cegava. O resultado foi a recompensa amarga de uma momentânea cegueira, enquanto sua curiosidade lutava contra os limites pelo corpo que habitava.

    Nos breves milissegundos que sua imprudência lhe concedeu, vislumbrou uma nova perturbação entre as estrelas. Um conjunto luminoso se formou no firmamento, e juntas, essas luzes pulsaram com um brilho tão intenso quanto caloroso, irradiando um conforto quase celestial. Para aquele corpo exaurido e clemente por colapso, o calor parecia um vislumbre de esperança, ainda que transitório.

    Mas o “reconforto” não demorou a alcançar o paladar do parasita. Quando o calor foi consumido, o Devorador interrompeu abruptamente sua técnica inata. A fome persistente, insaciável, foi consumida por ora, pela curiosidade.

    — Admito, não faço ideia de quem seja essa pilha de carne que se atreve a me confrontar.

    A verdade distorce o sorriso que se alastrava em seus lábios. Seus olhos, rachados e avermelhados, lacrimejavam pela exclusão de um corpo que não era dele. Aos poucos, a visão voltava à nitidez, embora dolorosamente. Antes que eu pudesse completar sua observação, uma voz grave esmagou o silêncio.

    — Você realmente achou que sairia impune depois de provocar uma incursão, destruir o meu lar e macular o corpo do meu aluno?

    O tom carregado de justiça e desprezo era um incômodo intolerável para o parasita.

    — Ah, então é isso, Tecelão? — a voz do Devorador carregava desprezo misturado com ironia. — Um aleijado?! Você ousou trazer um aleijado para tentar me parar? Não me faça rir!

    E ele gargalhou, deliberadamente e com escárnio, sua risada reverberando com arrogância.

    No entanto, a sua provocação não foi respondida. O silêncio o atingiu como uma lâmina invisível, despertando uma elevação crescente. Sua fúria, incapaz de ser contida, transbordou através do receptáculo, manifestando-se em uma onda de prana que vazava por sua pele em linhas assimétricas e pulsantes.

    Esse fluxo violento de energia, embora caótico, acelerava a regeneração de seu corpo, trazendo consigo um bônus inesperado: os poros estourados começavam a se cicatrizar, e sua visão, finalmente, recuperava a clareza.

    O silêncio foi rasgado por um estrondo, acompanhado do assobio agudo do ar cortado pela velocidade de projetos luminosos que despencavam do céu. Era um espetáculo tão magnífico quanto letal, enquanto rastros de estrelas se transformavam em crucifixos finos e precisos. Eles miraram nos ombros e joelhos do ruivo, mas não alcançaram todos os alvos: apenas as partes superiores e um dos joelhos foram atingidos. Sua visão, que retornou a tempo, sincronizou com seus reflexos em um movimento que salvou parte daquele corpo.

    — Você queria que eu me ajoelhasse, seu desgraçado?! — Rugiu, a voz compartilhada de ódio. Ele apoiou uma das manoplas no chão, rangendo os dentes enquanto a outra lutava para arrancar a cruz que atravessava sua junta.

    A resposta veio calma, mas despesas de pesar:


    — Me desculpe, Theo, mas vou precisar machucar você. Vou tentar pegar leve.

    As palavras mal feitas foram ditas quando as mandíbulas monstruosas surgiram nos locais perfurados. Famintas e pavorosas, trituraram os crucifixos que as tinham transpassado, um reflexo grotesco da natureza parasitária do Devorador.

    No alto, os astros deram espaço ao vazio do céu noturno, apenas para que a constelação do Sul brilhasse intensamente, como se se erguesse em ato de resistência. Era um símbolo silencioso, observando a batalha de longe, como se desejassem assistir sem interferir. Só aqueles que alcançaram as alturas, poderiam compreender o quão especial era este momento.

    Marcius estava metros à frente do corpo possuído de Theo, envolto pela luz da constelação do Sul. Os fragmentos dourados de sua armadura destruída reluziam, como ecos de uma glória passada. De suas costas, uma única asa, radiante como ouro derretido, estendeu-se em um movimento que parecia sincronizado com o calor da luz celestial.

    Atrás dele, a cruz dourada se erguia, suas extremidades abertas como um leque, irradiando poder, ainda que incompleta. Ao seu redor, várias lanças flutuaram, adornadas com detalhes intrincados, réplicas menores de Tereza, aguardando em silêncio a ordem de seu novo portador.

    Modificador de probabilidade: 50%

    Marco do Égide: Barreira Cruzada!

    As marcas de batalhas passadas gravadas na pele de Marcius não eram meros vestígios de um passado distante. Suas linhas emergiram de um azul profundo, como cordas grossas e pulsantes, que roubavam a cor de suas cicatrizes. Esses traços safíricos se entrelaçaram, desenhando um domo vivo e pulsante ao redor do Devorador, uma prisão forjada pelo poder do Égide.

    O sorriso do parasita desapareceu, substituído por uma expressão de foco e fúria. Recuperando rapidamente as feridas de seu receptáculo, ele se lançou contra a barreira à sua frente. Suas garras cortaram o ar com violência, cruzando-se em um golpe poderoso que rasgou a superfície do domo. No entanto, assim que o impacto ocorreu, ele piscou fora de sua posição inicial, reaparecendo levemente deslocado — ainda preso dentro da estrutura.

    Irritado, ele não hesitou. Com um novo rugido de desafio, avançou mais uma vez contra os limites da barreira. Outro corte, outra posição: agora, metros de distância separavam-no de sua posição anterior. Ele rosnou, confuso, enquanto seus olhos percorriam o espaço à sua volta. O domo permanecia imóvel, intocado. Então, como ele estava sendo movido?

    Intrigado, o Devorador mudou de estratégia. Desta vez, as pontas afiadas de suas manoplas avançaram contra a superfície da barreira, mas em uma direção voltada a suas costas, buscando romper sua prisão.

    Foi nesse instante que o erro se revelou fatal. Assim que sua força tocou a barreira, o receptáculo soltou um urro ensurdecedor. No mesmo momento, lanças douradas, moldadas em crucifixos intrincados, irromperam da estrutura, atravessando músculos e tecidos com uma precisão cruel. Elas torceram seu corpo, imobilizando cada movimento, puxando-o ao limite de sua resistência. Os ossos gemeram sob a tensão, mas, como em uma segurança calculada, não chegaram a se partir.

    A prisão de safiras não apenas o continha; ela o controlava.

    O grito do parasita foi engolido pelo silêncio quebrado apenas pelos estalos das lanças douradas que cravaram-se profundamente em seu receptáculo. Marcius deu um passo à frente, seus pés descalços esmagando o solo pela pressão e sua prana que exalava deliberadamente de seu corpo. Seus olhos, frios como o aço, fitavam o Devorador como se estivesse executando uma sentença.

    — Está confuso, não é? — Marcius atraiu uma mão, e as linhas safiras que compunham a barreira vibraram, como cordas de um instrumento sendo afinadas. — Essa barreira não é feita para conter você… pelo menos, não no sentido que espera.

    O Devorador rosnou, seus dentes manchados de sangue enquanto tentava se libertar. Mas as lanças apertavam com mais força, suas pontas girando lentamente, como se quisessem arrancar qualquer esperança de fuga.

    — “A Barreira Cruzada” não é uma prisão convencional — continou Marcius, sua voz ressoando como o trovão de um juiz divino. — Esta Técnica Inata coloca a essência de suas próprias ações contra você. Cada golpe, cada tentativa de romper seus limites, cria uma consequência proporcional. Estamos diante do seu julgamento, e você está sentenciado a morte.

    Ele estendeu a outra mão, e as lanças douradas dentro da barreira obtiveram o pulsar em uma luz intensa, sincronizadas com a respiração irregular do receptáculo.

    “Ele mente. Quando ataco, a barreira permanece imóvel; sou eu quem é lançado para longe. Os danos que inflijo retornam como um câmbio cruel, uma posição que me arrasta para ainda mais distante do centro,” refletiu o parasita, sua mente faminta tentava traduzir a lógica por aquela habilidade. Mas a fome não era aliada da precisão.

    Ele observou o espaço ao seu redor, uma área ampla que abrigaria facilmente duas casas comuns. Aquela barreira não parecia feita para sufocar ou restringir, mas para permitir algo maior: conter um combate. Essa constatação tornou o domo ainda mais imponente.

    “Existem muitas formas de aprisionar uma presa”, ponderou, com um sorriso faminto, “correntes, jaulas ou mesmo labirintos. Todas têm algo em comum: são estreitas e sufocantes. Mesmo que eu prefira minhas presas livres para dilacerar, preciso admitir que essa abordagem é eficiente.”

    Sua análise continuava, os olhos examinando cada detalhe da prisão. “Mas este domo… É diferente. Ele não se fecha sobre mim como uma armadilha comum. É espaçoso, quase folgado. Parece menos uma jaula e mais… uma panela de pressão. O calor vai se acumulando, os movimentos cozinhando lentamente a presa. E quando parece que tudo vai acontecer, ele regula novamente a pressão, mantendo o controle até que o prato esteja servido.”

    Um sorriso predatório aberto em seu rosto, largo o suficiente para revelar dentes que ansiavam por um novo sabor. Ele não via aquilo como derrota — apenas como um aperitivo.

    Marcius encontrou imóvel, a expressão grave, quase solene. Seus olhos ergueram-se ao alto, para além das estrelas. Sabia que aquela batalha exigia mais que força; exigiria uma súplica. Um chamado ao próprio arquétipo do Égide, uma essência que sustentava sua fé e propósito.

    Então, sua voz ressoou dentro da prisão dourada, carregado de um peso que apenas aqueles que trazem o fardo dos caídos podem suportar:

    “Ó Égide imortal, muralha que nunca ruirá,

    Cruz sagrada que sustenta os céus e a terra,

    Pai dos insolentes, mãe dos desgarrados,

    Escutai minha súplica:

    Concedei-me o direito ao julgamento supremo,

    Que minha Última se erga como a lâmina do dever,

    O escudo que não cederá, nem mesmo diante do fim!”

    As palavras se entrelaçaram à própria essência da realidade. O ar dentro da barreira pulsou, denso e vibrante, como se o mundo permitisse a invocação. O brilho das lanças intensificou-se, e os fragmentos da armadura dourada de Marcius arderam como brasas despertando para o fogo.

    O Devorador por um instante permaneceu estático. A surpresa estampou-se em seu rosto. Algo brilhou em seus olhos famintos — respeito ou, talvez, apenas a motivação diante do desafio iminente. Então, ele riu. Uma gargalhada sombria, grave como um trovão dentro do domo.

    — Uma Última ? Ah… isso, isso é inesperado! — sua voz pingava deleite e escárnio. — Não imaginei que você tivesse tanta devoção… ou desespero.

    Com um movimento brusco, torceu o corpo, e as lanças cravadas em sua carne trincaram sob sua força monstruosa. Uma névoa negra serpentou pelas fissuras em sua pele e inclui-se como uma praga pelas estacas douradas, que se despedaçaram ao contato.

    Ele vacilou. Seu braço quebrado pendeu de forma antinatural, balançando mole. Mas aquilo não importava — seu corpo se regenerava. Com um chute impaciente, abriu uma bolsa sedentária por alimento. A couro velho e gasto regurgitou um de seus lanchinhos noturnos, um Alastrador .

    No instante em que os dedos do parasita tocaram em sua arma, Marcius extraiu sua lâmina ao céu.

    Última: Espadas da Luz Reveladora!

    As estrelas responderam. Linhas de luz interligaram-se no firmamento, formando o Cruzeiro do Sul — o próprio arquétipo da orientação e do juízo. Era o escopo da execução.

    O mundo pareceu acolhido. A sufocante sensação de ser consumido pelo que não existe foi esmagada por algo maior: um abraço invisível, protetor. Não era um milagre. Não era misericórdia.

    Era julgamento.

    E então, como um martelo divino sobre a bigorna do destino, a espada desceu.

    O brandir colossal de uma lâmina celeste rasgou os céus e tombou sobre a terra, separando luz e escuridão, existência e vazio, pecadores e justos.

    O Devorador, pela primeira vez, sentiu a sombra de algo que jamais conheceu.

    Uma ruína.

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