— O…

    Fazia-se pela décima vez a mesma pergunta, tão exausto que o eco voltava mais pesado a cada repetição.

    Eco… apenas seu Eco escutava. Nem os grilos, nem a ventania.

    E…

    — Que tá fazendo da sua vida?

    Desta vez, algo o respondia, preenchendo o que morria em seus lábios secos.

    À sua frente, um reflexo de si… só que distorcido pelo que mais temia enxergar.

    — Ah-n? — deu um passo para trás, a nuca roçando na parede fria e escura, e logo começou a bater a cabeça contra ela, tentando acordar… ou apagar aquela visão — Quem é tu? Uma alucinação?

    — Sou você…

    — Não, não é! — tampou o nariz, tomado por um nojo quase instintivo.

    Aquele reflexo tinha a mesma aparência, mas os cabelos desgrenhados, olheiras fundas, a postura curvada… e exalava um cheiro rançoso, azedo.

    Imagina olhar para si mesmo… e encontrar a pior versão que poderia existir?

    E o pior… ela o encarava com uma certeza irritante.

    — Não? Essa é a sua versão mais legal… não me olhe com nojo! — sorriu, dentes amarelados — Isso é tudo o que você é quando não está sozinho.

    — Como assim? Eu não fedo…

    — Fede…

    — Não, não! E não sou…

    — Desagradável como eu? — a voz ganhou peso, cortando o ar como uma lâmina cega — É. Você é. Todos são! — O reflexo avançou.

    — Me deixa…

    — Você é um covarde que faz piada pra escapar, que zoa pra não chorar! — A última frase foi cuspida com tal força que arrepiou a pele, como se cada palavra fosse um golpe seco — Eu tô mentindo?

    Talvez fosse excesso de energia se houvesse um medidor de radiação, nem Chernobyl, no pico, conseguiria acompanhar.

    — Tá! — quase se levantou, mas as pernas disseram “tchau” — Cansei de ficarem dizendo o que eu sou! — mordeu o lábio com força, tremendo — Se for pra isso, vaza!

    — Mas eu sou você…

    A frase caiu no ar como um peso morto.

    Sua respiração perdeu o compasso, engasgando entre inspiração e expiração. O coração disparou, bombeando ansiedade direto no peito, enquanto a mente girava sem encontrar um ponto fixo — incapaz de entender por que aquelas palavras faziam algo explodir lá dentro.

    Seu coração estava envenenado… e não havia antídoto. Nunca houve.

    — E como isso me ajuda a me conectar com meu Eco? Cacete… — passou a mão pelos cabelos, puxando alguns fios — o que você me dizer isso ajuda?

    Na palma da mão, fios púrpura… estava enlouquecendo e essa era a única certeza.

    — Nada! — a risada veio seca, cortante, saturada de desprezo — Já pensou no quão acomodado você é?

    — Por quê?

    — Nunca se perguntou por que está aqui? — inclinou a cabeça, olhos semicerrados, como quem acabara de dizer algo óbvio — Só agora, quando nada te acomoda, é que decide pensar nisso… isso é tão… desprezível.

    — Ehr…

    — Faltou ar? Palavras?

    Um zumbido surdo tomou-lhe os ouvidos, como se o mundo inteiro estivesse preso em um corredor estreito.

    Ironicamente… num cubo mágico, pior ainda.

    — O-o que você quer?

    Desarmado.

    Não se defendeu. Não iria.

    Milagre seria o dia em que conseguisse dizer algo na cara de alguém… ou devolver uma ofensa com real intenção.

    Sua mente foi violada até ceder… como sempre. Vítima de um abuso mental.

    — Ah… agora sim! — o reflexo abriu um sorriso largo, quase satisfeito, recuando um passo como quem saboreia a rendição alheia — Agora sim! — inclinou-se para o lado, examinando-o de cima a baixo, antes de voltar a avançar, tão perto que o hálito quente e rançoso quase queimava a pele — Quero… que você faça tudo o que eu mandar. Em troca… vou te dar exatamente aquilo que você deseja.

    O quão ruim seria ser vítima do próprio subconsciente encarnado?

    — Como assim? — suspirou — O que eu quero? Ou… o que você quer? Você não disse que era eu?

    — Sou! — o reflexo respondeu sem hesitar, as pupilas dilatadas — Sou você. Sou também a sua melhor parte… — fez uma pausa, deixando o silêncio apertar o ar, asfixia entorpecendo a mente e sua indagação — É que o pior de você é capaz de coisas que o seu “eu” que finge ser bom jamais conseguiria.

    — Finge?

    Engoliu seco… nada além de saliva.

    — Vai fingir que não sabe disso?

    O reflexo suspirou, quase com pena.

    — Enfim… é por isso que você precisa de mim. Porque, sozinho, você só sobrevive… mas comigo, você vence.

    Ele ergueu a mão, arranhou o próprio pescoço, deixando uma marca, e então a olhou, suspirando…

    — Eu sou o íntimo do seu Eco — a voz veio mais grave, mais lenta, como se cada palavra fosse pesada demais para atravessar o ar depressa, uma bala em câmera lenta, diferente das dezenas que o levaram ali — Sua vontade. Aquilo que está além da simples relação entre pensar e agir… sou a natureza que une mente e energia. O impulso bruto que o seu “bom senso” tenta acorrentar!

    — Mas… o que você quer com isso?

    — Ter controle! — a risada vinha em estalos, quebrada, falha… e, por isso mesmo, ainda mais perturbadora. O tipo de som capaz de arrancar alguém de qualquer sonho ou descanso — Ao contrário de você, eu não me satisfaço com a posição inferior. Aluno. Protegido. Pobre… O governo, nem mesmo a porcaria de um espírito protetor, muda o que eu sou! Independente! Sozinho!

    Aluno? Conveniência.

    Protegido? Sorte.

    Pobre? Condição.

    O quão relacionados estavam? Sua mente unia tudo em uma só palavra: fracasso.

    — Oh… então você quer estar acima de mim?

    — Exatamente… o homem sendo lobo do próprio homem. Mas aqui… eu serei o seu lobo… e também seu maior benfeitor. A mão que cuida… — levantou a palma aberta, como se oferecesse algo — e que mata! — fechou-a em punho com força.

    — Que bizarro… — murmurou.

    — O que?

    — Minha própria energia me fazendo um contrato…

    — É pegar ou largar! — Estalou os dedos; o som seco reverberou como um gatilho disparado — É o caminho mais fácil… Pense em um hack… na sua vida. Ao menos uma vez… tente se dar bem!

    Abriu um meio-sorriso.

    — Não é como se o mundo jogasse limpo com você… então por que você deveria jogar?

    Aquele sabor… já o havia sentido antes, mesmo que agora estivesse nos lábios de “outro”.

    Nesse instante — um segundo apenas — ele jogou a cabeça para trás, bateu, mas não gemeu de dor. Um sorriso surgiu em resposta.

    — Agora entendi quem é você…

    — An?

    — Você é… a parte minha que quer se dar bem em cima dos outros. É… já senti você antes… tantas vezes… um troco errado, um celular esquecido em cima do balcão… — abriu bem os lábios e, num estalo, fechou-os — Eu nego!

    ÚLTIMO CAPÍTULO ESCRITO AQUI!

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota