Capítulo 44 - É você
E assim que nega.
O cubo vibra em um estalo, abrindo-se em dobras geométricas, e a luz que se derrama dele revela o semblante surpreso de Asael.
O guardião, que já ensaiava virar as costas há horas, interrompe a própria partida, com as sobrancelhas arqueadas.
Só não xingou porque isso é coisa de brasileiro.
— Sério? Você conseguiu tão rápido?
Inocente, a criança…
Cael, no entanto, apenas deu um sorriso torto.
— Hehe! — os olhos, inquietos, confessaram antes que a boca pudesse mentir — Não!
— Hã? — recuou meio passo, tentando decifrar.
— Eu… — a palavra morreu na garganta, pesada.
Mas a percepção do guardião foi mais afiada que a tentativa.
A palma bateu contra o próprio rosto, outro estalo ecoando entre eles.
— Você e seu Eco não fluem em concordância…
— É… — suspirou, deixando os ombros desabar — É um vigarista, minha…
Ele fez de novo… uma máquina de erros.
— Sua?
— Parte que quer se dar bem acima de tudo… Sei lá — os dedos apertaram o colarinho, como se tentasse sufocar algo de dentro — Me sinto um merda por ceder às vontades dela… entende?
— Ora… você tem senso de justiça e moral. Não é só um vagabundo…
Franziu o cenho, mas não havia desprezo em sua voz.
Isso ele havia deixado há tempos.
— Olha o ismo! — o encarou, emburrado, inflando as bochechas de leve, como uma criança contrariada.
— Do que tá falando!?
— Esse seu jeito meio preconceituoso de falar de mim, oh! — cruzou os braços, pousando as mãos firmes na cintura — Então… como será? Agora que não vou com a cara desse cara… de mim…
Asael ergueu o queixo.
— Você se fode!
O peso daquelas palavras caiu denso, rasgando o ar. O silêncio logo após era quase físico.
Ele respirou fundo, a expressão endurecida.
— Querendo ou não, terá que estar de acordo com ele… Não há como negar que é parte de você — os olhos dele severos mas carregados de uma espécie de compaixão, não se desviaram — É sobre aceitar seus defeitos. Sua vigarice é a parte que você menos tolera… mas é sua!
— E não posso negá-la?
— Como poder? Não! — Ergueu o indicador, categórico — Como ideia para seus atos? Sim! — então, ergueu os olhos aos céus, com um suspiro, forçando o outro a revirar os próprios — Você não vai resistir muito sendo um cara forçadamente bom!
— Forçadamente? — repetiu, ofendido.
— É, para mim, todos somos ruins até certo nível, porque temos a necessidade de sermos. É instinto, é sobrevivência. Mas isso não nos torna indignos… ou paladinos desse mundo.
O silêncio pairou por um instante, como se a frase precisasse encontrar espaço dentro dele antes de ser digerida.
— Então… também se vê como eu?
— Falho? Às vezes cruel? Com maus hábitos? — Estufou o peito, afirmando cada palavra como uma bandeira hasteada — Sim! Mas… me orgulho de quem sou hoje, e mais ainda de quem serei amanhã!
— Wow… — levou a mão à testa, coçando-a com nervosismo. Era demais estar diante de alguém tão convicto de si, alguém que não escondia os próprios defeitos e, ainda assim, parecia andar em paz com eles — Você é o total oposto de mim…
— Sou? — Arqueou as sobrancelhas, genuinamente curioso.
— É… quantas vezes já não fingi ser um cara legal e… no final, me senti um bosta por dentro? Tantas.
— Isso é nobre… — Deixou escapar, com um olhar que misturava respeito e pena.
Até mesmo pela criatura mais miserável, conseguia sentir respeito.
Havia nele uma estranha reverência pelo simples fato de existir, como se cada ser carregasse em si um peso secreto que merecia ser reconhecido.
Não se deixava limitar pela visão torta e depreciativa que o jovem lançava sobre si — uma visão cheia de rótulos e feridas.
Aos próprios olhos, não passava de um estorvo, um “Zé droguinha” perdido, tropeçando entre vícios de pensamento e derrotas íntimas, como se cada passo fosse acompanhado por uma sombra de vergonha.
Mas, sob o olhar do guardião, havia algo além: um lampejo de valor, mesmo que encoberto pela névoa da autodepreciação.
Mesmo que o tivesse condenado como uma anomalia, a própria anomalia se revelava, em essência, a mais humana e igual das criaturas.
Era o paradoxo: aquilo que parecia deslocado demais para pertencer, era justamente o que mais traduzia o pertencimento.
Talvez…
O pensamento veio como um sopro, frágil demais para se tornar voz.
Ele cogitou dizer, mas o gesto de transformar aquela intuição em palavras parecia impossível.
Não bastava coragem, era necessário um ofício mais refinado: a lapidação da linguagem, coisa para poetas. Ele, no máximo, era um mestre temporário, um guardião de passagem, um condutor entre silêncios.
E havia silêncios que diziam mais que discursos.
— Talvez! — buscou ar, mas parecia que o peito não comportava — Mas a nobreza não constrói segurança, não é?
Eternamente, asmático narrativo.
— Bela fala! — admitiu o guardião, inclinando o queixo com aprovação.
Então caminhou até o cubo, que permanecia no chão.
Ajoelhou-se e o pegou com cuidado.
— Talvez seja verdade… não é que você deva ceder totalmente — ergueu o cubo diante dos olhos, a luz oscilando entre as falas — Mas dominar seus anseios antes que eles te dominem. Porque, mais cedo ou mais tarde, você estará em apuros.
Se aproximou, quase encostando o cubo no peito do outro.
— E, quando esse momento chegar… dependerá só de você — a voz grave, firme — Você mesmo terá que estar resistente a ceder. Estará?
Um silêncio se instalou, e a pergunta ecoou, mais pesada que qualquer acusação.
O jovem engoliu seco. Seus olhos vacilaram, mas havia neles um lampejo que não se deixava apagar.
— Estarei! — sem adornos, sem hesitação forçada. Apenas seco, cru — …É tudo ou nada, não é?
— Tudo ou nada!
Então estendeu a mão e lhe devolveu o cubo.
A intensidade que dele emanava oscilava como um coração hesitante, pulsando entre os dedos até ser tomado pelo outro.
Ele o encarou de perto, a superfície refletindo não apenas o rosto, mas também as rachaduras da alma.
Apertou-o entre os dedos, como se precisasse sentir o peso real daquela promessa.
— O que foi? — notando o gesto um tanto nervoso.
— Ehr… — desviou o olhar, tentando disfarçar a insegurança — Vou usar isso aqui quando tiver certeza do que posso! — e, com um gesto quase cerimonial, guardou-o cubo dentro das vestes, como quem sela um pacto consigo mesmo.
O garoto, a anomalia… estava crescendo.
Não são os erros que te estacionam, mas o peso que lhes dás. Eles tanto podem te afogar quanto te fazer voar.
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