Foram levados ao setor dele num estalar de dedos. Literalmente.

    Os dois despencaram no meio de uma via movimentada e quase foram convertidos em patê sob as rodas de uma carroça flutuante — ou de algo que claramente tinha assistido “De Volta pro Futuro” demais e resolveu se passar por uma. Ao redor, figuras com mantos helênicos cruzavam apressadas, como se tivessem escapado de um museu temático da Grécia Antiga e estivessem atrasadas pro “TED Talk” de Sócrates.

    E, claro, como sempre, o bug no GPS interdimensional deu ruim.

    — Cacete… avisa antes de fazer essa porra! — ele resmungou, ainda tentando lembrar como era respirar. Do lado, o outro sacudia a roupa como um turista que caiu na poça errada.

    Nada heróico desta vez.

    — Poderíamos, sei lá… chegar na MESMA altura pelo menos? — continuou, encarando o chão como se ele fosse culpado. — Não tô criticando seu portal, mas… tô criticando sim.

    — Hm… insolente! — Eliyah respondeu, inflando o peito como um pavão.

    — Mas aí, onde é que a gente tá, seu maluco?

    — No meu setor! O Oitavo! — anunciou, com a empáfia de quem acha que desenhou o mapa do lugar enquanto equilibrava o multiverso num prato de porcelana. — Sabe como chegamos aqui?

    — Ehr… não? — Franzindo o cenho, já se preparando pra mais um monólogo metafísico nível “assista duas vezes pra entender”.

    — Atalho! Uma falha. Sabia que foi por isso que eu escolhi o oitavo setor?

    Silêncio.

    Mais silêncio.

    O tipo de silêncio que grita: “Explica, porra.”

    — Porque falhas são rotas naturais de acesso. Brechas. Fendas. As cicatrizes no tecido da realidade. Todo mundo evita. Eu? Eu fiz delas minha porta da frente! Demorei só duzentos e três anos para desbravar e alinhar cada rota! — Com o entusiasmo de quem acha que isso é algo absolutamente normal de se dizer.

    — Duzentos e… o quê?

    — É. Não foi fácil. Um vórtex temporal quase me engoliu uma vez. Fiquei preso num loop onde eu só conseguia dizer a palavra “chá”. Oitenta e sete anos nisso. Depois melhorou…

    O outro só piscou, o cérebro tentando não travar com o excesso de misticismo poético gratuito.

    — Tu é tipo um encanador espiritual ou um decorador de glitch?

    Eliyah sorriu. Ou pelo menos fez algo que tentou ser um sorriso. Parecia mais uma ameaça em formato de expressão facial.

    — Eu? Ehr… só tenho fadiga para andar, voar… etc…

    O jovem o encarou com um misto de desconfiança e pena. Aquela pena que a gente sente por um pombo mancando no centro da cidade.

    — Que? Escolheu por preguiça?

    — Exatamente! — respondeu, com orgulho de causa, como se tivesse acabado de anunciar uma nova filosofia de vida. — Mas é uma preguiça com vocação pro caos. Melhor combo que existe!

    Falou aquilo com o brilho nos olhos típico de quem vendeu milagre em cápsula no programa da tarde.

    O outro devolveu o olhar com o ceticismo de quem já assinou curso de enriquecimento rápido e terminou vendendo tupperware na esquina.

    — Vocação pro caos, né… — resmungou. — Tô começando a entender por que o universo virou essa bagunça interdimensional.

    — Não me responsabilizo por efeitos colaterais da genialidade! — rebateu, abrindo os braços como quem anuncia uma ópera…

    Cael só bufou. Já tinha aceitado que o “normal” tinha ficado lá atrás. Tipo… três planos de existência atrás.

    — Sei não… cê tá me parecendo o Zeca Urubu.

    — Zeca? Urubu?

    — Aquele desenho… — estreitou os olhos. — Aliás, como é que tu fala português, hein? Loirinho, cara de europeu…

    — Como? Aqui ninguém fala nada. Todo mundo entende todo mundo. É a língua da alma — Deu de ombros, como se isso fosse mais óbvio que respirar. — Quase um mundo perfeito, né?

    — Quase. Se não tivesse tarefa nenhuma, talvez.

    Enquanto conversavam, houve uma pausa e, finalmente, reparou melhor no ambiente. A cidade parecia um RPG medieval em carne e osso: bancas de frutas, tecidos pendurados como bandeiras de clã, moedas de ouro tilintando no ar. Gente demais fingindo que a eternidade fazia algum sentido.

    — E esse lugar, hein? Parou no tempo?

    — Digamos que o Senhor esqueceu de atualizar o servidor — pegando uma maçã de uma banca sem nem fingir que ia pagar. O comerciante chiou, mas não passou disso. — O Intermédio travou na Idade Média. Mas aqui nada é realmente nosso. Dinheiro? Teatro. Trabalho? Disfarce. A galera morre e precisa ocupar o tempo com alguma coisa. Tem gente aqui que morreu há dez mil anos e ainda finge que tá viva. Estudam, negociam, montam lojinha… tudo pra inventar sentido até a alma evaporar.

    — E isso leva quanto tempo?

    — Uns cinquenta, cem mil anos. Às vezes mais.

    — Puta que pariu. Morrer é uma desgraça mesmo… cê rala oitenta anos e ainda ganha de brinde um estágio de cem mil?

    — Não tem inferno, se é isso que quer saber. Aqui é tudo neutro. Morreu, caiu aqui. Seja Hitler ou Gandhi!

    — Que decepção…

    Foi quase humilhante ouvir isso vindo do rapaz.

    — Aí… aí…

    Bocejou, com o tédio de quem já recitou aquele discurso mais vezes do que o universo deu voltas.

    — Enfim… vamos logo. Tenho que te apresentar quem vai te treinar. E te explicar o resto da merda.

    — Que? Não é você?

    — Eu? Tá maluco? — caiu na risada. — Eu sou o chefe dessa bodega! Tu precisa de alguém mais fraco pra te treinar… se for comigo, cacete, te mato sem querer!

    — Mais fraco, né…

    Já sentindo o presságio de uma furada do tamanho do cosmos.

    Dito e feito.

    Os dois caminharam até o centro — o coração do setor — bem abaixo da torre que perfurava os céus do plano imaterial. Passaram por um portão que, pelo tamanho, devia pesar toneladas… e deram de cara com uma imensa área de terra batida, ideal pra treinos.

    Ou para execuções públicas.

    Difícil dizer.

    — Agora fudeu!

    Ele deu de cara — literalmente — com uma figura que parecia ter saído direto de um pesadelo com disciplina militar. Um brutamontes careca, rosto fechado, envolto num manto branco com o símbolo do infinito estampado no peito.

    O tipo que você não quer encontrar num beco escuro…

    — Esse é Asael Dagan, um dos novos guardiões da Muralha Interna, recém-promovido! — o anunciou, batendo no peito do homem como se estivesse testando a porta de um cofre blindado. O brutamontes apenas sorriu de canto com a calma de quem quebra os ossos de um infeliz antes do café da manhã.

    E Cael? Torcia para não ser quem iria sofrer na mão dele.

    — Você, grandalhão, vai treinar este ser… torná-lo capaz… para que um superior seu continue o treinamento! Certo?

    — Sim, senhor…

    Era de poucas palavras.

    — Se apresenta, vai… vamos dar uma de civilizados — incentivou-o, como quem apresenta gladiadores antes do espetáculo.

    — Ehr… sou Asael.

    — E aí, cara. Sou o Cael, anomalia pra vocês… — tentou disfarçar a gaguejada com um sorriso torto. Mas sabia muito bem compensar a vergonha com cara de pau. — Cacete… quantos anos você tem, hein?

    — Quarenta e cinco.

    Aquilo soou estranho. O cara tinha cara.

    Mais velho? E menos forte? Hmm…

    — E você, loirinho?

    O tom debochado fez o grandalhão arquear a sobrancelha.

    Ele chamou meu senhor de “loirinho”?

    O pensamento foi mais incômodo que um chute nas bolas. Quem esse moleque pensa que é?

    — Vinte e um. Por quê?

    — E como diabos tu é mais forte que ele? — piscou, genuinamente confuso, como quem acabou de encontrar mais um bug no sistema… além dele mesmo.

    — Porque o meu Eco me permite renascer sempre que eu quiser — Rindo com um leve constrangimento. — Quando aparece uma ruga… reseto minha força fênix! Já fiz isso umas mil vezes. Só é chato os primeiros dez anos… adolescência… ehr…

    Cacete… esse cara é bizarro mesmo…

    Quando seus olhos varreram pros lados, deu de cara com o outro — que agora o encarava com expressão fechada.

    Cara de cu…

    — Eco disso, Eco daquilo… que porcaria é essa?

    — Bem… o Eco é… — coçou o queixo, sem muita pressa. — Explica aí, querido… — bocejou, largando a batata quente.

    O loirinho fez menção de responder, mas já passou a bola como quem diz “essa eu não vou chutar.”

    — Eco é a expressão da alma — respondeu Asael, com postura firme, olhando pro alto como se recitasse um juramento antigo. — A encarnação da sua determinação. Todos os guardiões, sombras ou deuses possuem um. São manifestações da alma humana. Graças a eles… existimos!

    — E eu tenho um desses como? Eu sou humano, pô!

    — Aí é que tá… tu era — disse Eliyah, animado como um professor explicando um paradoxo impossível de digerir numa aula só. — Você era humano. Mas agora? Agora você não é nem totalmente físico, nem totalmente espiritual. Virou um ser híbrido. Meio carne, meio alma. E isso te torna… especial.

    — Uma anomalia — completou, meio em choque… meio convencido.

    — Exatamente! — sorriu. — Enfim… Asael vai te ajudar a despertar o seu Eco, entender ele, usar… e moldar a forma da sua expressão. Treinamento, técnicas… essas paradas mais técnicas, sabe?

    O jovem respirou fundo.

    Treinamento com um armário de dois metros? Que beleza!

    E então, ao se virar pra ele, lá estava Asael: de braços cruzados, firme como uma montanha.

    Exalava testosterona.

    — Vou te ensinar a ter disciplina… e a usar seu Eco para o bem. Mas primeiro…

    Uma aura vermelha começou a pulsar ao redor do brutamontes, como uma fogueira prestes a explodir.

    — Diga-me… qual é a sua determinação!?

    ÚLTIMO CAPÍTULO ESCRITO AQUI!

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (4 votos)

    Nota