Capítulo 1 - Anomalia
Agora, caro leitor, deixe-me eu… Elar, assumir a narração.
22h. Necrotério do Cemitério do Bonfim.
Lá estava. Estirado sobre a mesa de aço inox, pele parda já perdendo o tom, boca seca, roxa. Cabelos em low fade, cinco buracos no peito. Precisos. Frios. Sem chance de defesa.
Mataram-o sem dó. Mas o tal bandido que o derrubou morreu com dezenove tiros logo depois.
Se isso serve de consolo…
— Tão jovem…
A voz saiu baixa, quase um lamento. Era da médica legista: loira, olhos azuis, óculos retos. Com luvas enluvadas, ela tocava com cuidado um dos furos no tórax.
— Minha idade… mais um jogado na conta da violência urbana.
Ao lado, um homem mais velho soltou um pigarro seco. Sem máscara, camisa encardida e um olhar de quem já viu mais cadáver que segunda-feira chuvosa. Era o Sr. Hermes.
— Tá com pena, doutora? — soltou, com um ar quase de deboche. — Esse é o tipo mais comum por aqui. Nunca passam dos vinte e cinco.
— Que comentário horrível, Sr. Hermes… — ela revirou os olhos, já irritada. — Ele não tinha nem antecedentes. Só entregava pizza…
— É… mas pela cara dele, até os bandidos devem ter confundido com concorrência no grupo — riu seco, pegando o bisturi com naturalidade. — Bora tirar essas balas ou vai fazer uma poesia? Ainda tem corpo na fila.
Horas passaram.
O relógio na parede já tinha dado três voltas completas. E na bandeja de inox ao lado, as cinco balas recém-extraídas repousavam ainda banhadas em sangue frio, escorrendo em lentas gotas que batiam no metal com um som quase ritmado.
Ploc… ploc…
A médica se afastou por um instante, removendo as luvas, exausta. Estava prestes a preencher os relatórios quando notou algo estranho… um movimento sutil, quase imperceptível, no tórax do morto.
Franziu a testa. Pisou mais perto. Observou com atenção.
O peito se movia. Levemente. E de novo. E de novo.
Ela arregalou os olhos, cambaleando um passo para trás.
— Ele… ele tá vivo! — soltou, trêmula.
O velho, que rabiscava qualquer coisa num caderno velho, soltou uma gargalhada.
— Como? Tá maluca, doutora? Isso é só o corpo expelindo ar. Reflexo cadavérico, acontece direto. Já vi até corpo mijar…
Mas não deu tempo nem de concluir.
O morto sentou.
De uma vez.
Bocejando.
Os olhos meio zonzos, encarando os dois como se tivesse acordado de um cochilo num sofá, não numa mesa de autópsia.
O peito dele… estava se fechando. As costelas estalando como se algo invisível estivesse tricotando carne, os ossos se alinhando por conta própria. As cicatrizes das balas agora eram só linhas pálidas. Costuradas por alguma força que não era bisturi nem ponto.
— Que caralho tá acontecendo aqui?! — sua voz saiu rouca, arranhada, viva.
Olhou pra baixo. Só um pano cobrindo o básico. Por reflexo, deu um pulo pra trás e caiu sentado no chão gelado, batendo a bunda com força.
— Puta merda! Vocês tiraram algum órgão de mim?!
Tocou o próprio abdômen, vasculhando com as mãos, esperando um rombo, um buraco, algo… Mas não. Só cicatrizes frescas, limpas.
Levantou-se rápido, meio cambaleante, puxando o pano pra cobrir as partes, olhos arregalados, encarando os dois:
— É melhor começarem a explicar, seus miseráveis…
Hermes… travou. Os olhos viraram e ele caiu como uma árvore podre. Duro. Seco. Sem nem dar um gemido.
PAF.
Desmaiado.
A médica gritou, mais de susto que de medo, e se escorou na bancada, a mão trêmula como se tivesse mergulhado em gelo.
— Você… você morreu… — balbuciou. — A gente… a gente tava retirando as balas… eu vi você sem pulsação, sem respiração, você morreu!
— Morri?
O sussurro escapou seco, mais como uma dúvida jogada no vazio do necrotério do que uma pergunta real.
Flashs.
O estampido das balas. O gosto de sangue na garganta. Dor. Escuridão.
— Morri…
Piscou. A garganta arranhava a cada respiração. O peito subia e descia — coisa que, até minutos atrás, não era pra acontecer. Olhou ao redor: instrumentos cirúrgicos sujos, cheiro de formol impregnado nas narinas, o corpo do velho jogado no chão como um boneco sem pilha, e a médica… em choque. Mãos trêmulas. Pupilas dilatadas.
As luzes brancas tremiam no teto como se também estivessem com medo.
E então, ele sentiu.
Algo dentro. Algo errado. Ou… diferente.
Como se seu coração batesse em outra frequência. Como se seus ossos agora fossem feitos de alguma coisa que não devia estar no corpo de um humano comum.
Não era o medo.
Era presença.
Algo estava lá. Respirando com ele. Nele.
Cael era real. Estava ali. Mas… não era normal estar vivo.
O ar parecia pesar em volta dele. Como se o universo inteiro segurasse a respiração. Como se o mundo tivesse se inclinado só um pouco ao redor dele — como se algo maior tivesse notado sua existência.
E nesse instante, entendeu.
Ele era uma anomalia.
❍❍❍ ᨖ ❍❍❍
— Uma… anomalia!?
A voz ecoou no alto dos planos — para além do véu, acima do intermédio, onde o tempo se curva e o espírito se desfaz. Ali, no trono imaterial do mundo espiritual, uma entidade se ergueu com olhos de abismo.
Tháenar.
Deidade do Fim, Juiz dos Caminhos, Tecelão das Partidas.
Trajava um manto branco que flutuava sem vento. Seu cabelo, longo e negro, caía como cachoeiras de tinta sobre os ombros e além. Seus olhos, absorviam estrelas. O silêncio que o cercava era o mesmo dos cemitérios e das galáxias mortas.
Em suas mãos, repousava a Harpa da Vida, um instrumento feito de seu próprio Eco, com cordas de tempo e destino. A cada toque, um fio de existência era cortado, findando uma história entre os mortais.
Mas naquele instante…
Não tocou.
E por isso encarava o vazio onde deveria estar o eco do julgamento de Cael.
— Como? — sussurrou, com fúria contida. — Como uma alma ousa perecer… sem meu consentimento?
As cordas da harpa vibravam sozinhas, inquietas, como se o próprio instrumento sentisse o erro.
Pois se não houve toque…
Não houve julgamento.
E se não houve julgamento…
A alma não partiu.
Presa entre os mundos, sem guia, sem trilha, sem direito à travessia, ela retornou.
Não como homem.
Não como espírito.
Mas como outra coisa.
Algo novo.
Algo que não devia existir.
Algo que o próprio não previa.
Uma anomalia.
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