Enquanto uns se afogavam em piadas sem graça, experimentos e um senso de dever meio torto, um certo alguém permanecia impassível.

    Como não lhe faltava cabelo, era evidente que ele cairia… de puro estresse, obviamente.

    Mas quem era esse cabeludo?

    O mais obediente às regras e sério dos guardiões do oitavo distrito.

    O chato do julgamento, se lembra? Aquele que parecia ter engolido um manual de conduta e desprezo, alguns capítulos atrás.

    Postura ereta, olhar cravado no horizonte, como se cada segundo que passasse fosse anotado em um diário imaginário que só ele conseguiria decifrar.

    Tomava seu chá de ervas vermelhas com a solenidade de um monge em penitência, como se o amargor o ligasse a alguma dimensão oculta – inacessível para os meros mortais que ainda riam alto demais ou ousavam falar sem pensar.

    Seus olhos, de um âmbar antigo e gasto, seguiam o rastro fugidio de uma estrela cadente, cortando o céu noturno como uma lembrança do que já se perdeu.

    Era um evento atípico. Mas, de alguma forma, aquilo lhe trazia uma felicidade pura – crua, silenciosa, algo que nenhuma vitória, missão cumprida ou título jamais conseguiu tocar.

    Talvez saudade. Talvez pressentimento. Talvez só o luxo raro de sentir, por um instante, algo que não coubesse em protocolos.

    Quem vivia dentro da caixa, fechada, sufocante, sem nem um canto de respiro ainda ousava desejar. Almejava se livrar, voar… ou ao menos bater as asas contra as paredes.

    Filosofia de butiquim, claro. Barata, servida em copo sujo – mas vá dizer isso pra quem sente?

    Bem, aquilo teve seu fim quando…

    — Quantas mais estrelas verá espelhadas aqui? — soou a voz rouca, carregada de experiência… e daquela paciência resignada de quem já viu jovens demais se achando profundos por encararem o céu por cinco segundos seguidos.

    Era um velho. A barba alcançava o peito como raízes de uma árvore, retorcida pela passagem dos séculos, e as vestes negras esvoaçavam como sombras que resolveram tomar forma.

    A cabeça calva brilhava sob a luz das estrelas, como um lembrete de que até o tempo tem senso de humor. Mas o olhar… ah, o olhar centenário já havia testemunhado milhões de confrontos e, o mais irritante de tudo, sobrevivido a todos.

    Tinha todas as qualidades para ser um velho foda. E sabia disso.

    Mas, não havia espaço para ego.

    Observava o companheiro de ofício com um sorriso saudoso, sereno – como se fosse ele quem estivesse esperando ali há eras, e não o contrário.

    — Senhor… Hayashan Beyoter… há quanto tempo não te vejo, velho…

    — Hehe — o riso escapou, meio rouco, meio nostálgico — Hakaru Haanashim, você não mudou nada. Continua mais careta e rabugento que um homem de cem anos de idade! Hehe… Por qual motivo quer minha companhia a essa hora?

    — Quero falar sobre o desaparecimento de guardiões fora da muralha… — disse, com a xícara ainda repousando entre os dedos, o vapor subindo como se tentasse levar a gravidade do momento para longe — Você sabe bem… dos quinze que enviamos, apenas cinco fizeram contato e retornaram. Não há sinais de deserção. Nenhuma mensagem de traição. É mais provável que estejam… mortos.

    — Provável?

    — Provável! — com aquele meio-sorriso — Não sou mais ignorante de confiar 100% em meus achismos… só… 99,9%.

    — Hehe… não posso dizer que é ignorante. Você, como seu pai, tem o faro para identificar merda!

    — Hm…

    A risada cessou de imediato. Evaporou no ar como se nunca tivesse existido.

    O silêncio que se seguiu foi espesso, denso como a neblina que encobria os campos mais ao sul. Só o vento ousava se intrometer, dançando pelas folhas secas espalhadas ao redor deles.

    Momento sério. Prepare-se para a chatice.

    — Mas mortos? Dez guardiões mortos… isso… — estreitou os olhos, encarando o céu como se ele pudesse oferecer alguma resposta entre as constelações. Oh, falsa lua, me diga o que viste… — Isso tem cara de algo muito poderoso… e grande, não acha?

    — Tem! — responde, sem hesitar encarando o fundo da xícara como se fosse um espelho do futuro — E eu temo que nem mesmo a muralha vai segurá-lo por muito tempo.

    — Acha que estamos diante de algo que desafia nossa compreensão?

    — Não só acho… eu sei! — O tom endureceu, e o olhar perdeu qualquer vestígio de teatralidade — Nossa compreensão é mínima, Hayashan. Somos crianças brigando por brinquedos em meio a um incêndio. Nossos conflitos são básicos, egoístas… pessoais. E isso atrapalha a visão ampla dos fatos. Há um elefante na sala… mas sua presença ofusca todos os outros problemas que se acumulam ao redor.

    — Está falando da anomalia? — perguntou Hayashan, recostando-se na cadeira velha que rangia sob seu peso. Pegou a xícara com certa amargura e, após um gole, fez uma careta — Odeio chá amargo…

    — Não! Falo desse vício que temos de acreditar que o único problema são os Deuses.

    — Então teme as sombras…

    — Não se trata de medo. Se trata de razão — Inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos — Já se perguntou por que não vemos sombras mais poderosas que os Flagelos há mais de mil anos? E por que um Rei Sombrio não se manifesta há mais de dois mil?

    — Nunca parei pra pensar nisso.

    Com a expressão mais sóbria, o tom livre de ironia pela primeira vez naquela noite.

    Naquele século, até…

    — Porque eles recuaram… mas não desapareceram. Estão se fortalecendo, crescendo onde não conseguimos enxergar. Enquanto nós apenas perdemos força, divididos por guerras, vaidade… e a memória curta. Estamos entre a profundidade e o topo. E isso… deveria preocupar qualquer um que ainda tenha juízo. Não?

    — Entendo — Pousou a xícara — Está antecipando uma nova guerra entre raças… mas uma mais sangrenta do que a que está nos livros.

    — Justamente — Enfim se levantou. Caminhou até o parapeito de pedra, onde o vento frio lhe tomou o rosto além da muralha — E se te chamei aqui… é porque preciso me certificar disso.

    Via as piscinas naturais além do Pântano das Desolações. Terras onde o solo respirava podridão e a névoa era espessa.

    Diziam que ali, nas águas quietas e traiçoeiras, os pecadores viam o reflexo de seus próprios males. Um espelho espiritual que arrancava a verdade da alma e a projetava na superfície líquida como uma pintura viva de seus arrependimentos.

    Muitos se perdiam. Não porque não encontravam o caminho de volta… mas porque escolheram ficar. Presos num ciclo doentio de contemplação e culpa, desejando ver o fim de sua dor, mas afundando mais a cada tentativa.

    — Certificar…?

    — Quero que investigue — A voz não vacilou — Entre os três guardiões mais antigos desse setor, você é o único que ainda mantém lucidez e poder em igual medida. E sejamos francos… todos esperam que seja o sucessor de Elyah. Você tem a liberdade e a força para ir além dos limites.

    — Então?

    — Vá! Encontre os corpos… rastros, fragmentos de assinatura do caos. O suficiente para reunir um tribunal!

    — E por que eu faria isso?

    Seus olhos se encontraram. Silêncio caiu diante de suas faces como máscaras. Talhadas pela experiência, imunes ao blefe e à teatralidade.

    — Porque só um tolo esperaria sentado enquanto o chão cede sob seus pés.

    O outro cerrou os olhos.

    — Por que mais!?

    — Maldição… — o velho riu alto.

    — Quase me faz tossir de tão sincera que foi essa risada.

    Ele limpou os olhos com o dorso da mão, encarando o companheiro.

    — Bem que dizem… nunca subestime a mente do senhor Hakaru. Hehe… Eu faria qualquer coisa para exterminar sombras. E para vingar meu melhor amigo!

    Ergueu-se enfim, como um tronco antigo que ainda sabe seu lugar na floresta. Bateu a mão na túnica, levantando poeira e quase acertando o brasão do infinito em seu peito, símbolo de honra, sacrifício… e das incontáveis dores acumuladas.

    Por mais escondidas.

    Virou-se, pronto para partir.

    Mas então parou. Como sempre fazem os que ainda têm uma última bala na câmara.

    Olhou por sobre o ombro.

    — Só tem uma coisa com a qual não concordo.

    Hakaru arqueou uma sobrancelha, já prevendo que lá vinha provocação.

    — Sobre o quê?

    — Sobre substituir o senhor Elyah.

    — Por quê?

    — Porque ele não é apenas o possuidor do cargo… é um símbolo. Substituí-lo seria como tentar substituir a própria alma do oitavo setor. Não se preenche esse tipo de vazio… só se aprende a carregar.

    — O admira?

    — Claro! Apesar de sua postura relaxada, daquele jeito moleque e do riso fácil… o oitavo setor é o que é por causa dele. Se não fosse por seu heroísmo, ainda estaríamos entre escombros e luto. Vocês jovens aprenderam conosco… mas aprenderam da forma errada o que é união. Até mesmo um galho pode se tornar aço, se houver fé.

    — Fé… — repetiu, abaixando o olhar como quem carrega uma pedra no peito — Palavra bonita. Dura de engolir.

    — Certo?

    — Sinceramente… — suspirou fundo, com a xícara agora vazia entre os dedos — Eu discordo. Mas talvez, só talvez… você esteja certo, velho.

    Hayashan esboçou um sorriso torto, a barba sacudindo levemente com o movimento do queixo. Já de costas, caminhava para a saída, passos que soavam mais leves do que deveriam.

    — A verdade se revela na queda, não no voo. Até logo, Hakaru.

    Último pé para fora.

    A noite voltou a ser silenciosa.

    Não havia mais a quem lançar seus algozes. Nem a quem ouvir suas dúvidas.

    E o guardião, solitário, encarou o brasão do infinito em seu peito. Como se de repente ele queimasse. Como se gritasse por respostas que não viriam.

    No olhar, um peso estranho. Algo entre ansiedade… e pressentimento.

    — Velho… — sussurrou, quase como um lamento arrastado pelo vento, que logo se perdeu na escuridão.

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