Foi se afastando.

    Pegando outro caminho. Alternativo. Diferente. Underground da comodidade de rotina, talvez.

    Mas, antes, deu aquela olhadinha básica para trás.

    Como quando nos questionamos: fechei a porta de casa?

    Bem… a tal “expressão”.

    Tinha mastigado as paredes.

    Ou parecia que tinha.

    Era intrigante, como… só força bruta? Era ilógico demais.

    Mas já sabia.

    Aquilo que se impõe aos olhos pode assumir o contorno da verdade – mas toda percepção é filtro, e até mesmo os deuses podem confundir o reflexo com a realidade.

    Não colava.

    E por isso…

    Olhou de novo.

    Agora como quem tomou café amargo, sem açúcar, e largou o modo zumbi.

    Seus olhos se estreitaram, prendeu o ar…

    A corrosão… não deveria ser só no concreto, não!

    A estrutura mais resistente e complexa era ela. Mas a madeira, bem como todos os materiais do interior, não havia sido afetada.

    Tinha mais coisa.

    E mesmo que a expressão já tivesse sumido há tempos, ainda dava pra sentir.

    O ar estava impregnado com seja lá o que for.

    Pesado.

    Quase sufocante.

    Como se o espaço tivesse memória – e ela estivesse em luto.

    Isso não era só destruição.

    Era sumiço.

    Era um delete.

    Era a negação pura da existência.

    Yesod nível dois… que diabos de poder é esse?

    Quase escapou dos lábios, enquanto observava cada gesto onipresente de Elohim com a atenção de quem assiste a um final de campeonato.

    O poder estava lá, emanando serenidade, reerguendo a estrutura como se fosse na inauguração novamente.

    Parecia sem planta.

    E sabia por quê…

    Já tinha visto o Todo-Poderoso e suas capacidades quase ilimitadas antes.

    Quando era só reconstrução – pedaços voltando ao lugar, matéria realocada – a forma como sua aura se expressava era outra. Havia ordem. Uma tonalidade branca, firme e constante, quase como se emanasse luz de sua vontade, como o sol ao meio-dia em céu limpo. Seria como o toque do sagrado, um deus calmo colocando cada tijolo de volta com ternura.

    Mas agora… era diferente.

    O ar ondulava com uma vibração quase imperceptível, se não fosse um acúmulo tão denso de energia. Era como sinal de wi-fi fraco: você sabe que está ali, mas não confia. A luz tremia na superfície do invisível, quase em outro plano – não como algo que emana, mas como algo que ameaça se desfazer a qualquer instante. Translúcido, titubeante, como se o mundo estivesse tentando decidir se aquilo deveria mesmo existir.

    Reexistir.

    A dualidade do ato de criar.

    Não estava apenas reconstruindo. Mas recriando.

    Do nada.

    Como nos antigos contos, aqueles murmurados em cânticos, sobre os primeiros muros que se ergueram sozinhos, quando o mundo dos guardiões ainda era recém-escrito e nem dividido militarmente – há mais de mil e quinhentos anos.

    Não havia pedra antes.

    Nem barro.

    Nem vontade ou força espiritual.

    A matéria respondia não a fórmulas, mas a pensamentos. O muro nascia da intenção absoluta de um ser cuja autoridade não precisava de lógica.

    — Meu senhor…

    Franziu o cenho.

    Os olhos se estreitaram, vasculhando as camadas que a realidade tentava esconder, buscando o fio que unia o todo. Um ponto aqui, outro ali. Era como montar um quebra-cabeça em que as peças dançavam sozinhas, se esquivando de serem reconhecidas, mas ainda assim se encaixando de forma inquietante.

    Assustadoramente inquietante.

    E então, a visão se alinhou. Um arrepio o atravessou, aquele frio na espinha de quem entendeu rápido demais, mais rápido do que gostaria.

    E agora, passava mal para digerir mais do que imagens – era o peso de uma verdade estranha, amarga à boca, um eco vindo de um lugar errado.

    Do poço…

    — Ele não está consertando o que foi destruído… — sussurrou, mais para si do que para o mundo, como se as palavras fossem apenas uma confirmação do que já sabia no fundo.

    Nas entrelinhas da perfeição.

    Estava apagando a memória do que já existia.

    Ou…

    Havia sido apagada.

    A observação ecoou, e sentiu reverberar nos ossos, como um golpe de realidade. Havia algo de mais sombrio nesse gesto. Uma negação de história, uma destruição não visível. Mas havia mais. Algo ainda mais perturbador, que se desdobrava à medida que ele refletia.

    E ali, naquela vírgula entre o antigo eo novo, se deu conta da verdadeira natureza daquele ato.

    Mas… se está recriando sua obra, é porque… não havia referência mais a seguir!

    E naquele momento, a ideia o atingiu como um raio. O muro não estava apenas cobrindo o passado. Ele estava substituindo-o. Como se o próprio não pudesse mais se lembrar de sua própria criação. Ou como se estivesse decidindo que não valia a pena seguir o caminho que já havia sido traçado.

    E disso… talvez só reste uma resposta.

    O ponto final de tudo.

    O fim para todas as coisas.

    Morte?

    Sim! – e nem tentou florear.

    Os olhos arregalaram, de susto. De entendimento.

    Não era ataque.

    Era desligamento geral.

    Total. Irreversível. A assinatura cósmica do “Ctrl+Alt+Del” – só que sem botão de reinício, sem área de trabalho, sem chance de recuperar o arquivo.

    Fim.

    Tipo aquele que nem spoiler salva.

    ❍❍❍ ᨖ ❍❍❍

    Continuando seu caminho…

    Seus passos, mergulhados numa conclusão tão absurda quanto inevitável, o levaram ao esconderijo mais infame da megacidade espiritual. Um antro conhecido, quase turístico – se você ignorasse o detalhe de que ninguém saía de lá com a sanidade intacta.

    O covil do mais vil dos guardiões…

    A serviço do “bem”, claro – como se isso ainda significasse alguma coisa.

    Entrou por um túnel banhado por uma luz azulada, um brilho estranho que mais parecia um glitch. Alguns passos.

    Eco. Da carne sendo rasgada.

    Pressão. Do cheiro de morte que ali emanava.

    E já estava, frente a frente com ele.

    Ou melhor, frente a trás.

    Pois estava de costas. Cabelos cinza, e sorriso de quem sabe demais e se importa de menos.

    — O que te traz aqui? — virou-se com um giro teatral, como um vilão que ensaiou demais no espelho.

    — Eliaz…

    O lugar ao redor parecia uma exposição amaldiçoada. Uma instalação de horrores montada por um artista louco, com gosto duvidoso e psicótico. Escrituras profanas, seu alvo de estudo, no chão, criaturas suspensas no limbo entre o “quase vivo” e o “não completamente morto”, sombras que respiravam como se tivessem pulmões de fumaça.

    E, como a cereja desse bolo indigesto: os corpos empalhados de ex-companheiros, pendurados por ganchos cravados no pescoço, balançando como se ainda fossem capazes de sentir dor.

    Até Frankenstein teria vomitado.

    — Queria conversar sobre… o garoto.

    Disse, sentando-se numa espécie de maca de pedra. Tão desconfortável quanto seus pensamentos. E o cheiro? De podre. Mas, sinceramente? Ainda menos desagradável que suas preocupações.

    — O que tem ele?

    Nem o olhou. Estava ocupado dissecando um ser que parecia ter saído de um pesadelo: meio cachorro, meio demônio, com pelagem negra e chifres retorcidos. Sua mão, como um bisturi, vasculhava as entranhas como quem procura o controle remoto no sofá. Até que – ploft! – puxou o coração com uma facilidade de açougueiro. Sangue até o cotovelo. E zero cerimônia.

    — Ehr… O que acha disso? De repente, o moleque brota do túmulo, vira aprendiz de guardião… Qual é a desse plot twist? Elyah achou mesmo que isso era uma boa ideia? Aff…

    Isso o fez erguer o olhar. Loucura e razão na medida exata do perigo.

    — Porque ele é como eu — sorriu, olhos cravando no seu visitante, finalmente — Não vive sem um conflito.

    — Talvez… — coçando o queixo como quem tenta desatar um nó — Mas sei lá. Elyah sempre precisa de um grande “porquê”. Um motivo nobre, um drama cósmico. Mas até ele… até ele não é como você.

    Eliaz soltou um riso seco, meio engasgado.

    — Me julga o pior?

    — Como não? Seria… passar pano demais pra você…

    — Eu só acho que guerras… conflitos… são os catalisadores mais eficientes do conhecimento. E o conhecimento, meu caro, é infinito.

    Levantou um dedo ensanguentado, o gesto como o de um professor prestes a rabiscar uma equação na lousa da existência.

    — Logo… conflitos infinitos são a lenha que mantém essa maquininha queimando. Porque o progresso – ah, o bendito progresso – ele não nasce da paz… ele vem da quebra. Da rachadura. Do caos!

    Fez uma pausa, os olhos cintilando com uma convicção quase febril. Doentia, diria…

    — O progresso provém da desestabilização… para, ironicamente, tentar trazer estabilização. Um ciclo tão hipócrita quanto inevitável. Não?

    — Entendi…

    Deu para ouvir seu suspiro com tudo isso sendo despejado nos seus ouvidos.

    — …Então você acredita que conflitos infinitos são o combustível de uma evolução absurda?

    — Exatamente! — estalou os dedos — Mas sejamos honestos… essa linha de pensamento já deu o que tinha que dar. É um disco riscado no toca-fitas do multiverso. Uma trilha batida, tediosa. Não acha?

    Fez uma careta, ainda gesticulando.

    — Uma linha reta previsível, dessas que não têm fim nem ponto de chegada. Só a maldita dança de gato e rato, o joguinho sem graça, onde todo mundo finge que tem propósito.

    Deu um passo à frente, com o sorriso escancarado.

    — O eterno ciclo de guerra e sabedoria… blá, blá, blá. E no fim? Todo mundo sujo, todo mundo sábio, todo mundo morto.

    — Então…

    — O que falta para mudarmos essa equação?

    — O quê? — quase desviando o olhar em meio àquela indagação toda.

    — Uma anomalia. Uma bela e desengonçada aberração estatística cravada no meio da lógica dos deuses!

    — O garoto…

    — Exatamente, mas…

    — …Até imprevisível, por mais previsível que pareça, é uma possibilidade. E as possibilidades, inclusive as impossíveis são o que realmente nos limitam. São as bordas da trama, entende? As frestas por onde a realidade escapa.

    Jogou o coração da criatura numa bandeja de pedra. Ploc. Um som seco, quase simbólico.

    — No fim das contas, somos só personagens tentando burlar um roteiro que insiste em repetir os mesmos arcos. Mesmos erros. Mesmos finais reciclados.

    Virou-se novamente, encarando o outro com um meio sorriso – metade cinismo, metade curiosidade, como quem joga xadrez com o universo e acaba de sacrificar a rainha por diversão.

    — E esse garoto… ah, ele fede a subversão. Por isso é interessante. Minha percepção é exatamente o oposto da sua! Você que abomina o erro. O “errado” te incomoda, não? O fracasso te assusta.

    — Odeio a ideia de ter que me expor a um problema… — admitiu, com um suspiro seco, quase constrangido.

    Eliaz riu baixo, como quem ouve uma piada trágica contada por alguém que ainda não entendeu.

    — O medo… — disse, com voz suave e cruel — o medo exclui a possibilidade de mudança. Paralisa as engrenagens. E quando as rodas do desenvolvimento travam… morre o ego, morre a ganância… e o que sobra?

    Aproximou-se devagar, olhos como lâminas afiadas – cortantes, silenciosos, quase inquisidores. A ameaça não estava no gesto, mas no emanar subconsciente de sua aura.

    E foi o bastante para que até mesmo ele, alguém sempre próximo e ciente de sua personalidade, se perguntasse: qual a verdadeira intenção de sua Alma?

    — Sobra só um fantoche bem comportado… e inútil.

    Enfim, um suspiro. Longo, cansado. Daqueles que carregam mais do que ar – carregam peso existencial.

    — Acabou?

    — Sim… — a risada saindo com um toque de sarcasmo, como se o drama todo fosse apenas um teatro barato.

    Mas só tinha graça para ele.

    — Obrigado… — levantando-se com a leveza de quem carrega mil demônios nas costas — Conversar com você sempre me dá um norte. Mesmo que esse norte leve direto pro abismo ou nem leve a lugar nenhum.

    Deu alguns passos, e então parou. Virou-se de leve, só o suficiente.

    — Que… não mude, tá? Ehr… todo o resto pode. O mundo, o céu, os guardiões, o garoto. Mas você… continue sendo esse lixo. Por favor.

    — Sou como plástico, irreciclável!

    E riu ainda mais. Não de forma mórbida, nem amarga. Mas com a alegria do caos.

    — Não é verdade, por falar nisso… você pode me fazer um favor?

    Quase saiu sem perguntar, afinal, era por isso que tinha vindo…

    — Fale…

    — …Eu quero que me empreste uma de suas sombras cativas. Tudo em nome do estudo e do conhecimento! O que me diz?

    — Claro, ou claro? — lambeu os lábios — Leve quantos quiser… para isso eu sirvo e sou bem útil!

    Como quem, no fundo, sempre soube: não serve para salvar nada – e sendo sincero? Nem quer!

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