Capítulo 36 - Yadelohim, Parte final
— Então, está encerrado? — Emet questionou, o último suspiro de fadiga que atrapalha sua paz, lançando seus olhares para Uriel Ben Lahatz como quem pede permissão para respirar.
De todos os quinze ali, era o único que se dava ao luxo de chamar de amigo.
Seus olhos vermelhos, normalmente vazios de afeto, agora brilhavam com um raro vestígio de… ansiedade?
Quase cômico ver alguém com aquele topete azul elétrico, espetado como se tivesse enfiado o dedo numa tomada, fingindo compostura.
Os pulsos estavam firmes, mas o olhar denunciava que ele já estava ensaiando um “eu avisei”.
Afinal, era o paranoico — aquele que conseguia pressentir o fim já no primeiro dia das férias de verão.
— Por enquanto… — respondeu através dos Ecos e cada sílaba que saía de sua boca parecia vir com um calmante embutido, como se a própria realidade abaixasse o tom e nervos para ouvi-lo — Por hora. Este será o nosso covil.
A palavra “covil” reverberou com certo sarcasmo, afinal, chamá-lo assim era um eufemismo elegante para “buraco desesperado onde nos trancamos esperando o pior”.
— Eles atacaram uma vez… — continuou — De alguma forma, conseguiram passar por passagens ocultas… até mesmo do Abismo. O que já seria um milagre, se não fosse um ultraje. Ou seja: ou alguém abriu caminho, ou alguém muito conveniente “esqueceu” de fechá-lo. Pode ter sido uma sombra, um deus ou até mesmo um dos nossos guardiões… Não há por que sair caçando culpados sem evidências, então vamos poupar energia.
Fez uma pausa breve.
— Mas… Não podemos permitir outra visita surpresa. Ficaremos aqui até que a guerra bata à porta, ou nos encontre dormindo de olhos abertos… seja lá o que vier primeiro! Entendido?
— Por que tanto drama? — resmungou Uriel, cruzando os braços com um meio sorriso cínico — Se isso é uma fortaleza e prisão pra eles, não seria, sei lá… o fim da linha?
Nem nem digeriu as palavras ditas.
— Porque… — Soltando um suspiro que parecia carregar séculos de paciência — Uma vez ativada, essa estrutura só permite a entrada. Ninguém sai. E sim, o sistema de aniquilação e detecção não possui senso de humor, nem julgamento moral. Ele responde, age, elimina. Com eficiência absoluta. Sempre.
Seu olhar percorreu os rostos à sua frente.
— No entanto… se alguma sombra suficientemente astuta conseguir enganar ou romper esse sistema primário, outro será ativado. E se esse também falhar… há outro. E outro. Cada um mais hostil que o anterior. Não é apenas uma prisão. É um ciclo de contenção adaptativa. Quanto maior a ameaça… mais o lugar reage.
Fez novamente uma breve pausa.
— Então não se enganem… não estamos totalmente protegidos. Nós estamos no centro do campo minado!
— Se ela se adapta… então por que seria necessária tanta atenção? — perguntou Uriel, o olhar já procurando algo para queimar, talvez dúvidas, ordens, ou o próprio tédio — Poucos vão chegar a lutar, certo?
— Errado! A Mikremazgal tornará o local um labirinto assim que a primeira sombra cruzar a fronteira. Mas não será um labirinto qualquer. O sistema é defensivo, não ofensivo. Isso significa que o ambiente não irá matar por vocês… apenas organizará os cenários. Vocês vão ter que sujar as próprias mãos. Pessoalmente. Entendido?
— Merda… — Elyah soltou uma risada nervosa, o tipo que mais parece um pedido de ajuda disfarçado de piada — Então é isso? Fazer cosplay de pão mofado até ser convocado pra morte? Ehr… merda mesmo.
— Se estão tão entediados assim… então por que não interagem entre si? Não eram vocês que viviam reclamando por colocarem o dever acima da vida? Por tudo ser parte de um destino ingrato, pesado, cruel?
Fez uma pausa, como se sua voz estivesse sustentando mais do que simples palavras.
— Então sejam livres — disse Elohim, como quem condena e liberta ao mesmo tempo — nem que seja entre a forca e a paz.
Um silêncio breve se instalou. Pesado o bastante para durar séculos. Mas, como sempre, foi o loiro quem decidiu acender fogo no barril.
— Certo… — murmurou, erguendo o queixo com um brilho zombeteiro no olhar, enquanto varria os outros com uma expressão que misturava desafio e puro tédio existencial — Já que estamos presos esperando o apocalipse bater à porta… que tal matar o tempo como os humanos?
Enfiou a mão sob as vestes e, com a pompa de um mágico de bar de quinta, puxou um baralho gasto e algumas fichas coloridas.
— Estive algumas semanas em Las Vegas… E aprendi uns joguinhos interessantes por lá. Regras simples, mas as consequências são humilhantes!
Sorriu malicioso.
— Vamos jogar… valendo nossas vestes de Guardiões Superiores.
Girou uma ficha entre os dedos.
— Claro que meus adversários eram belas loiras como eu — Colocando dois dedos entre os lábios e soltando uma risada cafajeste, dessas que cheiram a perfume barato — Ah… bons tempos. Quem topa?
Elohim, incrédulo, apenas se sentou. Não esperava absolutamente nada dele — e, mesmo assim, conseguia decepcioná-lo com consistência admirável.
— E temos escolha? — Emet murmurou antes de desfazer seu corpo em uma poça cristalina e reaparecer ao lado do loiro, também com um sorriso torto — Vai que eu vejo alguma garota nua… Hehe… já vale a pena.
— Não! — retrucou o ruivo, surgindo logo atrás — Mas talvez veja algum homem… sei lá… curiosidade antropológica.
O velho virou o rosto, resmungando algo entre os dentes. Liora cobriu metade do rosto com a mão, mas não escondia o riso — ria deles, e por que não, da própria situação. Já Hillei…
Lambeu os lábios com lentidão e apertou firme a própria garganta com a mão, num gesto de inquietação sádica.
Com certeza, ela os via em bandejas. E seu corpo, sem o menor pudor, se excitava com a ideia de uma realidade onde poderia deitar sobre seus corpos mortos… e sorrir.
— Vamos lá, rapazes!
Os três a encararam por um segundo, meio sem jeito, meio arrependidos de estarem vivos.
— A mamãe vai ensinar como se vence!
Até mesmo os outros guardiões — os calados, os impassíveis, os que fingiam meditar sobre o destino da existência — sentiram um arrepio discreto na espinha. Uma ameaça implícita, quase maternal, quase homicida.
É… esse rolê foi longe demais.
E ninguém ali tinha coragem (ou sanidade) suficiente pra dizer o contrário.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.