Capítulo 46 - Nada
Ao cair da noite, a cantina estava mergulhada em um comumente silêncio, quebrado apenas pelo rangido das portas e pelo murmúrio distante de alguns poucos soldados dispersos.
O cheiro da lenha queimada misturava-se ao de gordura requentada, e as lamparinas penduradas lançavam sombras oscilantes sobre as paredes úmidas de suor e fumaça.
Algum guardião comia como se fosse um homem… mas o homem, parecia cada vez menos humano.
E falando desse monte de farrapo…
Cael entrou, respirando fundo, como se cada passo lhe arrancasse um peso do corpo.
Os ombros tombaram contra a madeira da mesa mais próxima, denunciando um cansaço que não era só físico.
Encarava, outra vez, mais um dos desafios triviais que para ele sempre tinham gosto de provação.
O verme.
— Sério?
— Você evitou comer pela manhã… — disse o outro, já à mesa, ajeitando o prato e as mãos, pronto para a refeição — Agora precisa de energia.
Que estava oculto pelo grande verme trazido.
Dia de sorte? Ou o grande azar? Difícil dizer. O bicho se contorcia no prato, quase duas vezes maior que os anteriores, a carne mole tremendo como gordura de uk obeso.
Ele suspirou, sentando-se à frente dele, o olhar quase implorando por algo que se assemelhasse a comida de verdade.
O estômago roncava, mas a alma recusava.
Levantou-se de supetão, a cadeira arrastando no chão áspero, e inclinou-se sobre a mesa.
Seus olhos caíram no prato de seu mestre e ali encontrou sua segunda decepção da noite: um monte viscoso, pontilhado por pequenas esferas, semelhantes a ovos de barata prestes a eclodir.
— Que raios é isso?
— Ovo de verme — Asael pegou uma daquelas coisas, pequena como um dente, do formato de um grão de arroz. Atirou na boca sem pestanejar, engolindo com prazer — Menos nutriente… mas eu gosto.
A anomalia arregalou os olhos.
— E ainda come por prazer?
Um sorriso enviesado veio como resposta.
— E você não?
— Hoje? Aqui? Não!
— Mas você não disse que comia o pão que o diabo amassou? — ironizou, mastigando mais uma ova que estourava entre os dentes como uma bolha de fel — Ou estava só se vangloriando da sua miséria?
Isso o fez desviar o olhar, como se buscasse escapar pelo vazio da cantina.
— Mas a comida lá é… comida…
O outro inclinou a cabeça.
— Então isso não é?
As lamparinas tremularam.
— Qual é… — Passou os dedos por cima do bicho, recuando em seguida como se tivesse tocado lama viva — Por que tem que ser tão nojento? Vivo?
— Vivo que ele tem energia suficiente para fazer um guardião ficar de pé! — o mestre respondeu sem abrir espaço para réplica, a mão firme mergulhando no monte viscoso — Sabia que, ao se conectar com a carne, engolindo-a ainda viva, seu corpo aprende a reagir como o dela? Te torna um guerreiro melhor.
Arqueou a sobrancelha, incrédulo.
— Como? Você é formado em educação física? Nutricionismo espiritual, talvez?
— Não! — Ergueu o dedo, como quem dá uma aula — As partículas vivas da meta-carne, feitas de meta-matéria, só repelem energia quando ainda estão em estado vivo. E repelir energia é forçar sua aura a permanecer dentro de você. Seu eco… em êxtase! Isso te fortifica internamente e externamente.
Piscou devagar, tentando processar, revirando os olhos.
— Cacete… Então comer vivo é a melhor opção? Que bizarro.
— Por quê?
Genuinamente curioso, como se não conseguisse conceber outro ponto de vista.
— Tem uma galera chata do meu mundo que acha errado até comer morto!
Gargalhou na hora.
— Humanos… sempre atrás de problemas que não existem, e deixando os que existem sem solução!
Cael inclinou-se, cruzando os braços sobre a mesa, encarando-o.
— Você já foi lá?
Seus olhos brilharam com um lampejo enigmático, como se aquela pergunta tivesse cutucado mais do que devia.
— Não! — respondeu firme — Mas… vejo como vocês agem aqui na simulação. E o que desejam, no fundo, é sempre humano… uma vida farta, rotina, pessoas… até o fracasso — fez uma pausa, olhando para o prato como se buscasse palavras dentro dele — Não percebem que viver é buscar estar bem consigo mesmos.
Suspirou, pela primeira vez sem ironia, a voz quase embargada.
— É isso…
O jovem ficou em silêncio, o olhar perdido.
— É… inegável isso… somos ingratos.
— Não diria ingratos… mas paranoicos. Sempre em guerra contra fantasmas que vocês mesmos criam.
Ergueu os olhos de novo, e um sorriso breve lhe escapou.
Falaria mais ou ouviria…
Mas Ananit os interrompeu.
A porta rangeu e ela entrou, o corpo se movendo com uma graça quase ensaiada, embora carregada de certa insolência.
Aproximou-se e os encarou com um sorriso convencido, como se já fosse dona do espaço.
— Asael fora do turno?
— Eu… me retirei por hoje — respondeu, sem sequer mascarar o desdém no olhar, embora soubesse que deveria — Agora que você está no comando, tenho menos fé nas decisões.
— Cachorrinha do Elyah! — retrucou de imediato, mostrando a língua num gesto infantil, mas carregado de veneno. Sentou-se ao lado dele com a confiança de quem se sabe intocável — Sorte sua que não é com você… mas com a anomalia aqui na minha frente…
Ele sentiu o peso daquelas palavras o esmagando como uma espinha.
— Fale…
Firme, mas o timbre de sua própria voz lhe pareceu estranho, atraente de uma forma que não era comum.
Ananit se inclinou levemente, os olhos faiscando entre zombaria e desejo de provocar.
Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, como se estivesse à beira de um abismo.
— N… a… d… a! — Sussurrou, saboreando cada letra, antes de soltar uma risadinha debochada.
— Sério?
O guardião não levantou o olhar, focado em terminar sua alimentação, os dentes triturando as ovas viscosas como se não fossem nada.
— Sério… — respondeu afinal, jogando o corpo para trás, os pés subindo à mesa num gesto desrespeitoso. Cruzou os braços — Eu só… queria encher o saco!
As lamparinas vacilaram com a corrente de ar que passou pela porta.
— Isso aqui… — continuou, quase cuspindo as palavras — é péssimo, meninos…
— O que fez de tão péssimo?
A guardiã deixou a cabeça pender para o lado, como quem pesa as próprias palavras, mas logo riu sozinha, um riso oco.
— Nada! Hehe… — suspirou, arrastando a última sílaba com um tédio impossível de um café desvincular — E isso… é um completo saco!
Encostou a nuca no encosto da cadeira, olhando o teto, como se o vazio acima fosse mais interessante que qualquer conversa.
— Caramba… até os guardiões têm frustrações… — murmurou, com um sorriso curto, sem saber se ria ou se lamentava.
A anomalia já havia visto de tudo.
Mas presenciar um guardião, ser forjado para a guerra, para a força inabalável, confessando seu próprio tédio e fraqueza… isso era novo.
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