Capítulo 40 - Faces
— O…
Fazia-se pela décima vez a mesma pergunta, tão exausto que o eco voltava mais pesado a cada repetição.
Eco… apenas seu Eco escutava. Nem os grilos, nem a ventania.
E…
— Que tá fazendo da sua vida?
Desta vez, algo o respondia, preenchendo o que morria em seus lábios secos.
À sua frente, um reflexo de si… só que distorcido pelo que mais temia enxergar.
— Ah-n? — deu um passo para trás, a nuca roçando na parede fria e escura, e logo começou a bater a cabeça contra ela, tentando acordar… ou apagar aquela visão — Quem é tu? Uma alucinação?
— Sou você…
— Não, não é! — tampou o nariz, tomado por um nojo quase instintivo.
Aquele reflexo tinha a mesma aparência, mas os cabelos desgrenhados, olheiras fundas, a postura curvada… e exalava um cheiro rançoso, azedo.
Imagina olhar para si mesmo… e encontrar a pior versão que poderia existir?
E o pior… ela o encarava com uma certeza irritante.
— Não? Essa é a sua versão mais legal… não me olhe com nojo! — sorriu, dentes amarelados — Isso é tudo o que você é quando não está sozinho.
— Como assim? Eu não fedo…
— Fede…
— Não, não! E não sou…
— Desagradável como eu? — a voz ganhou peso, cortando o ar como uma lâmina cega — É. Você é. Todos são! — O reflexo avançou.
— Me deixa…
— Você é um covarde que faz piada pra escapar, que zoa pra não chorar! — A última frase foi cuspida com tal força que arrepiou a pele, como se cada palavra fosse um golpe seco — Eu tô mentindo?
Talvez fosse excesso de energia se houvesse um medidor de radiação, nem Chernobyl, no pico, conseguiria acompanhar.
— Tá! — quase se levantou, mas as pernas disseram “tchau” — Cansei de ficarem dizendo o que eu sou! — mordeu o lábio com força, tremendo — Se for pra isso, vaza!
— Mas eu sou você…
A frase caiu no ar como um peso morto.
Sua respiração perdeu o compasso, engasgando entre inspiração e expiração. O coração disparou, bombeando ansiedade direto no peito, enquanto a mente girava sem encontrar um ponto fixo — incapaz de entender por que aquelas palavras faziam algo explodir lá dentro.
Seu coração estava envenenado… e não havia antídoto. Nunca houve.
— E como isso me ajuda a me conectar com meu Eco? Cacete… — passou a mão pelos cabelos, puxando alguns fios — o que você me dizer isso ajuda?
Na palma da mão, fios púrpura… estava enlouquecendo e essa era a única certeza.
— Nada! — a risada veio seca, cortante, saturada de desprezo — Já pensou no quão acomodado você é?
— Por quê?
— Nunca se perguntou por que está aqui? — inclinou a cabeça, olhos semicerrados, como quem acabara de dizer algo óbvio — Só agora, quando nada te acomoda, é que decide pensar nisso… isso é tão… desprezível.
— Ehr…
— Faltou ar? Palavras?
Um zumbido surdo tomou-lhe os ouvidos, como se o mundo inteiro estivesse preso em um corredor estreito.
Ironicamente… num cubo mágico, pior ainda.
— O-o que você quer?
Desarmado.
Não se defendeu. Não iria.
Milagre seria o dia em que conseguisse dizer algo na cara de alguém… ou devolver uma ofensa com real intenção.
Sua mente foi violada até ceder… como sempre. Vítima de um abuso mental.
— Ah… agora sim! — o reflexo abriu um sorriso largo, quase satisfeito, recuando um passo como quem saboreia a rendição alheia — Agora sim! — inclinou-se para o lado, examinando-o de cima a baixo, antes de voltar a avançar, tão perto que o hálito quente e rançoso quase queimava a pele — Quero… que você faça tudo o que eu mandar. Em troca… vou te dar exatamente aquilo que você deseja.
O quão ruim seria ser vítima do próprio subconsciente encarnado?
— Como assim? — suspirou — O que eu quero? Ou… o que você quer? Você não disse que era eu?
— Sou! — o reflexo respondeu sem hesitar, as pupilas dilatadas — Sou você. Sou também a sua melhor parte… — fez uma pausa, deixando o silêncio apertar o ar, asfixia entorpecendo a mente e sua indagação — É que o pior de você é capaz de coisas que o seu “eu” que finge ser bom jamais conseguiria.
— Finge?
Engoliu seco… nada além de saliva.
— Vai fingir que não sabe disso?
O reflexo suspirou, quase com pena.
— Enfim… é por isso que você precisa de mim. Porque, sozinho, você só sobrevive… mas comigo, você vence.
Ele ergueu a mão, arranhou o próprio pescoço, deixando uma marca, e então a olhou, suspirando…
— Eu sou o íntimo do seu Eco — a voz veio mais grave, mais lenta, como se cada palavra fosse pesada demais para atravessar o ar depressa, uma bala em câmera lenta, diferente das dezenas que o levaram ali — Sua vontade. Aquilo que está além da simples relação entre pensar e agir… sou a natureza que une mente e energia. O impulso bruto que o seu “bom senso” tenta acorrentar!
— Mas… o que você quer com isso?
— Ter controle! — a risada vinha em estalos, quebrada, falha… e, por isso mesmo, ainda mais perturbadora. O tipo de som capaz de arrancar alguém de qualquer sonho ou descanso — Ao contrário de você, eu não me satisfaço com a posição inferior. Aluno. Protegido. Pobre… O governo, nem mesmo a porcaria de um espírito protetor, muda o que eu sou! Independente! Sozinho!
Aluno? Conveniência.
Protegido? Sorte.
Pobre? Condição.
O quão relacionados estavam? Sua mente unia tudo em uma só palavra: fracasso.
— Oh… então você quer estar acima de mim?
— Exatamente… o homem sendo lobo do próprio homem. Mas aqui… eu serei o seu lobo… e também seu maior benfeitor. A mão que cuida… — levantou a palma aberta, como se oferecesse algo — e que mata! — fechou-a em punho com força.
— Que bizarro… — murmurou.
— O que?
— Minha própria energia me fazendo um contrato…
— É pegar ou largar! — Estalou os dedos; o som seco reverberou como um gatilho disparado — É o caminho mais fácil… Pense em um hack… na sua vida. Ao menos uma vez… tente se dar bem!
Abriu um meio-sorriso.
— Não é como se o mundo jogasse limpo com você… então por que você deveria jogar?
Aquele sabor… já o havia sentido antes, mesmo que agora estivesse nos lábios de “outro”.
Nesse instante — um segundo apenas — ele jogou a cabeça para trás, bateu, mas não gemeu de dor. Um sorriso surgiu em resposta.
— Agora entendi quem é você…
— An?
— Você é… a parte minha que quer se dar bem em cima dos outros. É… já senti você antes… tantas vezes… um troco errado, um celular esquecido em cima do balcão… — abriu bem os lábios e, num estalo, fechou-os — Eu nego!
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