Capítulo 7 - Aura
Depois de um café reforçado — ou o que chamavam de “café” naquele lugar — Cael despertou a todo vapor.
Ou, ao menos… deveria. O universo, em sua eterna teimosia, ainda apostava que ele fosse algo além de um covarde.
— Não acredito que comi uma larva gigante… agora há pouco… — comentou entre arrotos, com o rosto ainda contorcido de arrependimento. Alisava o novo traje: um manto branco que caía até os pés. — Pelo menos me deram um uniforme…
— Não é um uniforme! — o corrigiu, seco. — Essa é a veste que sobrou… O uniforme mesmo, só ganha depois de concluir o básico!
— Não corta meu barato, pô…
— Bem, agora que entendeu sua falha, está na hora de manifestar seu Eco.
— Agora sim! Finalmente vai me ensinar um truque pika! — Vibrava de empolgação, mesmo com o gosto amargo da covardia ainda na boca… ou talvez fosse o gosto do verme.
Larvas, insetos… era tudo o que brotava e nutria naquele mundo. Não sentiam fome no estômago — a alma, sim, essa roía os ossos por dentro.
— Truque? Não, não… — Riu — Basta crer que é capaz, e sua aura se manifestará.
— Como é? E a aceitação? As crises existenciais? A epifania?
— Isso? — Deu de ombros — Era só minha condição pra te ensinar algo tão perigoso.
— Quê?! — bufava — Tá dizendo que não precisava?
— Exatamente.
— Ah, seu filho da…!
— Agora tanto faz, não é? Te fiz um favor. Então me agradeça mostrando como seu Eco se manifesta! — disse com firmeza. E ao falar, uma ventania varreu o ambiente e sua aura escarlate explodiu ao redor, vibrante e viva. — A cor não importa. O que define é a forma. É ela que revela sua habilidade única!
— Tá… tá… só crer que eu consigo, né?
— Exatamente…
Respirou fundo. Fechou os olhos.
— Sou pica. Sou foda…
O grandão arqueou a sobrancelha.
— Sou o melhor… eu consigo… eu consigo!
E então, surgiu. Uma aura vacilante, tremulando como fogo, de um roxo profundo, quase etéreo.
O jovem abriu os olhos e sorriu, convencido.
— Hehe… e aí, o que achou, hein?
— Péssima — Com a frieza de quem avalia um copo de água morna — Ela se manifesta bem… para um iniciante — O sorriso murchou na hora — Mas não há intenção de grandeza. É como dizer por dizer… difícil que consiga uma expressão real dela.
— Como é? Tá me tirando? — E puff, a aura se desfez como fumaça no vento.
— Viu? Tenta de novo.
— Hm… tá, tá… — cerrou os olhos, mais uma vez mandou uma enxurrada de elogios egocêntricos para si, e voilà, a aura reapareceu.
— Falta instabilidade…
— Maldição!
E de novo.
E mais uma.
E mais outra.
Quando passou uma hora e meia, suando e arfando, enfim conseguiu a manter de forma aceitável — instável, mas decente.
— Bom, bom! — bateu palmas, finalmente satisfeito — Agora, preciso te ensinar como manifestar uma habilidade. E também como usar essa aura.
— Usar? — Mal conseguia falar, sedento e exausto.
— Isso. Com ela, podemos reforçar o corpo, amplificar sentidos, recuperar vitalidade, regenerar feridas, prolongar a vida e mais algumas coisinhas… — disse com naturalidade, como se falasse de um café da manhã. Então apontou um dedo para ele. — E não há maneira melhor de ensinar… do que através da dor!
— Dor? — Franziu os olhos.
Foi tudo muito rápido.
Uma rajada o jogou com violência contra as paredes do muro que cercava aquele lugar. Nem viu de onde veio, só sentiu o baque surdo, o gosto metálico na boca, e o sangue escorrendo.
— Essa é Yesod, a etapa onde a habilidade básica se manifesta. No meu caso, uma rajada de ar. A fração mais pífia do meu Eco! — explicou quase como um professor entediado, enquanto ele lutava para recuperar o fôlego. — Se fosse um humano comum, sem aura… estaria morto.
— Estaria?! — agarrou o chão com os dedos trêmulos — Cacete… — e ao olhar para trás, viu a parede: rachada como vidro sob pressão.
— Você sentiu o impacto de ventos que ultrapassam seis mil terawatts… cerca de 741 quilômetros por hora. Sabe o que isso causaria no seu planeta?
— Ehr… não? — cuspiu mais sangue do que achava possível.
Sentia como se os órgãos tivessem virado purê.
Ah, claro — o clássico: mestre ensina, aluno quase morre.
Tradição milenar.
— Iria varrer cidades inteiras… escalpelar a crosta terrestre.
— Então… quer dizer que eu sou mais forte que a crosta terrestre?
— Mais resistente — corrigiu, soltando um suspiro longo, daquele tipo que carrega anos de paciência sendo testada.
Ele é burro mesmo ou é um modelo padrão da espécie humana?
Refletiu, quase com pena.
— Mas… se ia fazer tudo isso, por que não destruiu nada aqui, hein? — olhos semicerrados, desconfiado.
— Aqui, o solo é até dez milhões de vezes mais resistente. O Mundo Intermédio é naturalmente moldado para conter seres do nosso nível.
— Ahhh… entendi, entendi… — assentiu com a cabeça, fingindo compreensão plena. — Então o loirinho tava certo…
— Loirinho? — Arqueou uma sobrancelha.
— É… ele disse que ia explodir o meu plano.
— HAHAHAHAHAHA! — gargalhou como se tivesse escutado a piada do século — E você duvidou? O Chefe é um dos Quinze mais poderosos desta época. Se quisesse, transformava o multiverso todo em carvão… com um arroto flamejante!
— Como assim? Multiverso? Isso existe mesmo? Achei que fosse… sei lá, papo de quadrinho da Marvel.
— Existe! Só não é como vocês imaginam. E olha… só não destruímos ainda porque, quando dois seres de nível equivalente brigam, a própria realidade se contorce — criam um Domínio do Caos. É uma bolha temporária, onde tudo é distorcido… mas isso é coisa de veterano. Você e eu? Iniciantes com RG vencido.
— Cacete… Certo, certo… ehr… como é que usa essa aura então?
O mestre deu outra risada, mais leve dessa vez.
— Já usou.
— Como assim?
— Você sente dor? Tá sangrando, mas ainda tá inteiro, né? Respira, olha só, tá 100% de novo.
— Ehr… o quê?
— Seu corpo, inconscientemente, usou a aura para te proteger. É como um sistema imunológico. Nem tudo se faz pensando… às vezes, só acontece.
Cael olhou pro próprio corpo. Não estava perfeito, mas estava ali. Vivo. Funcionando.
— Beleza… achei que teria que administrar tudo…
Riu sem jeito, como quem acaba de fazer uma descoberta revolucionária — tipo fogo, ou a roda.
Que vagabundo… Até onde vai me enganar?
— Medo da responsabilidade? Acha que não é capaz?
Cael mordeu o lábio, evitando dar uma resposta impulsiva. Sentia aquela pressão, a constante expectativa de ser algo mais, de ser algo diferente do que sempre foi. Mas, mais uma vez, foi jogado nessa situação.
— Não, deixa… então… como faço isso, ai?
— Faz o quê?
— O… Iesuadi. Né?
— Ahhhhhh, Yesod? — Fez uma pausa dramática, colocando as mãos na cintura. — Primeiro, você vai ter que entender como manifestar uma habilidade.
Ele parecia gostar de fazer as coisas de maneira difícil, intencionalmente, para o testar, como se o rapaz fosse seu passatempo.
Mas ele estava disposto a entender, ou pelo menos tentar.
— É como um eco em uma caverna… Primeiro, você vai reunir a energia, na origem, lá dentro de você. Como um núcleo…
Cael franziu a testa, ouvindo atentamente.
— A energia espiritual é condensada, como se fosse uma nota de uma música, tocada em silêncio… então você a emite, sentindo sua vibração, sua intenção. Esse é o primeiro passo.
— Uhum…
— A origem da energia é dentro de você, mas então você precisa liberá-la. Fazer com que ela se espalhe ao seu redor, não é só sobre controle… é sobre propagar o som do Eco.
— Propagar o som?
— Sim. Deve se espalhar pelo ambiente, se moldando à técnica. A propagação define como o Eco vai se comportar. Como ele vai alcançar seu alvo, ou não. Como vai se manifestar.
— É tipo uma explosão? Ou só uma onda?
— Depende. A propagação se ajusta. Você tem que deixar que a energia se molde, ela vai buscar um ponto de contato. Uma vez no ponto certo, o Eco vai se refletir — mas a estabilidade da sua técnica vai ser testada nessa hora, é a parte mais complicada.
— Reflexão?
— Sim. O mundo vai reagir à sua energia. Você vai perceber que sua energia vai ser amplificada ou até distorcida pela interação com outras forças ou o ambiente. Essa é a etapa onde você vê se a técnica é harmônica ou uma bagunça.
Fez uma careta.
— Essa é a parte difícil…
O mestre sorriu, percebendo a inquietação.
— Não te preocupes. Aqui vem a parte boa… A etapa do retorno. A energia que você emitiu, ela vai retornar, em parte. Isso pode ser absorvido de volta, ou até causar uma reação adversa. O retorno te dá o controle, a chance de corrigir. Ou talvez… a chance de ampliar a técnica com o que retornou, criando um impulso novo.
Tentou seguir o raciocínio. Ele sentia que ainda estava muito distante de entender completamente, mas já sentia o peso da responsabilidade sobre seus ombros. Não era apenas sobre o que ele faria com essa energia, mas sobre o que ele seria ao liberá-la.
— E por fim? — perguntou, já com um fio de cansaço na voz.
— Por fim, a percepção. O que você sente? O que o mundo sente? Você vai compreender a técnica através dos efeitos dela. Vai sentir se fez certo ou se algo está fora de sintonia. A percepção é o ajuste final, e o que vai fazer você crescer… mas é também o que vai te fazer falhar, de uma maneira cruel.
— Então, é isso? — Olhou para o espaço à sua frente — Eu só preciso confiar em mim e deixar a coisa fluir?
Asael riu, balançando a cabeça.
— Ah, moleque… nunca é só isso. Mas é o começo!
Novamente, deu a hora de ir trabalhar… Ele saiu, e amanhã seria mais um dia da bateria de treinos que viria.
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