Cael acabou por ceder ao cansaço e caiu no sono, o peito subindo e descendo devagar, como se todo o peso que carregava tivesse se dissolvido por um instante.

    O salão ficou em silêncio, quase desconfortável, quebrado apenas pelo som irregular da respiração dele.

    Os dois permaneceram ali por longos minutos, talvez horas, ninguém sabia dizer. O ar parecia suspenso, cheio de coisas não ditas, até que Ananit decidiu, enfim, levantar a voz.

    — Eu…

    — Vai mandar ele de volta? — cortou-a no meio da palavra, a lâmina da voz atingindo antes que pudesse erguer qualquer defesa.

    O som quebrou o ar estático como vidro, espalhando estilhaços ao redor.

    — Como…? — ergueu os olhos devagar, surpresa pelo tom. Ou talvez apenas fingisse bem demais; o olhar era sereno, mas algo vibrava ali, oculto.

    Ananit deu um riso breve… seco, meio amargo, que morreu antes de alcançar os olhos. Um som curto demais para ser conforto e longo demais para ser só deboche.

    — Assim me deixa sem graça…

    Agora mentiu com força.

    — Ninguém iria me procurar para saber se estou bem ou não… — comentou, balançando a mão no ar, ele mesmo afastando a própria importância; não por drama, mas por um certo fatalismo — Mas já? — ergueu as sobrancelhas, deixando escapar um fiapo de surpresa — Achei que, ao menos, iriam esperar meu aval…

    Seu aval?

    Hm…

    Ele está mesmo imerso nisso…

    Será? Será que mudou um pouco por causa dele?

    — E então? — dedilhou a madeira com impaciência, preenchendo o espaço — saia da sua mente e diga, como teu eco, a verdade!

    — Daqui a algumas semanas… — a voz dela saiu hesitante, um sussurro que parecia temer ser ouvido, quase fugindo antes de alcançar o ar.

    — Por quê? Não estamos em guerra? — sua mão estava pesada o suficiente para quase rachar a madeira velha, a mesma que nunca cedeu a nada, nem ao tempo — Por que vão dispensar ele? Você não estava gostando?

    Ela desviou o olhar, mordendo o lábio inferior, quase envergonhada de admitir.

    — Estava… estou! — suspirou fundo, como quem carrega algo que não pode explicar — É que… Elyah estava ignorando, mas o julgamento foi refeito. Elohim mandou ele para a Terra… para treinar lá.

    — Com terrestres? — arregalou os olhos, um riso nervoso escapando antes que pudesse contê-lo — Sério? Elohim? Certeza que isso foi decisão do conselho… só pode!

    — Tem preconceito? — Rebateu, lançando-lhe um olhar de canto, afiado como lâmina.

    — Não… — desviou o olhar para o teto, como se as respostas estivessem escondidas entre as sombras — … é que ninguém lá tem força suficiente para fazê-lo um guerreiro de verdade

    — Mas guerreiros não nascem de tempos difíceis?

    — Não! — Rebateu com força, fechando os olhos e balançando a cabeça, como quem quer afastar um pensamento perigoso — Disciplina e tática não se ensinam em meio a guerra e desespero… quantos guardiões terrestres ascenderam ao cargo? Nenhum!

    — Argumento fraco! — riu, sem qualquer medo de parecer tola — O que garante que ele não seja… uma anomalia?

    — Raio? Duas vezes? — Cobriu o rosto com a mão, suspirando com frustração — E… você está disposta a jogar tão alto assim?

    — Eu? Você está me dando tanta importância… — Apoiou as mãos nos próprios ombros e sorriu boba, quase teatral — Sou tão incrível assim? Hihi…

    — Não incrível… — Estalou a língua com desdém leve — mas terrivelmente manipuladora, igual a uma serpente.

    — Uma serpente aficionada em um humano?

    — Guardiões não têm prazeres e desejos comuns… — enfim se levantou, a voz já sem o peso de antes — Bem, se não posso mudar nada… vou tentar fazer ele aprender tudo antes de ir. Tá?

    O clima morreu ali. E, junto com ele, o calor da discussão também se dissipou, deixando no ar apenas um silêncio estranho.

    — Ah…

    — Que foi? — Ergueu o olhar, desconfiado, mas sem hostilidade.

    Era estranho vê-la daquele jeito.

    Afinal… quando animais frios chegavam ao tédio? Quando criaturas feitas de puro cálculo e veneno paravam para bocejar diante do mundo?

    Nunca!

    — Nada… — respondeu, pousando os dedos sobre a mesa; sentiu um fio de eletricidade correr pela pele, breve demais para ser susto, forte o suficiente para arrepiar — …Você é mais interessante do que parece… hm…

    — Não! Não sou! — disparou, a voz ecoando um pouco mais do que deveria.

    E deixou o lugar. Os últimos pés a se afastarem naquela noite, sumindo entre sombras e frio.

    Dizem que, depois, houve sussurros ao redor… lábios sedutores roçando o silêncio das redondezas.

    Mas só boatos.

    Terminava mais uma noite.

    Bem, nem todos iriam dormir ou seduzir corpos adormecidos. O velho… Hayashan Beyoter ainda caminhava pelas terras vazias sem ao menos bocejar, deixando atrás de si um rastro de caos sem nem ao menos suar.

    Sombras reduzidas a pedaços. Não eram duas, nem dez… eram centenas de milhares de manifestações, despedaçadas e lançadas para além — rasgadas do próprio tecido em que existiam.

    Se fosse brasileiro, estaria sem aposentadoria.

    Suspirou, firme, tão fundo que fez as veias saltarem no pescoço e nas têmporas.

    Que estranho…

    Pensou ao erguer os olhos para o horizonte, algo lá longe chamando mais atenção do que deveria, como um convite silencioso e incômodo.

    Não disse mais nada.

    Mas viu, com um estrondo, o horizonte ser tragado por uma escuridão infindável. Atrás de si, as sombras que antes caminhavam foram desfeitas em pó.

    Tudo aconteceu rápido demais…

    Mal teve tempo de entender o rompante de caos que o atingiu: um corte violento rasgou-lhe a perna, dilacerando-a e espalhando sangue quente pelo chão.

    Tão fervente que chegava a queimar, igual a chama em álcool derramado pelo chão.

    Eu pretendia matá-lo… A voz ecoou em todos os cantos, firme, estafada, mas onipresente.

    Ele, no entanto, não se abalou.

    — Na perna? — Cuspiu — Pela voz, é jovem… e pela forma como fala e se afirma, é precoce e burro! — riu — Mas admiro sua habilidade em me enganar…

    Desviou dos próximos quatro golpes, vindo de todas as direções ao mesmo tempo.

    Saltou para cima, rápido, e freou o avanço ao alcançar a copa de uma árvore, galhos estalando sob seus pés antes de silenciarem.

    — Velho maldito!

    Dali, ele via tentáculos negros tomando todo o horizonte, desde as planícies gélidas até a selva dos ladrões de amores.

    Sim, esse era o nome brega mesmo.

    — E estou errado?

    O olhar dele se conteve no instante em que falou… e, dos tentáculos, começou a surgir um rosto — denso, viscoso, como águas de esgoto misturadas a óleo velho.

    — Ahn? — escapou, mais reflexo do que pergunta.

    Mas, em vez de se revelar por completo, a coisa se moveu: um dos tentáculos disparou, líquido que se enrijeceu no ar, convertendo-se num golpe perfurante que veio direto contra seu braço.

    Era uma cilada, Bino.

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