Saindo do necrotério, com as roupas sujas de sangue e rasgadas pelos furos das balas, Cael sentia o peso do ar ao redor dele. A camisa branca, agora encharcada, colava em sua pele, o casaco desbotado balançava com o vento frio da madrugada. E olhou para o céu, um pouco tonto, como se estivesse tentando entender onde estava, o que era aquilo, se ainda estava em sua realidade.

    — Deus… Maria cheia de graça… Buda, obrigado!

    Clamava, a voz tremendo entre o alívio e a incredulidade. Como se estivesse diante de um milagre. Afinal, seria mesmo? Para ele, poderia até ser, mas…

    Não existia milagre sem cobrança. E alguém viria cobrar esse erro cósmico.

    Nas profundezas do espaço, onde os véus do plano físico e espiritual se rasgavam, um deus de terceira ordem começou a materializar-se. Não era uma entidade de luz ou misericórdia. Era um de muitos Carrascos, executor das falhas nos planos universais. Ele não viera para salvar; viera para corrigir o que fora corrompido.

    Rompendo as camadas da realidade, ele desceu sobre a cidade de Belo Horizonte, mais uma sombra entre estrelas e prédios, com a figura imponente de quem vinha de longe, como um predador que andava entre os mundos. Em sua mão, um instrumento nada comum: uma guitarra.

    Não era um comum. Ele não trazia penas ou luz. Ele trazia acordes de seu Eco.

    Quanto tempo… refletiu. Quanto tempo não venho aqui… Enquanto flutuava, a guitarra em sua costa e os dedos se apertando ao redor das cordas invisíveis que só ele podia sentir.

    O mundo humano sempre o fascinou. A última vez que vira uma alma deste plano, crucificaram um homem que só queria amar, que só queria entender este mundo. Fosse farsante ou não, o que mataram foi a compaixão. E naquele instante, enquanto estava imerso em seus pensamentos, entendeu que suas ações não eram apenas de justiça, mas de restauração que os deuses haviam se perdido.

    E num átimo, desapareceu.

    Desapareceu como só um, como ele poderia fazer.

    Já Cael?

    Com as mãos nos bolsos, caminhava pela rua, a cabeça ainda a mil, tentando se acostumar com a ideia de estar vivo depois de ter sido morto.

    Minha moto foi para o beleléu… Pensava, observando o ônibus passar, fechando ainda mais a jaqueta para esconder os furos dos tiros.

    Será que consigo ganhar dinheiro com isso? Ele pegou o celular, o visor, iluminando seu rosto. Moh bonitão… dá pra fazer uma grana contando a história de como fui ressuscitado, mas…

    O que mais poderia fazer? Afinal, a situação era de desespero, mas também, uma chance inédita.

    Ele piscou. Mas… e se isso for pecado? Merda… será que terei que virar crente? Foi então que sentiu. Um arrepio gelado percorreu sua espinha.

    E levantou os olhos, notando alguém ao fundo, parado no fim da rua. Uma figura estranha. Alto, vestido com um manto negro que arrastava até o chão, chinelos, meias brancas — uma visão totalmente desconcertante. O cabelo vermelho intenso fazia o contraste com a noite, e nas costas dele, uma guitarra.

    Como uma fusão bizarra entre divindade e rock’n’roll.

    — Se é cosplayer?

    Cael estreitou os olhos, mandando aquele olhar de “não te julgo, mas julgo”.

    — Consegue me pedir um Uber? Ônibus é moh inhaca de CLT… sabe como é, né? — forçou um sorriso maroto, acenou com dois dedos e virou de costas. Otaku esquisito, pensou. BH tem de tudo mesmo.

    Mas aí…

    O vento virou.

    Frio. Sibilante. Quase poético.

    E, num piscar de olhos, o cara tava ali. Colado. A centímetros. Ele quase soltou um grito.

    — Que foi, ô filho do… — recuou, engolindo seco.

    A espinha gelou.

    O homem de manto preto o olhava como quem vê uma obra de arte que queria destruir só pra ver os pedaços dançando no chão.

    — Anomalia… você é tão fascinante… — a voz dele não era só som, era vibração, como se fosse um riff tocado devagar na sexta corda. A aura ao redor dele explodia num vermelho visceral. Dava pra ver o ar tremendo, como gasolina pegando fogo.

    — Pena…

    A mão se ergueu. Cael esfregou os olhos. “Tô chapado? Tô morto? Tô no SUS?”

    Mas antes que pudesse ter certeza… ESTRONDO.

    Não foi ataque. Foi a resposta. Um acorde ecoou, vindo das sombras.

    Não era guitarra. Era violão. Mas com o peso de um trovão.

    E lá estava ele — o outro. O loiro de cabelos pontudos. Olhos azuis que pareciam lamber sua alma. Manto verde com um símbolo dourado do infinito. Parecia saído de um RPG indie com orçamento de Hollywood. E nas mãos, o instrumento brilhava com um calor que derretia o ar.

    Um violão de chamas douradas.

    Autoridade pura.

    — Guardião? Vai interferir em meus deveres? — a entidade do manto preto rangeu os dentes.

    — Quem mandou tu invadir o plano térreo, ô peste? — rebateu.

    A guitarra do ser sombrio desapareceu das costas e surgiu do nada em sua mão, pronta para a guerra.

    — Tô sob ordem de uma força maior que você, paladino de merda!

    — Vaza ou a gente transforma essa rua num festival de porrada celestial! — o loiro gritou. — Guerra de Eco, parceiro. Vai ser IRADO enfiar esse cabo da guitarra no teu rabo cósmico!

    — Você sabe que isso vai ter retaliações…

    — E tu sabe que eu não tô nem aí.

    Enquanto Cael, só conseguia balbuciar:

    — Que porra tá acontecendo? Briga de músicos? Isso é o The Voice dos deuses?

    O loiro só sorriu, dedilhou o violão mais uma vez… e WHAAM! Chamas douradas despencam do alto como se tivessem sido lançadas como um balde de lava. O fogo lambia o asfalto, derretia o concreto, dobrava postes como se fossem de cera. Cinemático. Quase erótico de tão épico.

    E ele arfava com a liberação de sua técnica — a expressão crua, indomada, do seu Eco, refletida no mundo térreo como um grito.

    A estrutura da realidade rangia.

    As ruas, os prédios, o ar… tudo parecia se curvar, hesitante, ao seu redor. Não era só poder. Era presença. Era peso. Era o dono da Hit’hadshut.

    Não uma mera habilidade.

    Uma entidade viva, pulsando sob sua pele, cuspida dos fogos primordiais. O mito antes do mito do renascimento. O fogo antes da luz. E agora, encarnado num ser de manto verde e olhar que queimava mais que o próprio sol.

    Ele poderia invocá-las com um acorde. Moldá-las num pensamento. Transformar técnica em arte, arte em destruição.

    A capacidade rara de materializar o Eco-Phoenix. A expressão do seu Eco. Desde que nasceu.

    Seus olhos carregavam brasas azuis, e sua pele parecia conter o brilho de uma estrela colapsando.

    Cael engoliu em seco.

    — Cacete…

    — Vamo ver se o tal de “ser maior” vai pagar tua fiança quando tu explodir esse plano, hein? — lançou, a voz carregada de provocação, mas com aquele charme perigoso de quem já enfrentou e venceu usando solo de violão flamenco.

    — Raça de ignorantes!

    O de manto negro titubeou. Pela primeira vez, o olhar arrogante vacilou. Um passo pra trás. Sua aura, antes feroz, agora se despedaçava como vidro fino diante da pressão das chamas douradas.

    O calor parecia julgar. Queimar não só o corpo, mas a pretensão.

    — Isso ainda não acabou…

    — Sempre tem uma frase de efeito, né? Vai embora, vai… — retrucou, com desdém e tédio.

    Como quem expulsa uma barata inconveniente da sala de estar.

    A entidade deu um último olhar para Cael. Não de ódio. Mas de curiosidade doentia. Como quem observa um inseto raro preso em vidro.

    E então… sumiu. Evaporou num som agudo, como um acorde desafinado se desfazendo no ar, distorcido, feio, quase humilhante. Recolhendo sua presença.

    O silêncio que ficou era pesado.

    E o guardião passou a mão nos cabelos e estalou o pescoço.

    — Detesto esses posers de manto… tudo teatro… — e então virou-se para o rapaz com aquele mesmo sorriso de canto. — Mas tu… tu é o caos que tava faltando nessa porra toda!

    Cael ficou ali, sem saber se ria ou corria.

    — Tá porra…

    Sem entender nada, cheirou a própria mão.

    — Que maconha foi essa…?

    — Tu não fumou porra nenhuma. Isso aqui é real! — disse o loiro, se aproximando. Cada passo dele fazia o chão chiar, como se o próprio asfalto não tivesse certeza se queria estar ali. — Sou o guardião superior do setor oito. Eliyah Ben-Ari. — estendeu a mão com uma casualidade quase debochada. O violão e toda a estética flamejante de sua habilidade se desfizeram em poeira de luz dourada. — Tu morreu, irmão. Só que o universo… não assinou seu atestado. Então tu voltou. Mas não como gente. Nem como espírito. Tu é um bug na Matrix divina. Uma anomalia!

    — Hã?

    — Resumindo? Tu é o protagonista. Eu sou tipo o fiscal da bagunça. E vou te falar… — sorriu com gosto, olhando de canto — …eu adoro quando essas coisas saem do script.

    De repente, o ar estalou.

    Um portal surgiu, cortando a realidade como navalha quente atravessando plástico bolha. O cheiro era de ozônio e caos.

    — Qual teu nome, ô escolhido?

    Era incômodo o quanto parecia tranquilo com tudo aquilo.

    — Porra… meu nome? Cael…

    — Cael… A Coisa Sem Nome! — gargalhou como quem ouviu o nome de uma lenda nascendo. — Bem-vindo ao Mundo Intermédio, pivete. Agora a parada ficou pessoal.

    E puxou ele pelo portal.

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