Magalhães.

    O nome soou como um eco antigo, um sussurro esquecido no tempo, preso entre as rachaduras de uma memória que lutei para enterrar. Mas ali estava ele — ou o que restava dele — envolto em uma luz pálida, trêmula, como uma vela prestes a se apagar.

    Seus olhos não continham mais a centelha da vida. Apenas o brilho frio da prana que o mantinha de pé.

    — Acho que estou à beira da morte. Estou até vendo alucinações…

    — E está mesmo, Marcius. Você é um homem morto. Mas eu… eu sou real.

    “Morto?”

    Essa palavra martelou minha mente.
    Mas eu sentia meu corpo. Pesado, dolorido, sim — mas ainda presente. Então… como?

    — Marcius?
    — Marcius!
    — Marcius…
    — Marcius…

    Sua voz ecoava, cada vez mais distante, enquanto um chiado tomava meus ouvidos como se o mundo estivesse se afogando em silêncio. Cerrei os olhos. Respirei fundo.
     

    Não ceda. Não agora.

    Soltei o ar num bafo quente, como se expulsasse toda a exaustão de uma vez. Então, respondi:

    — Não adianta tentar me parar. Mesmo sem garantias, mesmo que falhe… eu preciso fazer isso. Não pelo maldito destino, mas porque sei que é o certo. Ainda que seja egoísmo meu.

    Ele gargalhou.

    Minhas sobrancelhas se contraíram. Como ousava?

    — Marcius… o que seria de um esquadrão sem um capitão que incentivasse os egoísmos mais nobres de seus soldados?

    Aquela pergunta, a mesma de dezesseis anos atrás. 

    Maldita pergunta.

    Maldito homem.

    Lágrimas teimosas arderam em meus olhos. Quando enfim caíram, uma velha mão pousou em meu ombro.

    — Que diferença faz?! — explodi — Nem meu maior egoísmo eu consegui realizar! Gargantulla ainda está vivo! Enquanto eu ofereço minha vida por esse lugar, o assassino de todos vocês continua respirando!

    Afastei sua mão com força e cuspi meu rancor ao vento. Era humilhante estar tão despido, tão quebrado… chorando como uma criança.

    — Não vou mentir — disse ele, com a mesma calma cortante de sempre. — Foi em vão esse remorso que você carregou por tanto tempo. Eu nunca te culpei, Marcius. Nem pela minha morte, nem pela dos outros. O mundo é cruel. E gentileza… não gera gentileza. Ser bom não muda nada. O mundo é imparcial. E as consequências, inevitáveis.

    Sempre foi assim com ele.

    Apontava as injustiças do mundo com a frieza de quem já as aceitou. E as traduzia com palavras que até um tolo entenderia. Eu o odiava por isso.

    Talvez por isso mesmo o tivesse amado como meu capitão.

    — Quanto ao Gargantulla… nós estamos velhos demais. Deixe isso para os que ainda têm futuro. Nada é eterno, Marcius. Nem mesmo para aqueles que se vangloriam pela imortalidade.

    Sua mão — a que eu havia rejeitado — envolveu a minha, onde repousava a espada da luz reveladora. Um calor inesperado atravessou a lâmina. A luz se elevou como se o próprio tempo voltasse a correr por ela.

    Por um instante, me perguntei como ele havia feito aquilo. E então lembrei…

    O que alimentava minha espada era esperança.

    — Eu entrego em suas mãos… a esperança de todos nós — sua voz carregava orgulho. E, de algum modo, isso me reconfortou.

    A luz cessou — e então, a arma tomou sua verdadeira forma.

    A empunhadura era um castiçal, sólido como ferro.
    A lâmina, feita de cera derretida, ardia com um fogo azul que jamais se apagaria.
    Ela queimava como vela diante da noite.


    A Lâmina da Luz Resplandecente. Minha última chama.

    — Quem diria que Tereza escolheria você — disse ele, sorrindo com uma ponta de ironia. — Entre todos os filhos do Égide… justo o meu velho amigo ranzinza.

    Uma risada leve escapou, antes de sua expressão voltar à seriedade.

    — Mas temo que nem ela será o bastante para te acompanhar no mergulho que vem agora.

    Então algo me atingiu pelas costas — não um golpe, mas uma força viva.

    Senti euforia. Arrepios. E ao olhar por sobre o ombro, vi.

    Correntes douradas se interligaram em minha dorsal, conectando-me à abertura que Tereza mantinha firme.

    — Elyza… — sussurrei. Eu a tinha dado como morta.

    — Não subestime a força de uma mãe que deseja proteger seus filhos — disse Magalhães. — Quando encontrar aquele filhote de gambá, use-as para trazê-lo de volta.

    A despedida se aproximava.

    Observei sua aura se dissolver, grão por grão, como vaga-lumes em dança.

    Mas… algo ainda faltava. Algo que esperei a vida inteira para responder.

    E quando minha língua teimou, ele perguntou:

    — Você ainda odeia seus inimigos?

    O silêncio de uma terra quase que devastada, se fingiu de resposta.

    Há várias formas de ferir um homem e derrubá-lo. Você pode golpeá-lo, você pode enganá-lo, você pode traí-lo, até mesmo o abandonar quando estiver deprimido. Mesmo que seu único pilar sejam seus pés e que o forte vento tire repetidas vezes seu sustento. 

    O verdadeiro homem, sempre recomeça.

    — Eu não os odeio mais.

    — Então, por que ainda empunha uma espada, filho do Escudo?

    — Porque não consegui imaginar outra forma de proteção.

    Com firmeza, respondi e com sutileza ele abriu seu sorriso.

    Simples assim.

    E então, esfarelou-se. Mas antes de partir por completo, sua voz se uniu à de outras três…

    Estamos esperando você.

    Meus punhos cerraram-se, involuntariamente. A sensação de impotência ainda latejava, mas à minha frente, o caminho para o inferno aguardava.

    À medida que caminhava, percebi:

    A areia já não se prendia mais entre meus dedos. O vento já não me levava à maresia. Meus arrependimentos — outrora sonhados como refúgios — tinham ficado para trás.

    Agora… eu encarava a realidade.

    — Ah… eu não me sinto mais cansado.

    Proteja o Fio!

    25 de dezembro, ano 774.

    Vazio Imensurável.

    Nunca fui homem de hesitar.

    Mesmo assim, ao atravessar o limiar, travei.

    Era como ser sugado para dentro do peito de um deus morto.

    O Vazio não me acolhia, ele me anulou.

    Meus sentidos colapsaram a cada passo. A visão se dobrava, e o som se dissolvia como neve ao toque. É como respirar ausência. Sentia o eco de um corpo que não pertencia a lugar nenhum.

    No centro do lugar, uma escuridão impenetrável pulsava, viva e faminta. Ela se contraia como as pétalas de uma flor negra, um ventre sem luz, sugando para si tudo que ousasse existir. Ao redor, filamentos de gás e poeira flutuavam como véus cósmicos, ondulando em espirais que lembravam uma flor em plena floração — mas onde o perfume era ausência e as pétalas, ao invés de refletirem luz, a devoravam com apetite voraz.

    A própria noite florescia ali.

    À medida que caminhava, meu corpo parecia mais distante de mim. Meus pés umedeciam-se em pequenas ondas daquele mar estéril, e um murmúrio sutil, quase terno, reverberava no que um dia foi som. O espaço se dobrava sobre si, como se tudo ali não fosse espaço, mas o rascunho de um lugar jamais destinado a existir.

    Se meu corpo não estivesse revestido com a prana sagrada, e ainda sendo assegurado pelo que sobrou da Torrente Suserana, minha existência se fragmentaria até que o “nada” a devorasse por completo.

    Ainda assim, avancei.

    Por Theo.

    O encontrei no meio daquele “nada”, suspenso como um fardo entre o tempo e o fim. Seus olhos âmbar — antes plenos de insolência e vida — agora tremeluziam com algo que não lhe pertencia. Uma fome antiga. Um riso que não era dele.

    Mas não é a mim que este lugar quer devorar. É ele.

    Seu corpo, tomado pela presença nefasta, pulsa em ondas lentas. A escuridão que o envolve não o veste: floresce a partir dele.

    Ele sorri com a boca de Theo. O rosto do meu aluno estremece, ora presente, ora diluído sob o controle daquela coisa.

    O braço que arranquei na realidade ainda não voltou.
    Minha espada ardeu até os ossos dele. E isso o limitava.
    Ele não pode apagar o dano. Um animal ferido, ainda assim voraz.

    Mas também me falta um braço. E o tempo. E as chances.

    As correntes tilintavam atrás de mim. Três.
    A primeira, já sabia, não era minha.
    A segunda também não.

    Eu não vim aqui para voltar.

    Um riso doentio reverberou pelo vazio. Um som dissonante, como vidro se partindo onde não existia vidro algum.

    Ele se divertia. Claro que se divertia.

    — Então você aceitou meu desafio… — a criatura sibilou, enquanto seus traços se contorciam sem forma — Muito bem! Me enfrente, até que não reste nem seu próprio nome!

    — Que se dane sua dança — rosnei, cerrando os dentes. — E que se dane você, maldito parasita!

    Em sua boca um sorriso se formou. Sem bordas, sem carne, sem limites.

    — Aqui — ele disse, abrindo os braços para o abismo que nos envolvia —O Destino não respira. As linhas não sangram. As regras não existem. Aqui, eu posso falar meu verdadeiro nome…

    O vazio pareceu pulsar com aquelas palavras. Algo impossível foi pronunciado, algo que nem deveria ser concebido.

    E mesmo assim, ele o fez:

    — Eu sou o Devorador.

    O som rasgou minha mente.

    Não como uma palavra, mas como algo impronunciável.

    O que quer que fosse aquele nome, não havia sido apenas esquecido. Tinha sido apagado.
    E agora, ecoava ali como um erro que nunca deveria ter existido.

    Ele se curvou para frente. Esticou a mão mutilada em direção ao mar estéril que lambia nossos pés. Dali, puxou uma massa disforme — uma criatura de carne morta, de esperança morta — e a moldou com sua vontade.

    Transformou aquilo em um novo braço. Um membro cinzento, pulsante, marcado com veios de escuridão.

    Então era verdade, ele conseguia manipular um Alastrador.

    — Agora, humano — ele murmurou, enquanto aquela coisa se colava a ele — sobreviva.

    O chão estremeceu. O mar estéril começou a borbulhar, e gotas negras começaram a se erguer do solo.
    Chuva?
    Não de água, mas de fim.

    — Caminho da Inexistência: Chuva Estéril.

    Cada gota que me ameaçava tocar, parecia um prelúdio de que minha existência seria dissolvida com ela. Cada gota era a promessa da aniquilação.

    Trinquei os dentes, ergui minha lâmina e saltei contra a imensidão acima.

    Mas a realidade escapava entre meus dedos como areia fina.

    Foi então que vi.

    Acima da fissura, uma luz trêmula.
    Uma estrela.
    Fraca, mas real.

    Pálida.

    Seu brilho cortou o Vazio como um sopro de algo perdido e reencontrado. Com ela, ergui minha primeira barreira.

    A esfera dourada de proteção tomou forma ao meu redor.
    E resistiu.
    Por um momento.

    As gotas começaram a dissolver a proteção, como ácido corroendo ferro.
    A barreira tremeu. Estalou. Rompeu.

    Antes que a chuva me tocasse, outra estrela brilhou.

    Rúbideo.

    Outra barreira surgiu.

    Forte. Vermelha como o sangue de quem jurou nunca me deixar cair.
    Mas também se partiu sob o peso da chuva.

    Então veio, Mimosa.

    Doce. Leve.

    Sua barreira floresceu em volta de mim como um último abraço.
    Ela também se despedaçou.

    Mas não antes de me dar um segundo.
    Um fôlego.
    Uma chance.

    Os três.
    Mortos.
    E ainda assim… lutando comigo.

    Cerrei os olhos, afundei os pés no mar estéril, e prometi a eles:

    — Enquanto eu respirar, enquanto restar uma estrela no alto, eu não cairei.

    Não havia mais tempo para hesitar. Avancei.

    Minha lâmina, luz frágil em meio ao nada, encontrou o punho monstruoso do Devorador. O açoite de seus golpes era como marteladas vindas de direções inexistentes, enquanto sua nova aberração de braço se contorcia no ar.

    Aquilo crescia.

    Sugava a chama da minha lâmina como se fosse alimento, e a cada fagulha que devorava, brotavam bocas, olhos e tentáculos que se enredavam uns nos outros, gerando novos horrores: os Alastradores.

    Eles caíram no chão estéril e rastejavam como vermes famintos.

    Não podia permitir aquilo.

    Sacrifiquei uma corrente.

    Ela serpenteou pelas sombras, costurando cada uma das criaturas, e, com um estalo seco, envolveu o braço mutante do Devorador, travando-o antes que pudesse parir mais desgraças.

    Era a abertura que eu precisava.

    Com um giro, golpeei o Devorador na altura das costelas, rasgando a carapaça de trevas que o envolvia.

    Meu coração martelava. A vitória estava ao alcance.

    Foi quando ele sorriu.
    E com a manopla do Vazio, tocou a corrente dourada que selava seu braço.

    A corrente não se partiu.
    Ela simplesmente deixou de existir.

    Uma ausência tão pura que até o eco de sua perda foi engolido pelo nada.

    Fiquei com apenas uma. Uma única chance.

    Antes que pudesse reagir, um soco me atingiu como um meteoro. Meu corpo foi lançado através do vazio, meus ossos estalaram sob a pressão insana daquele lugar.

    Mas eu já sabia. Sempre soube.

    Minha vida não era o preço, era o pagamento.

    Me ergui cambaleante, tossindo algo que já não era sangue, mas poeira.

    Caminho da Inexistência: Mandíbula da Extinção!

    O Devorador não perdeu tempo, conjurou uma fissura diante de si — e dela, brotou uma boca. Uma monstruosidade sem começo nem fim, com fileiras de dentes se erguendo como muralhas vivas, camadas e mais camadas de destruição pura.

    A boca desabrochou em minha direção.

    E eu corri.

    Avancei através da garganta aberta da besta, desviando dos dentes que surgiam e se fechavam como foices, rasgando minha carne a cada passo. As mandíbulas se fechavam atrás de mim, como uma muralha de adagas tentando me esmagar.

    Um golpe me decepou a perna esquerda.
    Outro rasgou metade de minha barriga.
    Gritei, mas não parei.

    Meu mundo se reduziu a um gesto: Esticar o braço.


    Esticar até onde minha alma pudesse alcançar.

    Num último salto — com metade do meu corpo desfeito — enfiei a Lâmina da Luz Resplandecente no peito de Theo.

    O fogo azul ardeu contra a escuridão.

    A lâmina de cera atravessou carne e vazio como se cortasse um véu de sonhos moribundos.

    Theo estremeceu. Não por ele — mas pela coisa que o habitava.

    O Devorador, ainda envolto nas sombras que estalavam ao redor do corpo do rapaz, não gritou.

    Ele gargalhou.

    Um som rouco, fragmentado, que mais parecia o ranger de um mundo se quebrando.

    Seus olhos — ou o que restava deles — encontraram os meus, e mesmo enquanto o fogo da minha espada o devorava e as correntes douradas se entrelaçavam ao redor de sua essência para arrastá-lo para fora, ele ainda ousou sussurrar:

    — Salve seu aluno, heroi… só para vê-lo cair no amanhã. Você venceu hoje… Mas cada ferida que carrega, cada sombra que repousa sobre sua alma… São sementes minhas. Eu ainda florescerei nele, com ainda mais fome.

    A corrente brilhou com a intensidade de uma estrela moribunda.
    O vazio, já faminto, tentou engolir a cena — mas a fissura onde ele se refugiava começou a ruir, puxando tudo que era mentira para fora da realidade.

    Meu corpo, mutilado, recusava-se a obedecer.
    Metade de mim já era nada.

    Ainda assim, mantive a mão cravada no peito de Theo, guiando-o pela última corrente que ainda pulsava entre nós.

    Enquanto a existência se despedaçava ao meu redor, encontrei forças para falar.

    Não para mim.

    Mas para ele.

    Sussurrei, em meio ao breu que devorava tudo:

    “Theo… Quando você recobrar a consciência. Tudo estará diferente.
    A vida que você levou, ficará para sempre no passado.
    O mundo fora da minha barreira é voraz, criaturas impiedosas estarão à sua espera. Não vai haver um dia de paz.
    Sei que é injusto, mas vou deixar em suas mãos o fardo de proteger Halo. Ela é especial, ela será de grande ajuda para você no futuro.
    Sei que é egoísmo meu, deixar você sozinho e com essa responsabilidade… Mas não desista. Em hipótese alguma desista.
    Só você pode ir contra o próprio Destino e encerrar esse maldito ciclo…
    …Viva, Theo.
    Essa é a minha última lição para você.”

    O brilho da corrente se intensificou, envolvendo Theo numa luz dourada, puxando-o de volta pela fissura entre os mundos.

    Vi, com meus olhos já quase apagados, sua figura sendo resgatada — salvo por um fio de esperança tecida no meu último suspiro.

    Então o vazio me abraçou.

    E tudo, finalmente, se fez silêncio.

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