Mas como tudo que é bom… acaba.

    A luta derreteu feito vela velha, esquecida no canto. Os pés afundaram primeiro, depois o resto, e quando deu por si, tudo — absolutamente TUDO — virou água.

    Ironicamente perfeito, não acha?

    Até aquele segundo, ele era o protagonista de um teatro tão grandioso quanto patético.

    O palco? A criação de uma mente megalomaníaca o bastante para achar isso genial.

    A plateia? Nenhuma — por sorte, ao menos sua vergonha não teve a crueldade de ser assistida.

    Era o único ator de sua própria peça, agora afogada na realidade que teimava em não seguir o script.

    Só percebeu o quão risível era isso quando afundou naquelas águas pesadas, frias e quase zombeteiras.

    Eisfürst.

    O nome do irmão escorreu pela mente como veneno. A lembrança era tão confortável quanto um tapa na cara. Para cima, só vastidão líquida. Para baixo, a mesma coisa.

    Como enxergar o oceano estando no centro da profundidade? Talvez.

    Mas, num piscar de olhos, foi cuspido para fora — caindo de joelhos em águas rasas, rasas o bastante para não molhar mais que os calcanhares, mas profundas o bastante para enterrar sua paciência até o inferno.

    Se ao menos tivesse uma. Por mais espessa que fosse a casca de quem fingia não se importar… a eternidade no vazio não o tornara, nem de longe, o mais paciente dos seres.

    — Você iria até onde se eu não suspendesse minha Chaoswirt? — a voz cortou o silêncio como um estalo de chicote, carregada de um tédio preguiçoso, quase insultante.

    E de quem era?

    Do solene e atrevido, aquele mesmo, acomodado num trono de gelo, onde reinava como se fosse uma piada. Por trás dos olhos azuis, frios com um frigobar, regia aquele andar com a naturalidade de quem sabe que tudo ali dança ao seu capricho. Um dos nove fragmentos de Elar, um dos nove reis sombrios, senhor de um domínio.

    Os cabelos loiros caíam como uma coroa despenteada, enquanto o manto de pele de urso polar se fundia aos cristais que se espalhavam por seu corpo, dos pés até o queixo, como fungos devorando um tronco velho.

    Ele ergueu a mão, encarando os dedos pingando.

    — Então é isso? Ilusões agora? Com água? — bufou, sacudindo as gotas que lhe incomodavam a pele — Aqui transborda sua essência… Mas, francamente, que espetáculo deprimente!

    — Ilusões? — riu, como quem vê um macaco dançando na palma da mão — Não, não! Não se trata disso… irmão. Eu criei um cenário, fragmento por fragmento, assim como forjei as identidades patéticas dos meus servos, só para te testar! Acha mesmo que eu seria idiota o bastante para mandar três subordinados de verdade contra um maldito como você?

    — Então por isso eles não usavam suas essências…

    — Exato. Eu apenas repliquei o que já conheço. Modelei cada detalhe, dei às cópias as personalidades que eu acho que eles teriam. E veja só: você nem sequer chegou ao meu reino de verdade… Desde o instante em que pisou aqui, estava enterrado no meu interior, engolido pelo que eu permiti.

    Seus lábios rachados se comprimiram, depois se abriram num suspiro.

    — Só viu o que eu quis que visse!

    — Como um peão num tabuleiro, é isso? — Com um meio sorriso debochado.

    — Chame como quiser. Da forma que melhor encaixar no jogo. Não é assim que você enxerga as pessoas?

    — Pessoas!? — gargalhou, alto, como se cuspisse escárnio — Ou está falando dessas suas sombras miseráveis? Todo esse moralismo agora é mais uma vítima desse tal equilíbrio que você resolveu abraçar?

    — E esse seu amor próprio inflamado também é, não? — Retrucou, cada sílaba fria como o trono onde se recostava — Você não o tinha… não era você mesmo que vomitava ódio pela própria natureza? O tão adorado Vazio…

    — Eu o aceitei! Foi por isso que me tornei quem sou!

    — Aceitou? — inclinou-se — Sua Essenz flutua fora de você como pus de uma ferida que fede… parece mais que você o odeia ainda mais agora!

    — Não há por que eu engolir sermões de um farsante! — Erguendo o queixo como fera acuada — Nem se enxerga mais como uma sombra, acaso agora se curva a deuses e guardiões? Ridículo!

    — Certo! — o outro abriu os braços, teatral — Então chegamos ao instante, meu caro irmão! — as mãos apertaram os apoios do trono, que se desfizeram como poeira ao vento quando ele se ergueu, dominando-o todo espaço gélido com sua presença — Mas já que vamos lutar… erga sua Bösespiegel! Quero isso como troféu: o dia em que eu te esmaguei neste salão congelado!

    — S-salão? — Riu, cuspindo gelo entre os dentes — Ainda ousa chamar um lugar tão vasto de salão? — a mão se fechou no punho da espada, emergindo das dobras pesadas de suas vestes: Nihils.

    A escama da besta do Vazio, forjada na fome que tudo engole.

    — É a primeira vez que a usa? — sibilou o rei, o deboche escorrendo como geada pelas palavras, enquanto erguia sua própria lâmina, Frostkristalls, a lança de cristais eternos…

    Diziam que quem ousasse tocá-la conheceria um congelamento tão absoluto que nem a morte ousaria se aproximar. Estrelas inteiras seriam engolidas, e até mesmo um buraco negro poderia sucumbir à sua criogenia.

    — É a primeira vez que um tolo me pede uma luta de lâminas! — rosnou, os olhos faiscando entre diversão e desprezo — Grr… isso é tão… pessoal!

    Suas palavras eram como tiros — cada sílaba um estopim pronto pra explodir.

    E, como um disparo inevitável, os dois colidiram. A lança riscou o chão, deixando um rastro de gelo estalando, até tilintar contra a espada, faíscas e fragmentos se espalhando como estrelas quebradas.

    Noctherr avançou, braços e pernas engolfados por cristais, enquanto seu desafiante, estava com a pele levemente queimada pela escuridão.

    Dava pra sentir na pele o congelamento rastejando sob os poros, paralisando tudo em ondas de dormência. Cada movimento parecia querer morrer antes de nascer; se não fosse pela velocidade bruta, estaria agora mesmo pregado ao chão.

    Tentou flanquear pela lateral, rachando o ar com o som cristalino de estilhaços que se formavam e morriam, mas seu irmão se moveu com uma leveza quase preguiçosa, desviando para a esquerda, bloqueando fragmento por fragmento… cada lasca do abismo solta e despedaçada da lâmina.

    — Então? — disse o rei, com a voz arrastada de quem mal se importa — Qual é seu grande plano depois de me derrotar?

    — Destruir tudo! — rosnou Noctherr, cuspindo as palavras sem nem um pingo de teatralidade, pior que um brocha no meio da transa — Inclusive esses nove andares imundos!

    Será?

    Sempre fica ali. Entrelinhas.

    ÚLTIMO CAPÍTULO ESCRITO AQUI!

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