Capítulo 18 - Aquele que protege, aquele devora (Parte 3)
Se a vida de um Emergente é um tear, então tecemos nosso destino com os fios entrelaçados de nossos companheiros.
Nasça e seja marcado.
Cresça e exerça seu destino.
Morra e deixe sua marca.
Então, que o destino repita esse ciclo.
Durante toda minha vida, fui instruído a viver pelo estigma que carrego nas costas — proteger os fracos, preservar a esperança dos desafortunados, prever a ameaça dos que não têm fé. Como um cabresto, essa foi a doutrina que os apóstolos do Égide me impuseram.
Disseminar a fé entre os bons. Crucificar os maus. Separar o joio do trigo.
Simples. Claro. Justo.
Mas será essa a verdadeira justiça?
“Os bons já são bons. Então por que não tornar os maus em boas pessoas?”
Sim, Magalhães… você sempre me fez questionar tudo.
Naquela época, não compreendi seus pensamentos, suas ações. Agora, enfim, entendo.
Nunca coube a nós impor a justiça. Porque a verdadeira justiça jamais existirá num mundo onde o coração humano ainda bata.
Dizem que aqueles marcados pelo Égide devem partir sem arrependimentos — pois no julgamento final, cada um pesará na balança.
Mas eu me arrependo, meu amigo. Me arrependo de não ter entendido você quando ainda havia tempo.
Se a vida de um Emergente é um tear… então tingimos seus fios com o sangue daqueles que lutaram ao nosso lado.
PROTEJA O FIO!
25 de dezembro.
Epicentro da Corrupção, Ástrea.
O abraço acolhedor de meu salvador, concedido na forma da luz mais resplandecente, estava sendo devorado por uma escuridão que se espalhava em espiral, voraz e crescente, como um parasita que se alimenta para se multiplicar.
Quando toda a justiça radiante foi tragada pelo negrume, dezenas — não, centenas — de olhos rubros emergiram da penumbra, piscando em sincronia, famintos.
“Não queria acreditar, mas esse demônio… de alguma forma, ele conseguiu manifestar um Alastrador. E o mais aterrorizante é saber que apenas um já seria o bastante para suprimir a Prana Sagrada.”
Ainda que seja meu inimigo, preciso admitir: seu poder me assusta. Controlar um dos predadores mais letais da humanidade não é obra do acaso — ele deve ter uma conexão profunda com essa praga.
Eu precisava exterminar essas criaturas antes que percebessem a presença de Halo. Minha Barreira Cruzada não poderia conter uma horda desse tamanho, e mesmo se continuasse realocando as barreiras pela constelação, o Devorador não hesitaria em explorar a brecha.
— Ah… que cansaço.
Para cada estrela que compõe a constelação do Cruzeiro do Sul, há um núcleo de Égide refletido no solo, como se fossem astros gêmeos — um firmando o céu, outro sustentando a terra.
Eles são os contrapartes de Magalhães, Mimosa, Pálida, Rubídea e Intruso.
São esses os pilares que compõem minha fortaleza. Posso interligá-los, traçando barreiras cruzadas que resistem até ao próprio destino.
Halo permanece protegido dentro de Magalhães, o mais impenetrável dos cinco núcleos. O inquilino, por sua vez, está selado em Mimosa. Ele já desfez Pálida e Rubídea antes, mas eu as restaurei. Enquanto minha fé permanecer inquebrável, essas barreiras se erguerão,quantas vezes precisar.
Se ele quebrar Mimosa, Halo será realocada para Pálida. E assim o ciclo continuará, até que um de nós ceda à exaustão.
Mas eu não lutarei para prolongar esta guerra. Não lutarei para apenas conter o mal. Para este momento, aqui e agora… Eu mesmo me encarregarei de expurgar essas pragas de uma vez por todas.
— Ultimato: Espadas da Luz Reveladora!
O céu atendeu ao meu chamado. A lâmina divina despedaçou a noite, e sua luz sagrada varreu a escuridão, perfurando o ninho profano dessas criaturas.
Essas criaturas existem para erradicar o Prana, um propósito gravado em sua própria natureza. No entanto, possuem uma falha — sua estrutura não-celular só permite devorar a energia que eles são direcionados por meio de uma conexão. Por isso, os Emergentes capazes de selá-los proporcionaram uma maior esperança da humanidade, o último baluarte contra sua extinção.
E por isso que a Segunda Lâmina da Justiça resplandeceu.
Seu propósito não é apenas destruir, mas preservar. Seu fardo não é apenas cortar, mas aprisionar. Ela é o cárcere perpétuo desses demônios, a lâmina que carrega em seu fio o peso da salvação.
A cena diante de mim era um paradoxo entre o colapso e o horror. Incontáveis Alastradores, aprisionados e comprimidos dentro da espada do meu Salvador, retorciam-se como sombras confinadas na luz. A ameaça havia sido contida — mas apenas por um instante.
Agora, restava apenas uma lâmina.
Uma única e derradeira Lâmina da Esperança.
E desta vez, não haveria escapatória para aquele parasita.
— Você conseguiu enfrentar uma… — minha voz ecoou no campo devastado. — Mas como se sairá diante do poder supremo da esperança da humanidade?!
Para o mundo, parecia o amanhecer.
A lâmina resplandecente era um novo sol ascendendo, um símbolo que decretava o fim do mal e anunciava um novo dia. Mas…
Algo estava errado.
Gradualmente, todo o meu poder estava sendo sugado.
Uma força invisível arrastava até a luz para sua fome insaciável.
O som seco das palmas ecoou pelo recinto, cada estalo soando como um insulto ao meu fracasso. Meu poder… desaparecera sem precedentes. E então, percebi o impensável. Não apenas minha Última , mas também meu núcleo Mimosa foi erradicado.
— Márcio Crossfield? — A voz do inquilino ressoou, investido de um reconhecimento perverso. — Você foi o primeiro a saciar um ser com uma fome quase infinita.
Ele chutou a bolsa de Theo, que jazia ali com a língua de fora, saciada, sua fome temporariamente extinta. Com um deboche cortante, continuou.
— Só não vou salvar seu nome. Sou péssimo em lembrar das coisas.
“Droga.”
Ele não estava mais sobre nenhum núcleo. Eu não poderia transferi-lo. Minha última fora anulada sem esforço algum. Meu trunfo havia sido arrancado de mim, e agora, restava apenas o caos dentro da minha mente.
“Como?! Como ele conseguiu conter todo aquele poder sem ao menos se esforçar?!”
A confusão me consumia, mas uma única certeza ainda permanecia latente — algo que eu segurava com força contra meu peito.
A esperança ainda pulsava.
Ela ardia em meu peito. Então meu coração tomou forma fora de meu corpo, condensando-se na última lâmina da justiça.
“Judas, o Carrasco dos Injustiçados.”
A última lâmina da justiça, aquela que não corta a carne, mas fere a própria injustiça.
Ela surgiu da minha alma e da minha fé, moldada pelo fardo que carrega e pelo peso das vidas que já não posso proteger. Seu brilho não é dourado como o sol, nem prateado como a luz da lua — é um fulgor espectral, um azul profundo e vibrante, como se as chamas do julgamento ardessem dentro do próprio metal.
Seu gume é absoluto. Não se desgasta, não hesita, não permite refutações. Cada golpe que ela desfere é uma sentença proferida, e aquele que carrega a culpa sentirá o peso de todos que foram injustiçados antes dele.
O cabo é rígido, mas não frio. Ele pulsa, quase como se respirasse, pois não é apenas uma arma, é um símbolo. O símbolo daqueles que tombaram sem voz, dos que não tiveram direito a um último grito, dos esquecidos que deveriam ter sido ouvidos.
E no centro da lâmina, há um sulco, um caminho estreito por onde escorre a verdade. Para os ímpios, parece um corte vazio, mas para os justos, é a rachadura que separa o certo do errado.
Judas não é uma espada de misericórdia. Ela não oferece perdão.
Ela é a execução final.
Meu corpo já não respondia como antes, minha respiração era irregular, mas ainda assim… Eu persisti. Se esta era a Última, então que ela seja a sentença final.
Theo sofreu uma injustiça. E como juiz desta batalha, entregarei a ele o veredito que o libertará.
A lâmina cintilou, e então, ascendemos.
Subimos aos céus como duas tempestades colidindo, luz e trevas se entrelaçando em um duelo que definiria o destino deste mundo. Eu ataquei primeiro. Meu golpe rasgou a carne do Devorador, mas o mais terrível não foi seu sangue negro manchando o céu — foi sua ocorrência.
Ele hesitou.
Eu o senti vacilar no momento em que a lâmina tocou seu corpo.
“…Então é isso.”
A verdade se revelou como um lampejo em minha mente. Ele não poderia se dar ao luxo de receber qualquer golpe dessa espada. Se o fizesse, se permitisse ser ferido… O controle voltaria para Theo.
O riso sádico que tanto o acompanhava cessou. Pela primeira vez, percebi um traço de cautela em seus olhos vazios.
Mas um monstro como ele não recuaria sem antes devolver o golpe.
O ar se rasgou, e então, dor.
O choque veio antes da sensação. O impacto foi brutal. Meu braço não estava mais lá. Suas garras haviam arrancado ele da própria existência.
Sangue jorrou como um estandarte carmesim, e minha visão tremeu.
Mas eu não cairia.
Mesmo encurralado, mesmo ferido, mesmo limitado a um homem à beira da ruína, eu resistia. Ele, no entanto, não escolheu o caminho da força bruta.
Ele revelou algo ainda pior.
Sua rota de fuga já estava traçada — a fissura aberta no firmamento.
Com um impulso ágil, apoiou-se em uma das presas daquela boca abissal e, antes de desaparecer, virou-se para me encarar. O sorriso que se estampou no rosto de meu aluno era uma distorção profana, um escárnio macabro cravado em sua pele.
— O garoto é meu! — proclamou, afundando na ferida do mundo.
— NÃO! — Meu clamor rompeu o ar, seguido pelo clarão que se acendeu em minha asa.
Avancei num rasante impiedoso, rasgando a diferença entre nós. Mas não fui rápido o bastante. O vazio imensurável escancarou-se diante de mim, consumindo-o por completo.
Eu perdi.
Ele enfrentou minha justiça sem precisar recorrer ao seu maior trunfo. E mesmo assim, venceu.
Foi quando ouvi.
— Basta, seu projeto de calvo! Sabia que você ficaria careca depois dos trinta?
Meus músculos enrijeceram.
Aquela voz…
Não. Não pode ser. Ele está morto.
Talvez a morte já estivesse me alcançando. Talvez fosse apenas isso.
Se fosse verdade, eu precisava atravessar essa fissura antes que o último vestígio de Theo se perdesse para sempre—
— Nem pense em entrar aí. Se for morrer, que seja salvando alguém. E você não vai salvá-lo se for desse jeito.
De novo.
O tom zombeteiro ressoou, inconfundível, carregado de insubordinação.
Meu peito se contraiu.
— Esse apelido… essa voz… — sussurrei.
Apenas um homem no mundo ousaria me chamar assim.
Engoli em seco. Me obriguei a ceder.
Virei-me.
E então, o impossível aconteceu.
— Magalhães?!
O frio se espalhou pela minha pele, profundo e cortante.
Diante de mim estava aquele que considerei como um irmão. Aquele cujo último suspiro eu testemunhei.
Era como se a própria morte estivesse me pregando uma piada de mau gosto.
Ele abriu um sorriso despreocupado.
— Sentiu saudades?
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