Local? Não… sei?

    Data? Eu sei lá.

    Uma chuva sórdida caía, lenta, preenchendo o ar com flocos gélidos que se acumulavam sobre a terra. Suspirei fundo tentando compreender novamente minhas atitudes, já havia virado rotina fazer coisas que eu necessitava, mas que não fazia ideia do porquê de tanta necessidade.

    “Pelo menos ficou legal… Neh, o da Halo ficou melhor”, analisei o formato de nossos corpos nessa nova camada macia sobre o chão. A auréola no topo de sua cabeça, deixava o formato dela bonito, e não conseguia competir contra isso.

    Não sabia ainda quem era Halo, ou que era ela, mas ela não largava de mim desde que saímos das ruínas daquela vila. Talvez, ela só precisava de alguém para cuidar dela, mesmo que esse alguém fosse eu — quebrado, inútil, prestes a ser levado pelo acaso. Educar essa garota só me trará mais problemas, seria mais fácil despachar ela em alguma vila…

    — Tchuim!

    Um ratrator grunhindo?

    Mah, era apenas a Halo espirrando. Meu sopro moribundo se misturou a brisa. Afinal, não achávamos comida à dias, e o máximo que conseguimos foram dois ratratores.

    Falando em comida, cadê a bolsa?

    Havia buraco na neve feito por ela, parece que a garota estava se divertindo observando o que raios aquela bolsa estava fazendo. Provavelmente ela estava comendo neve de novo, esse troço tinha uma fome quase que insaciável.

    Mah, só espero que ele não tente devorar a garota de novo. Deu um trabalho do caramba tirar ela da última vez.

    — Só prestar atenção, garota. Não quero que você vire petisco de novo! — Alertei ela e me virei.

    A neve era legal. Parecia uma cama confortável… mas nada aconchegante.
    Encontramos uma vila destruída há alguns dias, mas estava tão arrasada que não nos atrevemos a chamar aquilo de abrigo. Não ficamos nem uma noite. Ontem, não tivemos escolha a não ser dormir ao relento, cercados por uma floresta de ressaca — cinzenta, silenciosa, amargurada pela geada.

    Mesmo com os trapos da minha camisa improvisando um cachecol para aquela criança, seus espirros estavam ficando cada vez mais frequentes. Meus dedos, secos e duros, lembravam pétalas de uma flor depois da geada — quebradiços, pálidos… inúteis. Mas não me importava. O frio não me pertencia. Nem mesmo a coriza se dava ao trabalho de me visitar.

    O frio era cruel. Mas meu corpo, de alguma forma, não era mais suscetível a ele.

    Um bocejo preguiçoso quase me convenceu a voltar a dormir. Mas então veio o arrepio. Uma onda densa de prana subiu pelos meus poros. Um aviso. Algo estava se aproximando.

    — Halo, tá ven—

    Um rugido veio tão violento que arrancou as cascas das árvores ao redor, deixando-as nuas diante da neve.

    Cruzei os braços no instinto, protegendo o rosto da explosão de neve que se ergueu. Senti o peso de algo colidir comigo — algo que esfolou minha pele em cheio. Meus braços cederam. O reflexo foi mais rápido que o pensamento: empurrei o objeto com força, jogando longe o que parecia ser um galho robusto, antes que o galho me arrancasse mais do que pele.

    Antes que eu pudesse pensar, agarrei no ímpeto a bolsa que me veio de encontro. Fui arrastado pelo impacto até que minhas costas escorassem em um tronco. 

    A salmoura do perigo já ardia na ponta da minha língua, pronta para julgar meu despreparo. Mah… às vezes, eu esquecia que tudo o que aquela maldita bolsa devorava, eu também era obrigado a provar.

    E, naquele momento, ela se deliciava com um pedaço cascudo e comprido de cauda — mas o dono daquela iguaria não veio cobrar gratidão. Veio para se vingar.

    Uma sombra, volumosa e larga, me cobriu. Assim que bati o olho na criatura, algo me dizia que ela me era familiar… Pelos brancos como a neve que me servia de cama e aqueles dois dentes dianteiros, capazes de me partir em dois. Não era só um enorme arbusto temperado pela neve — era o maior ratrator que eu encontrara em todos aqueles dias à deriva nestas terras gélidas.

    “Ele é rápido”, esse foi o pensamento que escorreu junto do meu frio suor, após ter rolado de mau jeito.

    O som de seus dentes pregando contra o tronco provavelmente ecoou por toda a área. Seus dentes não só perfuraram, como amassaram aquela árvore como se fosse uma lata. Arfei. Eu escapei da morte certa — e isso, ironicamente, era certo. Mas até quando teria essa sorte?

    Não demorou muito para ele se dar conta de que eu não estava mais ali, e logo arrancou e triturou a madeira até virarem míseras farpas. Com a estabilidade comprometida, o restante do tronco ameaçou cair, mas acabou sendo apoiado por sua vizinha — quem sabe não eram amigas desde o jardim de infância. Nah… eu realmente precisava melhorar meu senso de humor.

    Correr, confrontar ou, quem sabe, desistir. Eram poucas as opções ao meu favor — mas, até então, essas sempre tinham sido as opções que o acaso me oferecia.

    — Que se foda… — murmurei, correndo em direção ao meu outro guarda-costas. Para minha sorte, estava cercado deles.

    O bichano me seguiu sem nem pensar. Me comia com os olhos e cuspia sua raiva em farpas viscosas de baba.

    Às vezes, eu fazia coisas que eu não sabia como conhecia, mas fazia, ou como eu havia aprendido, simplesmente executava, e desta vez, não havia sido diferente. Canalizei o fluxo de prana em meus pés, tão simples quanto respirar, e então preguei nove passos na casca daquela árvore.

    O ratrator tentou frear, mas era tarde. Escalei sem perder velocidade, e ele cravou os dentes logo abaixo de mim. Ganhei espaço ao saltar por cima da criatura. Ela puxou os dentes de volta, rasgando o tronco como se fosse carne podre.

    A força daquela mandíbula… estava começando a me assustar.

    Após um piscar de olhos, faixas vermelhas surgiram, rastejando pela neve e costurando as árvores — traçavam uma rota que eu não ia esperar para ver onde terminava.

    Ah, claro. Cacete. A merda do ratrator gigante.

    A neve já batia na altura da canela por ali, e meus passos começaram a ficar mais lentos. Se continuasse assim, acabaria atolado. Busquei com o olhar uma rota de fuga. Minhas pegadas estavam mais rasas perto da árvore que cedeu à mordida. Uma triangulação natural se formava entre os poucos ligamentos do tronco e a raiz.

    Então a presa avistou o predador.

    Mostrei o dedo do meio. Ele rugiu.

    Ambos corremos — eu pela minha vida, ele pela fome.

    Dentro daquela floresta amargurada, só havia uma coisa que importava: sobrevivência.

    Deslizei pela neve e atravessei a passagem. A cabeça felpuda do ratrator ficou entalada. Ele brandia os dentes a todo custo, tentando me alcançar.

    Com a brecha feita, afundei os braços no interior da bolsa. As manoplas negras se formaram ao redor de minhas mãos — não faço ideia do que são feitas, mas não reclamei. Segurei seus imensos dentes com uma das garras e pisei em seus lábios, forçando a abertura daquela boca maldita. Só então cravei a mão livre na língua do monstro e empurrei para fora.

    Ele se debatia, tentando escapar. O sangue jorrou. Seus tendões começaram a se soltar — tão simples quanto arrancar grama do chão.

    — Tente se adaptar a isso.

    E arranquei o que talvez virasse meu jantar naquela noite.

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