Capítulo 3 – Falso Herói
Minha mente está tomada por uma escuridão absoluta, as dores que sofro se aliviam como se fossem derramadas do cálice que represento. Estou descansando como se estivesse deitado na cama de lã do Regin — deve ser o mais próximo das nuvens.
O peso da minha consciência cai sobre mim: “Em um momento, joguei a minha vida fora.” Mesmo nesse estado invulnerável de descanso, uma pressão avassaladora aperta meu coração quando questiono minhas atitudes.
Para aliviar a dor, pergunto a mim mesmo em busca de uma resposta agradável: “Tive uma morte honrosa?” Embora se disfarce com a graça da honra, foi o mesmo que ter dito: “Valeu a pena eu ter morrido assim?” A dor persiste de qualquer forma.
Pensar isso é uma maneira de tentar amenizar o erro que cometi. Mitos, contos, todo o compêndio que eu ouvia da boca dos outros; era então uma maneira de encontrar uma razão para viver esta vida miserável?
“Por que eu tenho que pensar desse jeito? De ter que encontrar o orgulho na morte?” Distancio esses pensamentos quando lembro dos outros com que convivi. Eles não precisavam encontrar o orgulho na morte — eles já o viviam.
A dor que sinto não é sobre a forma que parti, está por trás de outro arrependimento: uma vida inteira desperdiçada. A apreciação que tinha sobre ela — ou melhor, a falta dela — foi a responsável por cavar este destino. Uma vida cega de objetivos, de prazeres, de sonhos.
Como se sentir bem na morte, vivendo de uma forma dessa? Como poderia alguém falhar em viver a própria vida?
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Um dia antes do anúncio da profecia, sete dias antes da invasão. Esta é a última manhã quente do ano de 786.
Meus olhos apontam para o centro do vilarejo, enquanto sigo em um ritmo lento. Embora sejamos uma comunidade de ferreiros, somos mundialmente conhecidos pela estrutura que cercamos: a Academia de Frederiksborg.
É um dos castelos mais antigos do continente, fundado pelo primeiro Imperador Alfar — anterior à maioria dos reinos que habitam as terras Jotuns de Deltland. O centro acadêmico que até os dias atuais persiste como o mais prestigiado no ensino da invocação e feitiçaria das terras de Alfheim. O meu sonho de estudar lá já morreu há muito tempo, hoje só o reconheço como ótimo para os negócios.
Minhas mãos calejadas estão agarradas firmemente às rédeas do meu animal de transporte. Puxando a minha curta carroça, cheia de peças de armaduras leves e ferramentas menores, meu grande roedor para quando chegamos a mais uma visita matinal.
Esse ser gordo e de pelo amarelo e castanho, é de uma raça conhecida como Porcellus. Seus olhos pequenos como frutas negras silvestres, brilham ao esperar ser recompensado pelo trabalho duro.
— Aqui, aproveite — presenteei com uma ração de legumes e ervas. Sinto que ele come melhor que eu, que injusto. Será que ele é tão gostoso quanto dizem?
Recebo um estalar de dentes agressivos.
— E se você for mesmo delicioso? Não poderia negar — digo o provocando com um pouco da ração enquanto me balanço.
Outros porcellus, que trabalhavam pelas ruas estreitas, sentem o cheiro da comida e se sentem atraídos — entretanto, suas rédeas são puxadas por seus carroceiros e logo voltam ao trabalho. Não os culpo, esta ração especial é uma das poucas coisas que faço com maestria.
Um estrangeiro que visse essa cena ficaria de queixo caído — não pelo meu gingado, mas pelos animais. Os porcellus, ao contrário das outras raças de transporte, são extremamente caçados em outras regiões: como fonte de alimento devido à sua carne gorda e macia. Nossa vila é a única que os protege, e sou grato pela companhia deles.
Subo a calçada de tijolos de pedra e bato a porta feita de madeira e ferro. Um homem a abre, sua cabeça é desprovida de cabelo, e suas longas orelhas estão caídas pela idade.
O rosto enrugado, faz como todo pertencente aos Alfar — assume uma expressão de indiferença. Cheguei ao ponto de não ser mais afetado, ou acho que não.
— São as peças do Regin? — diz, coçando o saco e andando até a carroça.
— Sim, senhor. Os capacetes e as picaretas — respondi voltando à sua proximidade e apontando as peças.
— Você age… como se eu não soubesse o que são. Você que deveria estar puxando a carroça. — Ele cospe sobre os meus pés.
Ele agarra um dos capacetes e diz: — E ele ainda se diz ferreiro? — Entortando o metal do capacete — Vendendo uma porcaria dessas?
Ele se irrita e joga o capacete contra a carroça, recuo para aliviar o susto do meu roedor.
— Só compro se ele fizer algo usável. Não esse lixo que você entregou. – grita, enquanto volta para a casa e a fecha com brutalidade.
Ao subir a carroça. Vejo a figura familiar de alguém que tem tudo, ou quase? Bem, tem muito mais que eu: Den Morke.
Estou exausto de ouvir o mesmo de sempre das garotas que o perseguem: “Ele é lindo, sua pele clara é tão lisa e macia. Seus cabelos negros são tão sedosos e brilhantes.”
Diz uma garota de olhar apaixonado: — Den, seus olhos verdes lembram esmeraldas. — Eu queria escutar algo assim de mim. Não só “saí da frente”.
Den me percebe e casualmente me chama pelo nome, nossas conversas são raras então eu me surpreendi bastante.
– Desculpa me intrometer, você parece cansado, já está voltando pro galpão? — diz com uma voz serena, ele encanta as mulheres.
— Ah, sim. As vendas não foram boas — respondi sorrindo, droga, não queria ter sorrido, ele praticamente me forçou um.
Ele se despede das garotas e vem até perto de mim com sua carroça. Ela tem o mesmo tamanho da minha, mas o ser que a puxa é especial — um Walleri, uma raça de ave terrestre de penas azuis, usada pela alta cavalaria dos Alfar.
Olhar para ele é como se estivesse encarando o sol, só de pensar que dividimos o mesmo teto me desanima. Den é um meio alfar e meio jotun, filho de um amor proibido do castelo; por causa disso, ele recebe diversos presentes que eu jamais ganharia.
Ele é uma vergonha para o pai, e foi abandonado aos cuidados de Regin como eu. Tivemos a mesma vida, mas ele sempre foi tratado diferente; até as peças que ele vende são melhores que as minhas, e olha que sou mais velho! Tenho só 27 anos, porém são 10 a mais que ele, e ainda só vendo capacetes e ferramentas!
Ele se põe paralelo a mim e diz sussurrando: — Estou um pouco cansado das garotas. Eu não me importaria de dividir elas com você.
“Ele está falando sério? Isso não é objetificação da mulh- ”
– Não, não é desse jeito. — Ele leu minha mente com facilidade. — Posso arranjar um encontro para você!
Meu coração bateu mais rápido, só a hipótese disso disparou desejos adormecidos em mim. Eu deveria aceitar, mas: e se ele estiver brincando comigo?
— Não, eu não posso — falei sem vontade.
— A gente só apostaria uma… — Den tentou falar, mas parto no meu caminho, o deixando para trás.
É melhor assim, se ele brincasse comigo eu me ferraria. Mas, e se ele não tivesse brincando? Fico repetindo isso na minha cabeça.
Voltando para o velho galpão de madeira, uma voz me chama atenção e me tira do transe. É meu chefe, Regin; um antigo oficial das tropas do castelo, e que atualmente trabalha gerenciando e fabricando equipamentos.
Ele é um Svartálfar, conhecido por seu enorme bigode. Seu corpo é arredondado e coberto por placas perfeitamente adequadas ao seu físico. Entrando em detalhes: a armadura é feita de excelente material e possui um brilho prateado – embora acredito que seja desnecessária, devido ao cargo que ele exerce.
Ele bate palmas para chamar a minha atenção, mesmo que eu já estivesse o encarando: – O que está fazendo? Voltando com toda essa carga?
— O vendedor não quis, disse que a qualidade do metal não era boa.
— Como assim o metal é uma desculpa? Ora, você não queria ficar em segundo lugar nas vendas? — Isso é algum tipo de motivação?
Regin enfia a mão na carroça e pega um dos capacetes. Ele testa a dureza do metal ao dobrá-lo com os dedos: eles se entortaram ao ponto de me assustar. E então o desdobrou e o pôs sobre a minha cabeça.
— Não faça essa cara! Não foi seu problema, foi problema dele. Escute com atenção, Nido, como um comerciante deve fazer, memorize tudo!
Concordo com a cabeça, ouvindo com atenção. Sua voz assume um tom confiante, movimentando sua palma enquanto fala:
— Uma evolução tecnológica: pior material, não! Esqueça essa parte!… O mesmo material! O mesmo preço e ainda mais leve!… ideal para crianças!
Simplesmente bato palmas, embora a maioria discorde, considero o “tio” Regin um gênio. Ele é meu tio de consideração, daqueles distantes e atarefados, mas é o mais próximo que tenho de um.
Em seguida, como sempre: ele me enche de notícias inúteis sobre os destaques que seu filho recém formado na cavalaria; Randi, está ganhando na tropa. Quando acho que vou ser dispensado do trabalho, ele me manda voltar a vender e só parar quando esvaziar a carroça.
Boas horas passaram e a minha roda acabou atolando num buraco de lama. Só o som do ocorrido já me fez resmungar e me curvar. Estou exausto, e o porcellus também; como está tarde da noite e as ruas estão vazias, tenho que resolver isso sozinho.
Pego uma tábua que acredito ser dura o bastante e tento colocá-la debaixo da roda, meus dedos calejados se ferem quando eu faço o movimento e as minhas pernas fraquejam só de manter a tábua erguida.
Não consigo: normalmente eu teria a força necessária, mas nessa hora do dia não me resta uma gota de energia. Desisti e me sentei de costas para a carroça.
Ao fim da rua, existe uma pequena pracinha central, onde reside uma perfeição da forja: com a lâmina oculta, feita de metal rúnico, e de cabo endurecido com a pele de criaturas lendárias. Esta é a espada do Último Imperador dos Alfar — décadas antes de sua morte ele cravou sua arma numa imensa pedra enraizada no solo.
Queria ter nascido alguns anos antes para ter visto esse momento. Suponho que me borraria de medo, mas valeria o momento. Afinal, dizem que ao enfiar-lá na rocha, a pedra se derreteu em lava, cuspindo luz e fogo em seu processo de fundição.
Tanto a espada quanto a pedra estão enfeitiçadas por uma maldição, que foi dita como: “Somente aquele que suportar erguer a minha arma, será quem irá trazer a salvação do meu povo.” Como esperado: todos tentaram por muitos anos, incluindo eu aos 10, mas sem resultado algum.
Fiquei olhando aquela espada por uma hora, pensando em todo tipo de feitos e transformações que poderia causar. Todavia, lembro que tenho trabalho amanhã, ou talvez… hoje? Merda. Quem sabe eu tento outro dia?
Finalmente ponho a tábua sob as rodas para que a carroça prossiga seu caminho. Com tudo vendido, só precisava guardar o porcellus e a carroça no estábulo.
Ao concluir as tarefas, agarrei uma lamparina no balcão próximo à porta do galpão. E subi as escadas ao lado dele em direção aos dormitórios — Regin tem o costume de oferecer moradia aos seus trabalhadores, assim ele paga menos, sinceramente eu não me importo.
Está tarde e, se eu acordar alguém neste horário, serei espancado pelos trabalhadores. Atravesso para dentro do pequeno quarto compartilhado e me aproximo da cama em silêncio.
Meu corpo desmoronou acima dela, nem mesmo tive coragem para fechar a janela que soltava um vento frio, quando menos percebo a minha mente já estava envolvida nos braços da noite.
Estranhamente, acordo. Imagino se meu corpo cansado se recusa a dormir por causa de uma sensação de dever não cumprido. Além de que, esse mesmo evento recuperou toda a minha energia com só algumas horas de sono.
Olhei pela janela e ainda estava escuro, tudo o que me vem à mente é a espada: Subo a janela torcendo para não acordar os outros, faço um movimento em falso e, droga, escorreguei pelo telhado!
Atinjo o chão de uma altura considerável, mas não obtive ferimento algum — imagino ser a tal sorte ou destino, eles estariam do meu lado dessa vez? Bato a poeira das minhas calças e corro com todo vapor até a praça.
Sinto meu corpo leve, o gozar de correr livremente, sem precisar carregar altos pesos foi algo que perdi com o tempo. A luz da lua acompanha a minha corrida, me fazendo correr em direção à minha sombra. Ao alcançar a espada, estou completamente sozinho, não ouço uma voz ou rangido em centenas de metros.
Uma luz inicialmente delicada se intensifica sobre a pedra em meus pés. Presencio a energia dele flutuando até minhas mãos, como pequenos seres de luz que voam ao meu redor. Encosto meu dedo no cabo, e uma doce voz me chama — eis a espada do imperador capaz de falar com seu portador?
Ela repete meu nome: — Nido!…. Nido! Nido!
Meu corpo se arrepia, a adrenalina passa por cada veia minha.
— Sim! Este é meu nome! — Brandi com o orgulho de uma vida.
Mas recebo um tapa e acordo do meu sonho. Desperto completamente perdido: com o sol forte batendo no meu rosto e um dos trabalhadores gritando o meu nome.
Escuto dezenas de passos escadas abaixo por todo o galpão. Antes que eu conseguisse formular uma frase, o homem que me bate diz a causa do tumulto:
— Conseguiram sacar a Espada do Imperador!
Que merda.
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