Capítulo 42 - Frio incomparável
— Eissargsöffnung!
O brado não era apenas som, mas decreto. Sua essência condensava-se em comandos que o próprio cosmos acatava, e a Chaoswirt, inflada ao limite, erguia-se em forma de muralhas translúcidas.
Quatro paredes de gelo estalaram no ar, fechando-se em torno da sombra rebelde, moldando-lhe um caixão fúnebre de cristal congelado.
— Por que não esfria a cabeça um pouco? — a voz cortava como lâmina na calmaria súbita — Pensa. No que tu almeja!
O estalar do gelo ressoou em seguida, como ossos partindo sob pressão.
— Mais? — em um giro abrupto, partiu tudo em um corte violento, os fragmentos do caixão explodindo em estilhaços reluzentes. Sua respiração, no entanto, tornava-se irregular, arfante, cada vez mais rouca — Hipotermia… — cuspiu entre dentes — quantos já matou assim?
— Ah… — o outro apenas desviou o olhar para a esquerda, um gesto ínfimo, mas suficiente. A energia que se erguia para colidir consigo foi desfeita no instante em que se tornou visível, implodindo no ar como um projétil de ferro que perde todo o impulso — Nem você acredita nisso…
— Leerenwelle!
E o mundo se abriu. Uma onda emergiu do vazio, não como água ou fogo, mas como o nascimento de bilhões de buracos negros, desintegrando ar, luz e matéria em um redemoinho absoluto.
O gelo, outrora soberano, agora debatia-se contra o nada, contra a inexistência que sugava fundamentos e conceitos.
— Isso é tão brega… — riu, mas o riso vinha quase raivoso — Nossa luta é uma discussão argumentativa de um filósofo!
— Mera coincidência… — com a mão erguida, o outro deteve a onda. O gelo se expandiu como um tecido branco, anulando a linearidade da existência. O frio absoluto paralisava até o vazio, cristalizando a própria ausência em geometrias impossíveis — Você ataca contra o mundo… eu me defendo com ele… e a cada colapso de nossas vontades, o Multiverso inteiro range em seus pilares!
— Findarei a existência! — o grito veio manchado de sangue, que escorreu pelos lábios.
— Me pergunto, quão magnífico será quando você se encontrar com Elohim…
Era repelido para trás, esmagado pela colisão de essências. Sua forma cambaleava, mas a fúria o mantinha de pé.
— Você poderia ver isso… se não fosse um maldito traidor!
— …Traidor?
— Você poderia ter se tornado como eu! Um oponente do destino, do equilíbrio! Mas preferiu se render… afundou na miséria da tua própria existência!
O silêncio que veio depois era pesado como neve sobre uma tumba.
Era sufocante — como estar soterrado sob camadas invisíveis de gelo e silêncio.
O ar rarefeito pesava nos pulmões, não apenas pelo frio ou pelo impacto da batalha, mas pelo fardo de estar diante de um espelho invertido de si.
Cada estilhaço de gelo que caía lembrava-lhe memórias reprimidas, cada onda de vazio que se erguia dilacerava certezas frágeis.
Ao fim, talvez sobrasse apenas uma nova versão de si… desconhecida, irreconhecível, inevitável.
— Eu aprendi a viver… Isso me torna um traidor? — respondeu por fim. Sua voz soava imutável, o mesmo que ecoara séculos atrás. Ao som de suas palavras, o ar gélido retornava, rastejando como serpente até os pés do inimigo — Este grande inverno só terá fim… quando não houver mais terras para preencher!
— Como vive estando preso ao equilíbrio? — a voz retumbava como martelo em ferro — Você mal mudou suas estratégias… esse é o fim que o equilíbrio leva… a estagnação!
— E o que você trará?
— O fim que leva ao começo… — respondeu, seus olhos refletindo apenas escuridão — Após tudo acabar, surgirá um mundo melhor, talvez não haja sombras, guardiões ou deuses… apenas o vazio que liberta!
— Melhor? — ao erguer a mão até a altura do peito, absorveu cada partícula de frio, secando o espaço até que a própria consciência rareasse, convergindo essência em algo além da ausência, um espectro dentro da carne — Então te mostrarei aquilo que ninguém… ninguém nesse mundo poderá ou ousará presenciar.
— Ninguém?
Se sentiu menosprezado, esmagado pelo olhar alheio, pela comparação constante.
Mas no fim.
A ausência… é só ausência.
Foi o instante em que perdeu o xadrez.
Não o tabuleiro, não a partida, mas a disputa invisível que se trava entre egos.
Um movimento mal calculado, uma fração de segundo em que o olhar vacilou, e a peça movida não respondeu apenas à lógica, mas à vaidade.
— Frostflammenlicht…!
De súbito, o vazio se rasgou em ondas de energia colorida.
Não eram meros reflexos — eram trilhões de cores, o espectro primordial, a matéria bruta ardendo em combustão paradoxal.
— Aurorasstrahlen!
O impacto foi total. A luz não iluminava, devorava. Não criava, desfigurava. Cada cor era um cântico invertido, como se Eru Ilúvatar tivesse sido forçado a cantar ao contrário, desfazendo o que outrora foi.
A realidade se dissolveu em cascatas cromáticas, o frio derretia — mas não para gerar vida, e sim para apagar cada grão do real.
Noctherr tentou recuar, mas seus pés estavam cravados em blocos de gelo, grilhões invisíveis que o mantinham.
— …Merda… — foi a última palavra antes do clarão engolir tudo.
E então, nada.
Um silêncio cósmico.
Uma tapeçaria em frangalhos.
Diante da aniquilação total, só restava a face serena da sombra, contemplando o que restara do seu domínio: uma existência despedaçada, feito cinzas de conceitos.
Seu adversário, o imparável, já não passava de uma fagulha, um resto de energia oscilante.
— Você… é insistente, hein? — murmurou, apertando o último fragmento de sua essência entre os dedos — Insistente… e orgulhoso.
Mas então viu.
Do horizonte em ruínas, algo rastejava de volta ao ser. A salamandra, sua essência, contorcendo-se, reconfigurando-se. A cabeça achatada se erguia, alongando-se em fios negros.
As patas se torciam em braços, em pés, em mãos humanas… cinco dedos viscosos, cobertos de gosma nauseante.
Como um aborto que se recusa ao nada, renascia deformado, retornando ao estado adulto.
Noctherr estava de volta.
— E você… acabou de demonstrar aquilo que escondia… — Como se sua voz viesse das entranhas do cosmos.
Acima deles, o céu rachava em mil veias luminosos.
A pressão do golpe reverberava por todo o mundo, abalando conceitos, dilacerando estruturas, ecoando até as margens de dimensões inomináveis.
Revelando-se enfim a verdadeira aparência do andar.
Estavam em um deserto de neve sem horizontes, um vazio branco que se estendia além do olhar.
Apenas o silêncio do vento cortante.
— Devo te dar os parabéns… — o corpo mutilado arrastava-se até erguer-se outra vez.
Ele se aproximou, lentamente, como uma sentença inevitável.
E quando sua mão alcançou o peito do oponente, tocou-o apenas com a ponta dos dedos… um gesto quase íntimo, mas tão letal quanto a lâmina mais afiada.
— …Se não tivesse ligado sua vida a esses dois movimentos… teria me parado! — sua voz tornou-se um sussurro, porém mais ameaçador que qualquer grito — Mas apostou mal achando que eu… cairia em mais uma prisão.
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