Capítulo 34 - Yadelohim, Parte 1
No interior do Yadelohim, a câmara sagrada dos Guardiões, o ar era pesado como se o espaço ali se contorcesse para conter tantos absolutos.
Quinze cadeiras, talhadas em pedra translúcida com filigranas de ouro vivo, estavam dispostas em círculo perfeito.
Cada uma ocupada por um dos Quinze Guardiões Superiores — seres tão poderosos que suas presenças sozinhas bastavam para apagar deidades inteiras ou confrontar Reis Sombrios em pé de igualdade.
A luz emanava do próprio chão de mármore luminoso, refletindo nas abóbadas de cristal negro suspensas por correntes etéreas.
Ali, tempo e probabilidade se dobravam às vontades deles.
No centro, Elohim, de pé, fitava cada um de seus Guardiões com olhos que carregavam eras.
O silêncio se quebrou quando Liora, de cabelos presos num coque cerimonial, ergueu o queixo num gesto quase desafiador.
— Então… esse cara é realmente um problemão! Não é, velhote?
Elohim respirou fundo, um ruído grave que parecia deslocar camadas de realidade.
— Ele é… Noctherr está além da compressão para seres comuns. Sem o Yadelohim suspenso, se ele emergir das profundezas, espalhará o caos a este mundo como um dilúvio sem forma!
Elyah, sentado com a postura relaxada como uma espada persa cravada no chão, braços cruzados sobre a veste ritual que pulsava em reflexos de sua aura flamejante e plumagens de fênix, franziu a testa.
Por um instante, quase pareceu se importar…
— Mesmo só um fragmento? Senhor… o senhor é uma parte inteira de Elar. Enquanto ele é apenas um de nove fragmentos de outra parte… como isso pode ser uma ameaça? Ele é… um nada perto do senhor!
— Não é bem assim. Ele representa o abismo da existência do nosso criador. É a inquietude primordial em ser nada. Ele vai além de poder… ele é a ideia do que não pode ser saciado, buraco insaciável na malha da realidade. É quase impossível destituí-lo ao ponto de ser “além de si”.
— Ou seja… ele é um cuzão imortal?
Liora bufou, cruzando uma perna sobre a outra, o manto roçando sua pele como seda.
— Exatamente.
Houve um leve riso nervoso, abafado pelos ecos da câmara. Hillel Shapir, o mais irreverente, recostou-se em sua cadeira. Metade do peito à mostra, cabelos brancos caídos a seus olhos.
Azuis que queimavam com uma malícia quase juvenil.
— Merda! Então isso tudo é pra achar um jeito de parar esse maldito?
— Sim e não. Existem algumas formas de contê-lo. Neste exato instante, ele está confrontando Eisfürst, o senhor do Gelo, capaz de congelar até leis fundamentais… mas Noctherr manipula a probabilidade do nada acontecer. É uma de suas faces mais nefastas! Entendem?
Hillel deu um assovio baixo, batendo as unhas contra o braço do trono.
— Ah, potenciais? Vilão tendo potencial? — zombou, mirando de esguelha para o Guardião ao lado.
Era quase igual ao loiro. Só mudava o estilo… pra ele era marra pura.
Elohim prosseguiu, ignorando o tom.
— Sim. Todo fragmento de Elar carrega potencial para estar além do estado limitante em que se encontra. Noctherr mesmo, em três mil anos, transcendeu o conceito de prisão. Ele cultivou o abismo como lar, despedaçou o selo camada por camada… e agora vagueia à beira de nossa realidade.
Outra moça arqueou as sobrancelhas, um sorriso felino se insinuando no canto dos lábios.
Era Meris Chatzad, a guardiã do Quarto Distrito — ruiva, olhos verdes tão cortantes quanto as unhas pintadas da mesma cor. Sua veste negra parecia mais uma camada de sombra caída sobre suas curvas, o decote escancarado como um desafio aos olhos masculinos. Dentes afiados, mas não pontiagudos, reluziam quando a língua escapou, úmida, roçando o lábio inferior num gesto quase predatório.
— Ehr… caceta! Então ele pode se adaptar a qualquer merda que a gente jogue nele?
— Poderia.
Meris inclinou a cabeça para o lado, o pescoço estalando alto, como se fosse uma criminosa de rua prestes a cobrar uma dívida de sangue. O sorriso se abriu, largo, mostrando os dentes afiados num lampejo de diversão.
Entre ela e um urso, qualquer um ali escolheria o urso.
— Fudeu! Fudeu mesmo! — murmurou, a língua roçando o canino, enquanto trocava um olhar carregado de sarcasmo com o loiro sentado à sua esquerda.
Ele apenas deu de ombros, cinismo estampado, como se dissesse que, no fundo, aquilo até o divertia.
O mais velho revirou os olhos, não era Elohim, mas alguém que carregava nos ombros a poeira de milênios. Talvez decepcionado com aquelas conclusões tão rasas, talvez apenas cansado da ignorância dos jovens. Mesmo ele, que tocava o conceito de tudo e nada, era um eterno estudante da tolice alheia.
— Idiotas! — cuspiu as palavras como quem cospe sangue — Vocês não entendem o conceito de potencial? Ele pode ou não pode chegar a isso. É como tentar impor limites ao ilimitado. A pode ser mais capaz que B, mas o que B faz é o que determina quem vence. É o potencial realizado, não o potencial imaginado, que decide o desfecho!
A voz dele reverberava arrancando faíscas da realidade.
— Vocês esquecem? Elar se destruiu tentando entender o quão limitado era ser ilimitado! Ser capaz de fazer tudo, mas confinado a só fazer o que lhe convém… essa é a verdadeira jaula da criação! A mente dele gera infinitos, mas nunca o estado além de si!
Seu nome? Era Yotzer Hadimyôn, o mais velho de todos. Moveu levemente a cabeça, e sua venda de pura escuridão pareceu engolir as centelhas do ar ao redor, como se devorasse pensamentos dispersos.
Vestia o manto mais antigo, branco como o luar morto e bordado com filigranas de ouro que brilhavam à luz bruxuleante. Símbolos de uma língua esquecida serpenteavam pelo tecido, sussurrando segredos para quem ousasse escutar. Seus cabelos grisalhos e a barba longa fluíam como rios sagrados, tocando o piso polido que refletia suas ruínas de glória.
Ergueu uma das mãos, a pele enrugada gravada por runas que pulsavam com o som de tudo e nada — Dono de um Eco de mundos que se desfaziam só de serem lembrados.
— Potencial é um poço sem fundo. E nós… — Yotzer Hadimyôn soou como uma rocha se desprendendo de um penhasco — Nós somos os vigias à beira desse poço. E por isso mesmo, somos os únicos capazes de olhar lá dentro… e decidir o que fazer com o que se esconde lá embaixo. Estou errado, Senhor?
Um silêncio reverente se espalhou. Então Elohim, com os olhos que carregam lembranças fétidas do passado, ergueu o rosto na direção do velho Guardião.
— Não. É exatamente isso… Mesmo conhecendo o potencial dos Reis Sombrios, sabemos que não são meras escadas a serem escaladas. Eles são degraus, sim, mas nós… nós seremos o limite. O limite até onde ele ousará chegar!
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