Capítulo 5 - Eco
Foram levados ao setor dele num estalar de dedos. Literalmente.
Os dois despencaram no meio de uma via movimentada e quase foram convertidos em patê sob as rodas de uma carroça flutuante — ou de algo que claramente tinha assistido “De Volta pro Futuro” demais e resolveu se passar por uma. Ao redor, figuras com mantos helênicos cruzavam apressadas, como se tivessem escapado de um museu temático da Grécia Antiga e estivessem atrasadas pro “TED Talk” de Sócrates.
E, claro, como sempre, o bug no GPS interdimensional deu ruim.
— Cacete… avisa antes de fazer essa porra! — ele resmungou, ainda tentando lembrar como era respirar. Do lado, o outro sacudia a roupa como um turista que caiu na poça errada.
Nada heróico desta vez.
— Poderíamos, sei lá… chegar na MESMA altura pelo menos? — continuou, encarando o chão como se ele fosse culpado. — Não tô criticando seu portal, mas… tô criticando sim.
— Hm… insolente! — Eliyah respondeu, inflando o peito como um pavão.
— Mas aí, onde é que a gente tá, seu maluco?
— No meu setor! O Oitavo! — anunciou, com a empáfia de quem acha que desenhou o mapa do lugar enquanto equilibrava o multiverso num prato de porcelana. — Sabe como chegamos aqui?
— Ehr… não? — Franzindo o cenho, já se preparando pra mais um monólogo metafísico nível “assista duas vezes pra entender”.
— Atalho! Uma falha. Sabia que foi por isso que eu escolhi o oitavo setor?
Silêncio.
Mais silêncio.
O tipo de silêncio que grita: “Explica, porra.”
— Porque falhas são rotas naturais de acesso. Brechas. Fendas. As cicatrizes no tecido da realidade. Todo mundo evita. Eu? Eu fiz delas minha porta da frente! Demorei só duzentos e três anos para desbravar e alinhar cada rota! — Com o entusiasmo de quem acha que isso é algo absolutamente normal de se dizer.
— Duzentos e… o quê?
— É. Não foi fácil. Um vórtex temporal quase me engoliu uma vez. Fiquei preso num loop onde eu só conseguia dizer a palavra “chá”. Oitenta e sete anos nisso. Depois melhorou…
O outro só piscou, o cérebro tentando não travar com o excesso de misticismo poético gratuito.
— Tu é tipo um encanador espiritual ou um decorador de glitch?
Eliyah sorriu. Ou pelo menos fez algo que tentou ser um sorriso. Parecia mais uma ameaça em formato de expressão facial.
— Eu? Ehr… só tenho fadiga para andar, voar… etc…
O jovem o encarou com um misto de desconfiança e pena. Aquela pena que a gente sente por um pombo mancando no centro da cidade.
— Que? Escolheu por preguiça?
— Exatamente! — respondeu, com orgulho de causa, como se tivesse acabado de anunciar uma nova filosofia de vida. — Mas é uma preguiça com vocação pro caos. Melhor combo que existe!
Falou aquilo com o brilho nos olhos típico de quem vendeu milagre em cápsula no programa da tarde.
O outro devolveu o olhar com o ceticismo de quem já assinou curso de enriquecimento rápido e terminou vendendo tupperware na esquina.
— Vocação pro caos, né… — resmungou. — Tô começando a entender por que o universo virou essa bagunça interdimensional.
— Não me responsabilizo por efeitos colaterais da genialidade! — rebateu, abrindo os braços como quem anuncia uma ópera…
Cael só bufou. Já tinha aceitado que o “normal” tinha ficado lá atrás. Tipo… três planos de existência atrás.
— Sei não… cê tá me parecendo o Zeca Urubu.
— Zeca? Urubu?
— Aquele desenho… — estreitou os olhos. — Aliás, como é que tu fala português, hein? Loirinho, cara de europeu…
— Como? Aqui ninguém fala nada. Todo mundo entende todo mundo. É a língua da alma — Deu de ombros, como se isso fosse mais óbvio que respirar. — Quase um mundo perfeito, né?
— Quase. Se não tivesse tarefa nenhuma, talvez.
Enquanto conversavam, houve uma pausa e, finalmente, reparou melhor no ambiente. A cidade parecia um RPG medieval em carne e osso: bancas de frutas, tecidos pendurados como bandeiras de clã, moedas de ouro tilintando no ar. Gente demais fingindo que a eternidade fazia algum sentido.
— E esse lugar, hein? Parou no tempo?
— Digamos que o Senhor esqueceu de atualizar o servidor — pegando uma maçã de uma banca sem nem fingir que ia pagar. O comerciante chiou, mas não passou disso. — O Intermédio travou na Idade Média. Mas aqui nada é realmente nosso. Dinheiro? Teatro. Trabalho? Disfarce. A galera morre e precisa ocupar o tempo com alguma coisa. Tem gente aqui que morreu há dez mil anos e ainda finge que tá viva. Estudam, negociam, montam lojinha… tudo pra inventar sentido até a alma evaporar.
— E isso leva quanto tempo?
— Uns cinquenta, cem mil anos. Às vezes mais.
— Puta que pariu. Morrer é uma desgraça mesmo… cê rala oitenta anos e ainda ganha de brinde um estágio de cem mil?
— Não tem inferno, se é isso que quer saber. Aqui é tudo neutro. Morreu, caiu aqui. Seja Hitler ou Gandhi!
— Que decepção…
Foi quase humilhante ouvir isso vindo do rapaz.
— Aí… aí…
Bocejou, com o tédio de quem já recitou aquele discurso mais vezes do que o universo deu voltas.
— Enfim… vamos logo. Tenho que te apresentar quem vai te treinar. E te explicar o resto da merda.
— Que? Não é você?
— Eu? Tá maluco? — caiu na risada. — Eu sou o chefe dessa bodega! Tu precisa de alguém mais fraco pra te treinar… se for comigo, cacete, te mato sem querer!
— Mais fraco, né…
Já sentindo o presságio de uma furada do tamanho do cosmos.
Dito e feito.
Os dois caminharam até o centro — o coração do setor — bem abaixo da torre que perfurava os céus do plano imaterial. Passaram por um portão que, pelo tamanho, devia pesar toneladas… e deram de cara com uma imensa área de terra batida, ideal pra treinos.
Ou para execuções públicas.
Difícil dizer.
— Agora fudeu!
Ele deu de cara — literalmente — com uma figura que parecia ter saído direto de um pesadelo com disciplina militar. Um brutamontes careca, rosto fechado, envolto num manto branco com o símbolo do infinito estampado no peito.
O tipo que você não quer encontrar num beco escuro…
— Esse é Asael Dagan, um dos novos guardiões da Muralha Interna, recém-promovido! — o anunciou, batendo no peito do homem como se estivesse testando a porta de um cofre blindado. O brutamontes apenas sorriu de canto com a calma de quem quebra os ossos de um infeliz antes do café da manhã.
E Cael? Torcia para não ser quem iria sofrer na mão dele.
— Você, grandalhão, vai treinar este ser… torná-lo capaz… para que um superior seu continue o treinamento! Certo?
— Sim, senhor…
Era de poucas palavras.
— Se apresenta, vai… vamos dar uma de civilizados — incentivou-o, como quem apresenta gladiadores antes do espetáculo.
— Ehr… sou Asael.
— E aí, cara. Sou o Cael, anomalia pra vocês… — tentou disfarçar a gaguejada com um sorriso torto. Mas sabia muito bem compensar a vergonha com cara de pau. — Cacete… quantos anos você tem, hein?
— Quarenta e cinco.
Aquilo soou estranho. O cara tinha cara.
Mais velho? E menos forte? Hmm…
— E você, loirinho?
O tom debochado fez o grandalhão arquear a sobrancelha.
Ele chamou meu senhor de “loirinho”?
O pensamento foi mais incômodo que um chute nas bolas. Quem esse moleque pensa que é?
— Vinte e um. Por quê?
— E como diabos tu é mais forte que ele? — piscou, genuinamente confuso, como quem acabou de encontrar mais um bug no sistema… além dele mesmo.
— Porque o meu Eco me permite renascer sempre que eu quiser — Rindo com um leve constrangimento. — Quando aparece uma ruga… reseto minha força fênix! Já fiz isso umas mil vezes. Só é chato os primeiros dez anos… adolescência… ehr…
Cacete… esse cara é bizarro mesmo…
Quando seus olhos varreram pros lados, deu de cara com o outro — que agora o encarava com expressão fechada.
Cara de cu…
— Eco disso, Eco daquilo… que porcaria é essa?
— Bem… o Eco é… — coçou o queixo, sem muita pressa. — Explica aí, querido… — bocejou, largando a batata quente.
O loirinho fez menção de responder, mas já passou a bola como quem diz “essa eu não vou chutar.”
— Eco é a expressão da alma — respondeu Asael, com postura firme, olhando pro alto como se recitasse um juramento antigo. — A encarnação da sua determinação. Todos os guardiões, sombras ou deuses possuem um. São manifestações da alma humana. Graças a eles… existimos!
— E eu tenho um desses como? Eu sou humano, pô!
— Aí é que tá… tu era — disse Eliyah, animado como um professor explicando um paradoxo impossível de digerir numa aula só. — Você era humano. Mas agora? Agora você não é nem totalmente físico, nem totalmente espiritual. Virou um ser híbrido. Meio carne, meio alma. E isso te torna… especial.
— Uma anomalia — completou, meio em choque… meio convencido.
— Exatamente! — sorriu. — Enfim… Asael vai te ajudar a despertar o seu Eco, entender ele, usar… e moldar a forma da sua expressão. Treinamento, técnicas… essas paradas mais técnicas, sabe?
O jovem respirou fundo.
Treinamento com um armário de dois metros? Que beleza!
E então, ao se virar pra ele, lá estava Asael: de braços cruzados, firme como uma montanha.
Exalava testosterona.
— Vou te ensinar a ter disciplina… e a usar seu Eco para o bem. Mas primeiro…
Uma aura vermelha começou a pulsar ao redor do brutamontes, como uma fogueira prestes a explodir.
— Diga-me… qual é a sua determinação!?
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