A fina fumaça branca deu abertura então para a transformação total dos céus. No primeiro momento, o céu limpo foi tomado por nuvens escuras que bloqueiam quase toda a luz do sol.

    Um imperceptível movimento circular entre as massas de ar ganhou força e, em poucos segundos, foi capaz de desenhar um ciclone que foi crescendo ao chão. O movimento caótico do povo sofreu uma repreensão extrema; a criação daquela obra de magnitude divina transformou os gritos e comemorações em um silêncio mortal.

    O ciclone tocou a ponta da espada e se desfez, dispersando seus fortes ventos agora em espirais ao redor de toda a vila. A superfície da rocha em nossos pés começou a se partir; vãos e vãos foram nascendo das lascas da pedra dividida. Delas, surgem toneladas de uma massa borbulhante de fogo, emergindo ao solo e, ao se converter em uma lava escura, reivindicaram o espaço da praça.

    As pessoas acima de mim saltam para fora das placas rochosas, que bóiam sobre o magma em transformação — no fim, o maldito do Den ainda conseguiu me salvar.

    Mas, sob desconhecimento dele, ou não. Julgarei que sim, mas não duvidaria que ele houvesse feito com consciência: acabei cara a cara com a fonte de calor escaldante. Meu corpo, como esperado, não se mexe; paralisou ao ver aquela chama devorando o chão, e que em breve me faria sua vítima.

    Quando recobro o controle dos meus músculos, estou caído no chão aos pés do bigodudo de pijama. Sinto alívio, sim, mas acabei mais surpreso ainda quando foi Regin o meu salvador! Ele colocou-se em risco para me salvar, e olha que com a sua largura… eu não deveria pensar isso dele.

    — … Regin! Obrigado, por ter me salvado! — Depois do que ele me disse, poderia adicionar: “eu não esperava isso de você” mas volto atrás em respeito.

    — Você ‘tá muito surpreso. Eu ainda tenho a honra de ser ex cavaleiro! Agora, levante-se! — Me puxando pela gola.

    Forço meus pés contra a terra e já fico de pé. O portão do castelo estava aberto, e dele saíram dezenas de jovens e adultos. Seus cabelos possuem cores distintas, e suas orelhas pontudas com quase o dobro das nossas eram de fato seus maiores destaques.

    São os engomados do castelo, de maioria Alfar. Entre o grupo tem membros de todos os cargos: alunos da alta classe, professores, coordenadores e o diretor. Pessoalmente nunca os tinha visto pisando no mesmo chão que nós — sempre ficavam acima dos muros ou em palcos protegidos.

    Um coordenador, com rosto de nojo, tenta abrir a boca para criticar o causador do evento, mas um poderoso raio instantaneamente atinge as margens de seus pés como um aviso. Só notei agora que, enquanto eu estava inconsciente, Den foi erguido ao topo de uma pilastra de magma frio, e parecia tão surpreso quanto nós.

    Uma nova praça perfeitamente circular nasceu da lava após seu resfriamento. A extensão de seu diâmetro beira os 12 metros, e a sua textura lembra o vidro, o que me fez imaginar; juntamente com a sua cor negra, que talvez fosse feita de um material raro: conhecido como obsidiana.

    Ela tem um metro de altura, com uma alta pilastra inclinada ao centro que mede talvez 6 ou 7 metros. Sem falar das três belas escadarias colocadas com distâncias iguais ao redor dela — são o que a torna acessível a nós pequeninos.

    Quanto à sua superfície: estranhas marcas profundas vazam pelas bordas da estrutura. Elas estão dispostas em uma sequência única com um centímetro entre si, a mesma largura que as marcas possuem.

    Den desce da estrutura com um salto que lembra um curto voo. Logo em seguida, faíscas e pequenas porções do material espalhado começam a flutuar em direção ao topo da estrutura.

    Os fragmentos ganham uma nova propriedade, se encaixando e agindo como as engrenagens de um moinho. Eles formaram um grande objeto multi poligonal, que constantemente se transforma em diferentes formas, infinitamente.

    Me assusto quando, por causa da sua característica particular: o objeto assume uma face humana rochosa, que magicamente é capaz de se expressar ao utilizar uma voz poderosa como os trovões.

    — Eu anuncio: A profecia do fim de nossas terras! — gritou uma voz masculina, rouca e envelhecida; distorcida pela eletricidade.

    Ela é acompanhada de uma bola de eletricidade ao redor do objeto, disparando pequenas cargas elétricas ao ar e ao solo. É tão belo quanto horrorizante.

    — É… a voz… do Imperador Cego — diz Regin, com a garganta quase trancada.

    “Imperador Cego”? Eu e outros jovens ficamos surpresos, é o Último Imperador? Não o chamam desse nome há anos, por ser considerado desrespeitoso.

    — Ele já faleceu! É impossível! — criticou um Jotun, com as mãos na boca para ampliar o som.

    — Estão comprometendo a imagem do imperador! São os oradores! — Gritaram outros Svartálfar, que também são repreendidos por meio da eletricidade.

    Um homem de cabelos grisalhos, que acredito ser o diretor, se afasta do grupo de acadêmicos. Ia marchando em silêncio e de rosto fechado, que embora seja enrugado, ainda o possibilita expressar toda a convicção que lhe fosse preciso. A fim de questionar o Imperador, ele se curva nos degraus da praça:

    — Meu imperador! Imploro-te que explique-se. O que diz essa temerosa profecia, que lhe fez voltar dos mortos? — A cordialidade e experiência que sua voz emitia, era tão impressionante quanto a poderosa fala do imperador.

    O falecido imperador aumenta sua voz, e então o responde com firmeza:

    — Ao fim dos cinco anos que vêm! — Essa frase empurrou os homens graças às forças dos ventos.

    A partir desse momento, por meio de um feitiço ou algo desconhecido, as palavras dele se transformavam em imagens distorcidas na nossa mente.

    — O trigo perderá seus nutrientes. E os frutos nascerão podres! — Vi plantações inteiras secando, a mata morrendo, e a fome penetrando na vida de todos, independente da classe social ou da raça.

    — A água deixará sua natureza insípida e terá o gosto e o cheiro do mijo de porco, não importa quantas vezes ela seja filtrada! — Doía ver o povo passar sede, os rios contaminados sendo rejeitados, as crianças e os animais recusando-se a beber.

    — Os animais virarão cadáveres, que servirão de casas e alimentos aos vermes, cujo estes também irão caçar aos pobres moribundos que restarem! — Vomito quando criaturas repugnantes; saindo da terra e do céu, se alimentavam da carne podre dos seres e exterminando os vivos que sobreviveram.

    — E todo humano, animal, ou criatura que respire ou procrie, será entregue como sacrifício e sofrerá, a partir desse momento, como combustível de dor por toda a eternidade! — Essa é a imagem menos entendível, vejo manchas de luz deixando a terra e sendo puxadas por alguma entidade obscura nos horizontes.

    — Este é o destino amaldiçoado de toda a Alfheim e de todos os países vizinhos a ela! — Finalizou com fortes trovões.

    Não conseguia entender, é ele quem nos amaldiçoa, ou é o nosso oráculo para a salvação? Saindo de mim, só via choro e vômito por todas as partes. Entretanto, um pouco de esperança foi dada quando o Imperador deu continuidade à sua profecia.

    — Para que a Calamidade possa ser evitada, meus filhos— fez uma pausa na fala, e só voltou a falar quando a atenção de todos virou-se a ele. — É exigido que um dos heróis, deva permanecer em seu título até o fim dos relógios.

    — Relógios? — escapa da minha boca.

    O Imperador novamente, usando a estrutura poligonal que lhe dava voz: refletiu um feixe de luz mais claro que a luz do sol, e o direcionou fixamente à um só ponto de marcação da praça.

    — Com esse fino raio de luz, independente se o faz sol ou se uma tempestade noturna o cubra, saberão que dia estão e quantos os faltam para o fim dos tempos! — O “relógio” é então, um calendário de dias?

    Após a explicação, outra dúvida entrou em vigor:

    — Um herói meu imperador? — perguntou um velho mineiro, que é interrompido por outros em seguida.

    — Quantos heróis? Quais seriam capazes disso? — insistiram alguns coordenadores.

    — Como saberemos, entre os homens, quem é o herói? — finaliza o Diretor, calando seus subordinados.

    O imperador já esperava essa pergunta, ele diminui o fluxo dos ventos e intensifica a luz em seu centro.

    – Aqueles que desejarem e lutarem com convicção: serão escolhidos e glorificados pelo povo para ter o título de herói, o seu título por si só é a honra necessária, que definirá o novo herdeiro do meu trono! E também quem trará a salvação do meu povo!

    A recepção foi um pouco melhor, digo, muitos homens aparentavam estar animados, mas uma boa parte ainda chorava. Não sabia o que pensar sobre — vou ter que trabalhar e esperar 5 anos para um herói surgir?

    Uma eleição tão urgente não ocorre há séculos. Soube que meu povo aguarda várias décadas até que um imperador oficial surja para tomar o controle do país. O conselho, quando não há herdeiros ao trono, é o responsável pela orientação e definição da coroa em tempos de ociosidade — a influência deles de nada muda o meu cotidiano, então não sei muito sobre o tema.

    Entre as 9 capitais de Alfheim, a maioria não exige que alguém seja coroado às pressas. A boa aparência no aguardo, para que um dos governantes das cidades-estado seja escolhido, parece ser a prioridade. Portanto, é comum esperar épocas de 20 à 30 anos para que alguém seja coroado.

    Den, que esteve calado até então, levanta a voz ao objeto falante:

    — Se existirão mais de um herói, como só um deles deve possuir o título? O que você quer dizer com isso? — Sua voz possuía um forte orgulho audacioso.

    — Que só deve restar um para ascender — Enalteceu o Imperador usando um tom ainda mais alto.

    Den responde se curvando ao Imperador. E então a profecia continuou.
    — Ao longo dos cinco anos, três grandes trabalhos irão surgir, completem-os e eles servirão de inigualável ajuda no enfraquecimento da Calamidade.

    Ele ilumina fortemente a arma de Den com seu raio.

    — Como seu atencioso imperador, deixei espalhados aos cantos dessa terra, minhas armas sagradas. Elas carregam minha alma, meu sangue e minha energia. Façam proveitos delas de forma que honre o meu nome!

    Calamidade? Heróis? Relógio? 5 anos? 3 trabalhos? Armas? Minha mente e a de muitos outros não conseguia acompanhar.

    Nenhum de nós sabia naquele dia que a mesma mensagem estava sendo entregue em outros cantos de Alfheim simultaneamente.

    — Aqui acaba a minha profecia. — concluiu o Imperador, dando um fim aos seus raios e clareando o céu.

    O desespero emergiu para fora do povo, que ainda ansiava por respostas:

    “Espere! Por favor!” — Foi gritado aos montes.

    Já outros tiveram maior criatividade.

    — Não! Ainda falta muito a ser explicado!

    — Esse cego! Até na morte nos amaldiçoa!

    A face do objeto volta a se transformar, deixando o rosto e a voz do imperador se desfazerem em nada.

    Den viu aquilo como o seu momento, estava óbvio por sua agitação. A hora em que ele assumiria o controle do fervor do povo para si. Mas o destino já lhe tinha reservado outros planos: subitamente, após o retorno do imperador à inexistência, sofreu de um mal inesperado.

    Seu rosto demonstrava-se insano, gritando de dor mesmo sem ter fôlego, com lágrimas escorrendo pelos olhos e uma expressão de agonia inigualável que causava ânsia à quem o assistia.

    Como tentativa de escapar daquele estado deplorável, ele se jogava contra a pilastra na esperança de se nocautear, atingindo sua cabeça e fazendo-a se cortar em vários pontos da testa.

    As pessoas em pânico ainda não tinham tomado noção do que lhe acontecia, mas os Alfares e aqueles mais próximos estavam assistindo a cena com atenção.

    O diretor; destacado por seu manto especial, subiu à praça em silêncio, e se aproximou daquele corpo em pânico.

    — Vejo que a espada teve motivos para escolhê-lo. Sua persistência… inegável, é mesmo surpreendente.

    Ele estende sua mão direita com a palma para baixo, pairando-a sobre a cabeça de Den. Ela é vestida com uma luva de seda branca e dourada, marcada por um símbolo rúnico amarelo.

    E assim, em conjunto com o brilho da runa, uma enorme agulha de luz atravessa o olho de Den, jorrando seu sangue após a explosão do órgão.

    Relembrando agora, cobri meu rosto. Não sei se era para vomitar ou para esconder a minha cara de Regin.

    De alguma maneira, eu aproveitei aquele momento? Ver ele sofrer daquela maneira deve ter me dado algum sentimento de vingança.

    Essa emoção que eu senti, eu sentia ódio dele. Mas por qual razão? Ódio por ele ser algo que eu não sou, e de ter o reconhecimento que eu queria ter tido?

    Eu falhei em ter o orgulho daqueles ao meu redor, fracassei em me fazer alguém merecedor da espada, fui um inútil até em escapar do perigo sozinho — eu só projetei os meus fracassos nele.

    ||

    De volta ao meu poço de pensamento, com a dor em meu peito reduzida significativamente.

    Mesmo no dia mais importante da minha vida, não fui capaz de fazer nada além de ser um espectador qualquer. Sentia raiva de Den por ter sido alguém que eu sonhava ser, e possuir o reconhecimento que me julguei ser merecedor. Embora eu só estivesse projetando os meus fracassos sobre a responsabilidade dele.

    Esse momento transcreveu toda a minha vivência até então:
    “Sou o telespectador da minha própria vida” Que ouve e concorda com tudo o quê escuta; brinca e ri para ser aceito; que chora de raiva ao fim do dia, e repete tudo mais uma vez.

    A minha vida era sim difícil, árdua e trabalhosa. Limitei meus horizontes e meus objetivos ao me dedicar somente ao cotidiano. Não tive grandes conquistas e nem sonhos alcançados, foi uma vida de privações — e de auto sabotagem.

    Achava que as outras pessoas tinham algo especial: que lhes faziam ter mais sorte ao nascer, ou terem mais força e inteligência que o normal — coisas que acreditei jamais ter. Entretanto, esse pensamento foi uma algema que eu mesmo coloquei.

    Agora entendo o meu arrependimento, o que tanto machuca o coração: eu construí esse pobre destino que tive. Embora os outros com que convivi e o lugar que morei foram fatores que me impactaram, só eu tinha o poder de transformar e me moldar como pessoa.

    De fato, é impossível para alguém se sentir bem na morte ao ver que foi incapaz de ser um humano comum — só fui um covarde, que rejeitou as responsabilidades da vida.

    Meu corpo afunda na cama macia, estou finalmente morrendo? O frio me envolve, a ponto de tremer, e até o ar me é roubado dos pulmões. O que está acontecendo? É assim que é o fim?

    Minhas pálpebras estão pesadas como um portão de ferro, abri-las foi um desafio tão grande quanto a batalha que tive:
    Eu voltei à realidade. Ainda estou vivo.

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