Capítulo 52 - Medo como Gênesis
— Entendo…
Foi a primeira mentira em muito tempo. Uma pequena morte dentro do peito, vertendo o sangue espiritual em direção a uma verdade que nunca existiu.
— Certo… e isso te convenceu?
— Sim…
— Sério?
A mão encontra o próprio rosto num gesto desesperado.
— Você? Se conformando?
— Ué…
O corpo se dobra, senta-se. Inerte. Os olhos descendo até os próprios pés dentro de tênis gastos.
— Não posso?
— Deve!
— Hm… ai…
Os pés balançam no vazio.
— Não tem um tênis aqui não?
Asael ergue o pé. A pele nua encontra o ar. Estava descalço há eras.
— Pisar no chão é uma dádiva… jura que não percebeu?
— Sei lá… — o fio de voz foge — acho que é falta de educação… reparar nos pés…
— E onde não é?
— É…
— E onde? Não…?
— Ah, sério?
— Sei lá… só tento entender a métrica humana. Algumas regras de vocês são tão…
— Causais?
— Não sei se é a palavra… talvez… inúteis.
— Ah… não sei.
O suspiro transborda.
— Só sigo o que me ensinaram… e vocês também não ficam muito atrás.
— Não…
— Merda!
A risada dele sobe suave, unhas coçando o próprio ombro.
— O que te irritou, hein?
— Isso. Você.
Assoma o toque aos próprios lábios, secos pelo excesso de ar
— Parece não negar nada… ou não ter ego pra isso…
— Ego eu tenho!
O estalo da resposta corta o ambiente.
— Mas… o que é ego?
A respiração dele falha por um segundo.
— Hum?
— É a natureza rebelde da alma? O reflexo metafísico? Nosso… eco?
— Talvez… ou só… necessidade de, sei lá, ser do contra.
— É isso que ele é pra você?
— Não, tipo…
Os olhos se perdem no alto, tentando pescar uma resposta no céu.
— Tipo… eu sou um cara foda… ou um rato? Sou foda, vai. Então, se quero me provar, devo ter um ego enorme.
— Respeito?
— Isso…
— Ele é qualitativo ou quantitativo?
O ar prende no meio da garganta.
— Como assim?
— Vale mais a qualidade desse respeito, se é admiração ou temor, ou a quantidade dele?
— Quantidade… funciona mais se for… Temor!
— Por quê?
A pupila treme. Algo se move dentro.
— É o medo que faz as baratas… nós… estarmos… vivos…
— Interessante…
Os dedos estalam; o polegar repousa no centro do anelar curvado, como um selo.
— Até um deus onisciente pode sentir medo. O medo é… um conceito que transcende a matéria, supera o estado divino, contorna leis, rompe a pré-gênese…
— Quê?
— Quero dizer… até o estado absoluto; o medo interfere e permanece.
— Mas como? Deus sente medo?
— Deus… Elar. Aquele que criou este mundo. Dizem que se dividiu em três após encarar o que havia além de si. O medo do desconhecido. E, a partir disso, trouxe à existência o mundo térreo, o intermédio e a profundidade.
— E o topo?
— Dizem que o topo veio primeiro. Antes do intermédio. Que este mundo é apenas a separação entre o que está abaixo e o que está acima. Mas… tudo não passa de fragmentos do mesmo mito.
— E por que três?
— Porque o medo atravessa os três estados do tempo. No passado, ele foi superado; e desse triunfo nasceram os céus… ou o intermédio. A neutralidade, a conformidade.
Em sua mente, pediu aos ventos que traçassem três rodas.
A do centro girava; as outras seguiam, presas ao ritmo.
— No presente, o medo vira experiência. O mundo térreo, o mundo dos vivos.
A roda de trás permaneceu imóvel.
— Mas…
A roda da frente girou até quase se desfazer.
— No futuro, o medo vira ansiedade… prisão… miragem.
O ar rareou no peito.
— Assim se cria o abismo. A profundidade do próprio medo.
— E por que só existe um chefão?
— Como assim?
— Quando falam de autoridade aqui… só mencionam Elohim. Mas, quando falam dos demais, sempre é no coletivo.
— Porque o equilíbrio nasce da necessidade de ordem. E, para isso, Um basta. Mas…
As rodas, antes suspensas no ar, distorcem-se — tornam-se degraus que sobem e descem como se o vento reorganizasse.
— O medo superado pode virar ilusão. E ilusões podem ser interpretadas por múltiplas mentes conscientes. Desse ruído compartilhado… nasce um panteão de deuses.
— Caramba…
— A verdade para o que morre não pode ser a mesma verdade para o que é eterno. Por isso divergem. Por serem naturezas distintas.
— E os caras-sombra?
— Ah… aquilo é fragmentação. Não de uma verdade .. mas de um tipo de medo.
O som se estreita num sussurro que parece curvar o ar em volta:
— Onde há estagnação, o medo é a constante de que não haverá mudança. Mas… onde existe vazio, o medo se torna o externo. Imagine ver cores depois de banhar-se na escuridão… e, ao tocá-las, perceber que o preto é a sua forma verdadeira.
— E se eu tocar o arco-íris?
— Ele te desfaz…
— Então…
— Gostaria de…?
— Tornar tudo como eu. Porque… viveria enquanto o mundo me espalhasse.
— Exato.
De repente, sem que percebessem, o céu já queimava em tons de entardecer — luz dourada dissolvendo sombras nas bordas do olhar.
— Quando o mundo te força a sobreviver, você se converte num parasita de si mesmo. Amputa a própria percepção… E acaba virando o avesso de si, um reflexo que tenta existir no lugar do real.
— Isso…
— Explodiu sua mente?
— Literalmente fodeu ela!
O corpo ergueu-se devagar, espreguiçando a alma junto, preguiça atravessando cada músculo.
— Chega de dar uma de Gabriel Pensador…
— Vai descansar?
— Tem outra coisa pra fazer?
Mas a resposta não veio em palavras, veio na mão que pousou firme sobre seu ombro, quente, intencional.
— Tem…
O brilho no olhar transformou o ar ao redor.
— Vou te mostrar o auge de um Guardião.
— Mais treino?
— Não…
Aos pés de ambos, o ar se condensou, pesado como vidro prestes a rachar.
O Eco do careca, os ergueu do chão em um único impulso, arrancando a gravidade pela raiz.
— Espetáculo.
O tom reverberou como se abrisse cortinas invisíveis.
— Está… pronto?
Sua capacidade de controlar o Ar pulsou ao redor, e, através do Eco, as correntes se tornaram dóceis como animais sendo guiados pela palma da mão.
O espaço se abriu ao redor deles, sem vácuo, sustentado por uma parede de ventos intransponível.
— O que achou?
O olhar dele percorreu o horizonte, e, por um instante que não coube no tempo, era como se milhões de quilômetros tivessem sido atravessados apenas pelo pensamento.
Um salto impossível que o vento aceitava sem questionar. Quando seu Eco é capaz ele se materializa em desejo.

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