Capítulo 39 - Dentro do cubo
A conversa caiu como poeira, aos pés de ambos.
Para uns, revelações. Para o outro, só mais uma camada de pó cobrindo o que já era difícil de enxergar.
Claro…
Um tolo e ignorante tentando se sobressair diante daquele que parecia carregar o peso do saber absoluto.
Um duelo tão justo quanto jogar xadrez contra um relógio.
E, ainda assim, tudo o que o garoto precisava aprender estava ali, escondido, como um livro que insiste em se fechar sempre na melhor parte.
— Certo… então, começaremos pelo mais difícil e demorado!
Foi como um balde de água fria jogado em seu rosto.
O corpo estremeceu, quase por reflexo.
— Ehr… mais difícil?
— Sim! Assim tudo será mais fácil.
Irônico. Contraditório.
A lógica soava tão convincente quanto aprender a nadar jogado no meio do oceano.
E, de algum jeito, fazia sentido.
As coisas haviam chegado aos finalmente e isso sempre agitava o calvo, como se o simples ato de concluir fosse um esporte.
Das sombras de suas vestes, retirou um cubo negro, perfeitamente esculpido, cujas arestas cintilavam como lâminas sob a luz do ambiente.
Segurava-o com a delicadeza de quem reencontra um velho amigo.
Seus olhos profundos, refletiam o objeto como se nada mais existisse no mundo.
— Este é o melhor método para a autorreflexão. Ele levará você a uma comunicação íntima consigo mesmo.
— Um cubo mágico? — a descrença escorreu da voz de Cael, quase rindo.
Maior até que a do Palmeiras no mundial.
— Exatamente. Este cubo permitirá que você veja e compreenda o Eco que flui por você…
— Como? Isso é meio… Nerd… não?
— Nerd? — repetiu, inclinando a cabeça como se provasse uma palavra estrangeira, rara demais para existir.
— É… não sabe, né?
— Não — Um breve silêncio — Enfim. Será melhor se ver. Mas antes vou explicar, para que não entre em pânico.
Ergueu-o. Agora pulsava em sua mão como um coração, uma vontade viva, emanando pura existência.
Um fragmento do vazio, derretido e forjado com um novo sentido.
— Um dia? Prisão? — engoliu seco, a voz falhando — Cara… sei não. Não parece bom. Se eu ficar com fome? Com sede? Eu não gosto dessa ideia de ir em cana, não.
— Não morrerá.
E, de repente, morrer pareceu a única sentença verdadeiramente confiável.
— Mas…
O ar lhe faltou.
Era como se já estivesse dentro do cubo, mesmo sem tocá-lo.
Sua mente o sabotava mais do que qualquer outra coisa… Já falhou, já morreu…
— Você só me mete em B.O., hein? — quase chorou, como uma criança birrenta que era — Mas vai… fala aí…
— Você não entende, mas farei você entender… — Estalou os lábios, aquele velho costume de ancião — E é bom que sinta seu corpo clamar por alimento, sabia? Não há forma maior de se conectar com sua mente e seus devaneios.
Foi demais.
Sobreviver a uma entidade que quase o matou já era loucura suficiente.
Agora, definhar de fome? Era pedir que a paciência se esfarelasse junto do corpo.
— Maluco! — gritou, nervoso, a voz mais alta do que gostaria.
Mas não foi mais rápido que o gesto seco, o tal lançado em sua direção.
Diante de sua vista, um trem desgovernado.
O pobre coitado desviou, quase tropeçando nos próprios pés.
Por um instante, imaginou ter garras — porque, no fim, por muito menos já se perde a vida.
Mas aquele grande tigre de aço não passava de um cubo: energia em seu estado mais puro, ainda que nada tivesse de proporcional ao tamanho que sua mente lhe dava.
— Tá maluco?! Quer me matar?!
O objeto bateu no chão. O som foi ridiculamente leve.
Quase um insulto.
— Hã?
Nem entendeu.
O peso era tão irrisório que mais lembrava uma pena esquecida ao vento.
Sentiu a própria miséria arrastá-lo de volta ao lugar de costume, abaixo de todos, refém da ignorância e cúmplice fiel da vergonha.
Tururu…
Pensou, fitando o chão.
— Você é burro? Acha mesmo que eu ia jogar algo pesado pra te matar?
Teve que se segurar para não rir da situação.
— Ehr… — e, no fundo, tinha certeza de que sim.
Ele é capaz de arrancar minha cabeça só pra provar o ponto… Pensou, e, meio sem jeito, se abaixou, pegou-o e o ergueu entre as mãos, como quem segura uma granada prestes a explodir.
Por um instante, sua mente o traiu: braços sem mãos, sangue no chão.
Mas bastou um piscar, e tudo voltou ao lugar.
— E como faço isso, hein? Não que eu vá fazer agora…
Olhou para os lados. Nada firme, nada inteiro.
A confiança que transmitia era a mesma de um bandido tentando sorrir para um policial.
— Diga que quer se conhecer.
— Só isso? Tipo… “quero me conhecer”?
Mal a frase escapou, sua vista foi engolida pela escuridão.
O ceticismo no rosto se contraiu num meio sorriso nervoso.
— Sério?
Os músculos travaram, como se tivesse tocado em um fio desencapado.
— Eu me odeio…
A sinceridade que antes faltava agora lhe caía como uma luva.
— Merda…
Um idiota completo.
Mas, ao menos, finalmente em seu devido lugar.
E do lado de fora…
O guardião riu baixo, o som ecoando como se zombasse até do silêncio.
Virou-se de costas, e o pequeno cubo, antes inofensivo, se expandiu diante dele, transformando-se num imenso bloco — não de pedra, mas semelhante aos de concreto, exalando energias em tons de azul que se espalhavam pelo espaço como maré silenciosa.
— Espero que aprenda algo… garoto…
— Então… isso aqui é uma prisão… — murmurou alto, a voz ecoando sem retorno. Sentou-se devagar, dobrando os joelhos, e ali uma verdade amarga começou a ganhar cor — Por que é tão escuro…
Até mesmo diante de coisas inimagináveis — viajando para outro mundo, ganhando novas perspectivas — ainda sentia medo do escuro.
Não só dele… mas do que encontraria ao olhar para si. E olhar para si era ver a coisa mais abominável, um monstro pequeno, que incomodava somente a si, e o rasgava…
Passaram-se minutos.
A alegria que o fazia responder com sarcasmo sumia. Não havia ninguém para ouvir.
Mais…
O nervosismo de estar sendo visto, era tomado pelo de não estar.
O corpo sempre cheio demais.
— O que eu tô fazendo da minha vida? Será que a mamãe tá bem? — murmurou, e as dúvidas bateram em sua mente como ondas.
Angústia.
Talvez o ser humano só perceba a falta… quando já não há mais nada a que se agarrar.
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