— Entendo…

    Foi a primeira mentira em muito tempo. Uma pequena morte dentro do peito, vertendo o sangue espiritual em direção a uma verdade que nunca existiu.

    — Certo… e isso te convenceu?

    — Sim…

    — Sério?

    A mão encontra o próprio rosto num gesto desesperado.

    — Você? Se conformando?

    — Ué…

    O corpo se dobra, senta-se. Inerte. Os olhos descendo até os próprios pés dentro de tênis gastos.

    — Não posso?

    — Deve!

    — Hm… ai…

    Os pés balançam no vazio.

    — Não tem um tênis aqui não?

    Asael ergue o pé. A pele nua encontra o ar. Estava descalço há eras.

    — Pisar no chão é uma dádiva… jura que não percebeu?

    — Sei lá… — o fio de voz foge — acho que é falta de educação… reparar nos pés…

    — E onde não é?

    — É…

    — E onde? Não…?

    — Ah, sério?

    — Sei lá… só tento entender a métrica humana. Algumas regras de vocês são tão…

    — Causais?

    — Não sei se é a palavra… talvez… inúteis.

    — Ah… não sei.

    O suspiro transborda.

    — Só sigo o que me ensinaram… e vocês também não ficam muito atrás.

    — Não…

    — Merda!

    A risada dele sobe suave, unhas coçando o próprio ombro.

    — O que te irritou, hein?

    — Isso. Você.

    Assoma o toque aos próprios lábios, secos pelo excesso de ar

    — Parece não negar nada… ou não ter ego pra isso…

    — Ego eu tenho!

    O estalo da resposta corta o ambiente.

    — Mas… o que é ego?

    A respiração dele falha por um segundo.

    — Hum?

    — É a natureza rebelde da alma? O reflexo metafísico? Nosso… eco?

    — Talvez… ou só… necessidade de, sei lá, ser do contra.

    — É isso que ele é pra você?

    — Não, tipo…

    Os olhos se perdem no alto, tentando pescar uma resposta no céu.

    — Tipo… eu sou um cara foda… ou um rato? Sou foda, vai. Então, se quero me provar, devo ter um ego enorme.

    — Respeito?

    — Isso…

    — Ele é qualitativo ou quantitativo?

    O ar prende no meio da garganta.

    — Como assim?

    — Vale mais a qualidade desse respeito, se é admiração ou temor, ou a quantidade dele?

    — Quantidade… funciona mais se for… Temor!

    — Por quê?

    A pupila treme. Algo se move dentro.

    — É o medo que faz as baratas… nós… estarmos… vivos…

    — Interessante…

    Os dedos estalam; o polegar repousa no centro do anelar curvado, como um selo.

    — Até um deus onisciente pode sentir medo. O medo é… um conceito que transcende a matéria, supera o estado divino, contorna leis, rompe a pré-gênese…

    — Quê?

    — Quero dizer… até o estado absoluto; o medo interfere e permanece.

    — Mas como? Deus sente medo?

    — Deus… Elar. Aquele que criou este mundo. Dizem que se dividiu em três após encarar o que havia além de si. O medo do desconhecido. E, a partir disso, trouxe à existência o mundo térreo, o intermédio e a profundidade.

    — E o topo?

    — Dizem que o topo veio primeiro. Antes do intermédio. Que este mundo é apenas a separação entre o que está abaixo e o que está acima. Mas… tudo não passa de fragmentos do mesmo mito.

    — E por que três?

    — Porque o medo atravessa os três estados do tempo. No passado, ele foi superado; e desse triunfo nasceram os céus… ou o intermédio. A neutralidade, a conformidade.

    Em sua mente, pediu aos ventos que traçassem três rodas.

    A do centro girava; as outras seguiam, presas ao ritmo.

    — No presente, o medo vira experiência. O mundo térreo, o mundo dos vivos.

    A roda de trás permaneceu imóvel.

    — Mas…

    A roda da frente girou até quase se desfazer.

    — No futuro, o medo vira ansiedade… prisão… miragem.

    O ar rareou no peito.

    — Assim se cria o abismo. A profundidade do próprio medo.

    — E por que só existe um chefão?

    — Como assim?

    — Quando falam de autoridade aqui… só mencionam Elohim. Mas, quando falam dos demais, sempre é no coletivo.

    — Porque o equilíbrio nasce da necessidade de ordem. E, para isso, Um basta. Mas…

    As rodas, antes suspensas no ar, distorcem-se — tornam-se degraus que sobem e descem como se o vento reorganizasse.

    — O medo superado pode virar ilusão. E ilusões podem ser interpretadas por múltiplas mentes conscientes. Desse ruído compartilhado… nasce um panteão de deuses.

    — Caramba…

    — A verdade para o que morre não pode ser a mesma verdade para o que é eterno. Por isso divergem. Por serem naturezas distintas.

    — E os caras-sombra?

    — Ah… aquilo é fragmentação. Não de uma verdade .. mas de um tipo de medo.

    O som se estreita num sussurro que parece curvar o ar em volta:

    — Onde há estagnação, o medo é a constante de que não haverá mudança. Mas… onde existe vazio, o medo se torna o externo. Imagine ver cores depois de banhar-se na escuridão… e, ao tocá-las, perceber que o preto é a sua forma verdadeira.

    — E se eu tocar o arco-íris?

    — Ele te desfaz…

    — Então…

    — Gostaria de…?

    — Tornar tudo como eu. Porque… viveria enquanto o mundo me espalhasse.

    — Exato.

    De repente, sem que percebessem, o céu já queimava em tons de entardecer — luz dourada dissolvendo sombras nas bordas do olhar.

    — Quando o mundo te força a sobreviver, você se converte num parasita de si mesmo. Amputa a própria percepção… E acaba virando o avesso de si, um reflexo que tenta existir no lugar do real.

    — Isso…

    — Explodiu sua mente?

    — Literalmente fodeu ela!

    O corpo ergueu-se devagar, espreguiçando a alma junto, preguiça atravessando cada músculo.

    — Chega de dar uma de Gabriel Pensador…

    — Vai descansar?

    — Tem outra coisa pra fazer?

    Mas a resposta não veio em palavras, veio na mão que pousou firme sobre seu ombro, quente, intencional.

    — Tem…

    O brilho no olhar transformou o ar ao redor.

    — Vou te mostrar o auge de um Guardião.

    — Mais treino?

    — Não…

    Aos pés de ambos, o ar se condensou, pesado como vidro prestes a rachar.

    O Eco do careca, os ergueu do chão em um único impulso, arrancando a gravidade pela raiz.

    — Espetáculo.

    O tom reverberou como se abrisse cortinas invisíveis.

    — Está… pronto?

    Sua capacidade de controlar o Ar pulsou ao redor, e, através do Eco, as correntes se tornaram dóceis como animais sendo guiados pela palma da mão.

    O espaço se abriu ao redor deles, sem vácuo, sustentado por uma parede de ventos intransponível.

    — O que achou?

    O olhar dele percorreu o horizonte, e, por um instante que não coube no tempo, era como se milhões de quilômetros tivessem sido atravessados apenas pelo pensamento.

    Um salto impossível que o vento aceitava sem questionar. Quando seu Eco é capaz ele se materializa em desejo.

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