E não deu outra.

    A figura de Elohim brotou ao mesmo tempo nos quinze distritos. Cada praça, cúpula e vão de concreto projetava seu rosto.

    Uma pseudo-onipresença que se estendia por todo o Intermédio.

    Sem paredes. Sem véus. Sem desculpa pra fingir que não viu.

    Diante dele, todos os Guardiões — os da reunião, os de fora, os infiltrados, os mortos por dentro, e até os que só existiam porque alguém ainda se lembrava do nome — estavam ali. De pé.

    Qualquer um que ainda fosse capaz de ecoar uma expressão, um pensamento, sentia o peso de sua presença vibrando em seu próprio ser.

    O primeiro reflexo de si.

    Seu criador.

    Estava em todos.

    E em lugar nenhum.

    — Meus Guardiões… superiores ou não, externos ou internos… vim anunciar que um dos distritos foi atacado. E o inimigo… já não desce dos céus.

    Sua voz soava embalsamada em solenidade.

    — Um mal que há tanto tempo selei nas vísceras do mundo, entre as mazelas das profundezas, com a ajuda de outros reis sombrios. Seu nome? Noctherr. Há mais de três mil anos, antes mesmo de vocês existirem…

    Um silêncio.

    Fúnebre.

    — E por causa da minha natureza neutra… minha culpa por uma compaixão desmedida…

    Sua voz vacilou por um segundo.

    — Lamentamos a morte de seis Guardiões do Terceiro Distrito.

    Pausou.

    Como se os visse ali — os mortos de pé.

    E, no fim, via mesmo.

    Porque a morte era retorno. A essência primária.

    Mas diluída.

    Impossível de ser o que um dia foi — originalmente, acidentalmente, existencialmente.

    — Eram bons garotos…

    Eles estavam ali.

    — Foram vítimas. A primeira resposta ao chamado do Abismo. Vieram nos dizer que haverá guerra, vingança e fim.

    — …Então!?

    A pergunta cortou o ar.

    O que se ouviu após foi apenas um suspiro — longo, lateral, frustrado — vindo de Elyah.

    Sentado como se nada daquilo fosse urgente, mastigava com gosto um espeto de churrasco. Carne suculenta, suando gordura, roubada diretamente do mundo humano.

    O cheiro destoava do clima de luto e tensão, mas aquilo não o perturbava nem um pouco.

    — Este é um alerta máximo!

    A sentença reverberou como lâmina sobre mármore.

    O calou.

    Porque todos sabiam o que aquilo significava.

    Havia uma Tríade de Alertas.

    E aquele… era o terceiro.

    O último. O único que jamais havia sido pronunciado em voz alta nos milênios que se passaram.

    Um sinal reservado para o impossível. Para o irreversível.

    Representava a periculosidade máxima de um inimigo.

    Real. Capaz.

    E já entre nós.

    E então, como um suspiro cortado antes do fim da frase, a projeção se rompeu.

    Desapareceu. Sem aviso ou ruído.

    Mas logo em seguida, entre a divisa suspensa entre o Topo e o Meio, algo surgiu… O Palácio de Guerra.

    Yadelohim.

    Um monólito em espiral. Paralelepípedo de ferro bruto e concreto, fundido por eras que nenhum tempo ousa nomear.

    Sua espinha ascendia em giros, como se tentasse perfurar a abóbada do próprio juízo final.

    Era maior que a cidade de São Paulo.

    Mais denso que as raízes de uma deidade morta.

    Mais alto que qualquer torre sonhada por impérios.

    Digna de Niemeyer, se ele tivesse sonhado com apocalipses.

    Não era uma mera construção — mas a própria ameaça materializada.

    A Mão de Deus, fechada.

    Não para proteger.

    Mas para esmagar.

    — Acabou a diversão…

    O loiro se levantou.

    Mãos à cintura, a postura de rei entediado de sempre.

    Enquanto a sombra daquele lugar se projetou por todo o mundo.

    Como um eclipse.

    Mas cessou.

    Porque uma luz interminável surgiu.

    Sem fonte ou projetor.

    Materializada no ar.

    Esse era o poder do Todo-Poderoso.

    E vendo tudo isso…

    Lá de cima, no alto da muralha, Eliaz mordia o lábio.

    Não por angústia — birra mesmo.

    Ou pelo menos era o que fazia parecer.

    O ar de gênio incompreendido era cômodo a sua atuação.

    Mas havia algo a mais.

    Um ranger de mandíbula sutil demais pra ser charme.

    — Ah, pronto… mais idiotas pra atrapalhar meus planos… — cuspiu, como quem espera ser interrompido.

    — Planos?

    E foi… claro, culpa do roteirista da novela das nove.

    Dagan chegou como quem entra na sala errada e decide ficar.

    A pergunta não soava como deboche.

    Era autêntica.

    Como se a simples ideia dele ter um plano fosse uma ameaça cósmica.

    E, de certo modo, era.

    — Aliás… não era você que vivia pedindo por isso?

    — É, mas… no momento, estou tentando algo revolucionário: usar meu tempo livre. Estudos, teoria aplicada… essas coisas que exigem cérebro.

    Silêncio.

    Aquele em que até o vento segura o fôlego.

    — …Você não entende.

    — Não — seco, direto, como um comando de PM no Borel às três da tarde — Mas… sobre esse tal Noctherr. Já leu sobre?

    O fazendo arquear uma sobrancelha, o tédio escorria do canto da boca como veneno mal diluído.

    — Só o bastante pra saber que era uma ameaça para todas as raças…

    Desviou o olhar, mas não por desinteresse.

    Era como se algo por trás da íris estivesse em combustão.

    E o sorriso…

    quase íntimo. Como se o outro tivesse acabado de entrar num jogo íntimo.

    — Isso te assusta?

    — Não!

    Os punhos se cerraram.

    Simplismo e disciplina: era isso que definia o Guardião.

    Mas ali, naquele palco de máscaras e venenos, o gesto era puro demais.

    Quase fora de lugar.

    — Mas… depois da guerra com os deuses… — a voz afundou — sei lá. Tudo parece convergir. Como se o fim não fosse fim. Só outra porta.

    E fechou os olhos por um segundo.

    Mas não era calma.

    Contenção.

    Como quem segura o mundo por dentro com os dentes trincados.

    Recusou-se a responder logo. Talvez por orgulho.

    Talvez pra não deixar escapar algum delírio.

    — Não sente isso? Sei que sente…

    — Papo de vento! — gargalhou, jogando a cabeça pra trás, zombando do céu como se zombasse do próprio Criador — O mundo não muda. Trocam-se reis, mas a coroa segue podre. E você aí, sonhando com portas…

    Fez uma careta debochada. Mas os olhos…

    os olhos não sorriam.

    — Sempre vai ter alguém acreditando… mesmo quando é o inferno que serve a missa.

    — E se tudo desaparecer?

    — Não temo nada.

    Silêncio novamente.

    — Jura?

    Não negava, não confirmava.

    Só mostrava os dentes.

    — Então por que ficou emburrado?

    — Hmm…

    Seus olhos, enfim, se encontraram..

    Não havia tremor.

    Nem fuga.

    Só algo prestes a vazar pelas frestas.

    — Falastrão! — disse, e o tom parecia afeto.

    Ou um aviso.

    — Vai me chamar assim agora? — arqueou a sobrancelha, teatral e estranhamente recíproco — Eu preferia… lixo.

    Riu, quase aliviado.

    E se virou.

    — Dagan… Só não morra nessa nova guerra. Seria um desperdício…

    ÚLTIMO CAPÍTULO ESCRITO AQUI!

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota