Capítulo 12 - Empatia
Aquele dia terminou frio.
Mórbido.
Como se algo tivesse morrido.
E de certo modo… morreu.
A confiança entre os dois.
— Maldito! Como teve coragem de ser X9? E ainda pedir minha morte… ah, se eu tivesse uma .38… rapaz…
Rangeu os dentes.
Quase quebrou.
Ao longe, a muralha já não existia.
Sumira em menos de uma hora, engolida pelo vazio — e agora começava a ser reestruturada, pedra por pedra, pela força quase onipresente de Elohim, lá de cima, sentado em seu trono celestial como se estivesse casualmente jogando.
E o choque das almas?
Resolveram como sempre resolvem tudo nesse plano:
“Era só uma simulação.”
Claro.
Sempre é.
— Você não consegue nem me entender? Sabe o que isso aqui significa?
Mas ele não recuou. Nem piscou.
Só deu de ombros.
— Como vou saber? Só sei que tu é Zé povinho…
— Humano — cuspiu a palavra como uma maldição — Essas muralhas são a única coisa que protege o Intermédio dos malditos deuses. Me achou cruel?
Um sorriso irônico, amargo.
Desgastado.
— Você não sabe como eles são. Se pudessem… dançariam em nossos corpos ou jogariam futebol com sua cabeça. A guerra… foi terrível!
— Guerra?
— Há dois mil anos… — seus olhos afundaram no passado — …os deuses decidiram que minha raça era uma praga. E então os três mundos colidiram.
— Dois mil anos, cara… isso nem te afetou!
— Você julga demais — hipócrita até o último fio de pelo da sobrancelha, mas com pose de razão — Acha que não sofremos? Não podemos nem nos reproduzir por amor. Guardiões não têm filhos, só criam armas conscientes. A gestação dura três anos. A chance de sobrevivência é de 1%… um mísero por cento! Acha que eu ia arriscar tudo isso só pra salvar uma anomalia desgovernada? Não!
— Caramba…
— Caramba, né?
— Mas não precisava me matar, porra… você precisa ser menos ansioso. E traumatizado!
Suspirou.
— Menos ansioso e traumatizado?
Olha quem fala, o próprio colapso ambulante.
— Grr… eu falando isso? É uma bosta… mas cacete… não estar na lama não me faz cego dela…
— É assim que a banda toca por aqui — disse, com os ombros afundando sob séculos de obediência — Mas… nosso chefe? Ah, ele é flexível. Sempre foi. Nunca bateu continência pras regras nem beijou o anel da tradição. Igualzinho ao nosso senhor, Elohim: bondade máxima, neutralidade nível zen. Enfim… não vai ser este pobre coitado aqui o idiota a desobedecer ordem superior. Mesmo que eu ache a ideia uma bela porcaria! — soltou o ar como quem já perdeu a discussão antes mesmo de começar.
— Hm… vocês são um caos ambulante, hein.
— …Somos, mas…
Ajoelhou-se.
Não por vergonha — essa palavra nem fazia parte do seu vocabulário.
Foi por escolha. Teimosia, talvez. Mas, acima de tudo, convicção.
— Vamos focar no que importa, vai. Não é como se eu estivesse me traindo ou engolindo meus próprios pensamentos… só tentando, sei lá, não ser um completo imbecil. Então, deixa eu te treinar. De novo. Só mais uma vez. Vai que, por milagre, dessa vez você aprende sem explodir nada… ou destruir, sei lá, nossa única esperança!?
É, não foi um pedido ruim.
O ressentimento estava lá. Silencioso, mas firme, como uma sombra que não desgruda.
Mas o universo exigia resistência, paciência, empatia.
— Cacete… isso é meio chato, tá ligado? — Cael coçou a nuca, sem jeito — Mas porra… tá bom, universo… vamo fingir que eu sou evoluído hoje.
Suspirou. Daqueles suspiros pesados, tipo desabafo comprimido.
O tipo que resume quinze traumas, três decepções e um leve ranço existencial — tudo em três segundos e meio.
Parou. Pensou no que passou.
Reavaliou, com a mão no queixo e aquele olhar de “puta que pariu, olha onde cheguei”.
— Vamos lá. Sou brasileiro, mano. A gente aguenta tudo. É uma merda… mas é isso aí.
— Certo então… vamos passar a noite treinando? — perguntou com um sorrisinho agridoce, desses que tentam disfarçar o cansaço com um restinho de boa vontade — Pra compensar o dia, né…
— Tá maluco? — Cael deu dois passos pra trás, exausto só de ouvir — Não, valeu. Já teve humilhação demais por hoje. Fecha a conta.
Suspirou. De novo. Já era a terceira vez naquela hora, o que devia dar direito a um café ou algo assim.
— Aliás… o tempo aqui passa rápido, né?
Essa imprevisibilidade. Quase irritante.
Como coceira que você não alcança.
Esse cara é… idiota.
Mas não do tipo perigoso.
Não é o tipo que você observa com um olho enquanto o outro procura uma saída.
Não. Ele era só… idiota mesmo.
E, estranhamente, isso tinha lá seu charme.
Um torto, desacertado. Como quem tropeça e, ainda assim, sorri como se fosse parte da coreografia.
Observava seus trejeitos — exagerados, às vezes cômicos, quase como se fosse um personagem tentando convencer o mundo de que sabia o que estava fazendo.
E talvez soubesse… mas do jeito dele. Um jeito meio torto. Meio trágico. Meio, sei lá, humano demais pra alguém com tanto poder.
Era engraçado. O suficiente pra empatia bater, mesmo quando você tenta ser cínico, frio, calculista.
Porque ele era isso. Um paradoxo com pernas e cara de quem dorme mal, mas ri fácil.
Ainda assim…
Quero ver onde isso vai dar.
“Por quê?” Nunca foi sua praia.
Mas observar? Ah… isso, sim.
Isso ele fazia como ninguém.
— Metade do tempo do seu mundo — respondeu enfim, após suas longas reflexões, agora com um sorriso leve no canto dos lábios — Doze horinhas apenas…
— Cacete… só isso? — franziu o cenho — Então cada ciclo – dia, tarde, noite – tem o quê? Cinco horas? Três?
— Quatro horas! — Com aquele tom pedagógico de quem quer enfiar um quadro-negro na cabeça do outro — Você é burro?
— Foi mal, ignorante. Matemática nunca foi meu forte, beleza? — deu de ombros, encarnando o espírito da humildade — Enfim…
Passou por ele. Seus passos ecoavam no chão árido.
À frente, o mundo se reconstruía — aos trancos, como sempre.
Só restava a porta. E a moldura.
A muralha? Ainda era só um metro de esperança em pé.
— Vamos comer e dormir?
— Você pode… Eu tenho que vigiar. Garantir que não haja nenhuma invasão. Sombras espreitam no imprevisto… — Uma pausa dramática, talvez até demais — Enfim, boa noite!
Virou-se sério, expressão fechada como se estivesse prestes a encarar a fúria dos mil infernos.
Na real?
Ia sentar na beirada da parede quebrada e encarar o vazio — esperando que absolutamente nada acontecesse.
Porque, sejamos honestos, esse era tipo… 80% do seu trabalho dia após dia.
— Boa noite… — Bocejou, daquele jeito sonolento que só quem já carregou o mundo nas costas (ou quase morreu por causa dele) consegue fazer.
Entrou. Quer dizer… escorregou corredor adentro, feito um zumbi ressuscitado na má vontade, roncando pelo cimento como se tivesse acordado de uma ressaca de três dias.
Lá dentro? Uns trinta metros de concreto e mau agouro.
Não era só um corredor vazio, não.
Era o circuito sagrado dos guardiões – um tour eterno pela cidade, onde, das sombras, tinham a vista do que protegiam.
Não era só um corredor vazio, não.
Era o circuito sagrado dos guardiões – um tour eterno pela cidade, onde, das sombras, tinham a vista do que protegiam.
E tinha camadas. Interiores dentro do interior.
Cômodos entre os andares – dormitórios, refeitórios, salas de meditação… ou surtos existenciais, dependendo do dia da semana.
Primeiro e segundo andares? Pausa pro rango e soneca.
Terceiro e quarto? Vigia com vista pro pátio interno – pra fingir que estão atentos.
Do quinto para cima? Camarote. Visão interna e externa.
Capacidade? Cabia fácil uns cem — se ninguém começasse a manifestar ego demais.
Espaço, tinha de sobra.
O que não tinha mais?
Paredes.
Aquela santa proteção chamada privacidade.
Ó, privacidade… lenda urbana.
Dava pra ver tudo.
Ele passeando pelo refeitório, encarando a bancada como quem tenta escolher a menor decepção.
Pegou uma daquelas maçãs azuladas – provavelmente geneticamente modificadas pela ansiedade coletiva –, mordeu uma, duas vezes… e desabou numa cama como se tivesse sido nocauteado por tédio puro.
Dormiu na hora.
Sem drama, sem travesseiro, sem vergonha.

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