Depois de um café reforçado — ou o que chamavam de “café” naquele lugar — Cael despertou a todo vapor.

    Ou, ao menos… deveria. O universo, em sua eterna teimosia, ainda apostava que ele fosse algo além de um covarde.

    — Não acredito que comi uma larva gigante… agora há pouco… — comentou entre arrotos, com o rosto ainda contorcido de arrependimento. Alisava o novo traje: um manto branco que caía até os pés. — Pelo menos me deram um uniforme…

    — Não é um uniforme! — o corrigiu, seco. — Essa é a veste que sobrou… O uniforme mesmo, só ganha depois de concluir o básico!

    — Não corta meu barato, pô…

    — Bem, agora que entendeu sua falha, está na hora de manifestar seu Eco.

    — Agora sim! Finalmente vai me ensinar um truque pika! — Vibrava de empolgação, mesmo com o gosto amargo da covardia ainda na boca… ou talvez fosse o gosto do verme.

    Larvas, insetos… era tudo o que brotava e nutria naquele mundo. Não sentiam fome no estômago — a alma, sim, essa roía os ossos por dentro.

    — Truque? Não, não… — Riu — Basta crer que é capaz, e sua aura se manifestará.

    — Como é? E a aceitação? As crises existenciais? A epifania?

    — Isso? — Deu de ombros — Era só minha condição pra te ensinar algo tão perigoso.

    — Quê?! — bufava — Tá dizendo que não precisava?

    — Exatamente.

    — Ah, seu filho da…!

    — Agora tanto faz, não é? Te fiz um favor. Então me agradeça mostrando como seu Eco se manifesta! — disse com firmeza. E ao falar, uma ventania varreu o ambiente e sua aura escarlate explodiu ao redor, vibrante e viva. — A cor não importa. O que define é a forma. É ela que revela sua habilidade única!

    — Tá… tá… só crer que eu consigo, né?

    — Exatamente…

    Respirou fundo. Fechou os olhos.

    — Sou pica. Sou foda…

    O grandão arqueou a sobrancelha.

    — Sou o melhor… eu consigo… eu consigo!

    E então, surgiu. Uma aura vacilante, tremulando como fogo, de um roxo profundo, quase etéreo.

    O jovem abriu os olhos e sorriu, convencido.

    — Hehe… e aí, o que achou, hein?

    — Péssima — Com a frieza de quem avalia um copo de água morna — Ela se manifesta bem… para um iniciante — O sorriso murchou na hora — Mas não há intenção de grandeza. É como dizer por dizer… difícil que consiga uma expressão real dela.

    — Como é? Tá me tirando? — E puff, a aura se desfez como fumaça no vento.

    — Viu? Tenta de novo.

    — Hm… tá, tá… — cerrou os olhos, mais uma vez mandou uma enxurrada de elogios egocêntricos para si, e voilà, a aura reapareceu.

    — Falta instabilidade…

    — Maldição!

    E de novo.

    E mais uma.

    E mais outra.

    Quando passou uma hora e meia, suando e arfando, enfim conseguiu a manter de forma aceitável — instável, mas decente.

    — Bom, bom! — bateu palmas, finalmente satisfeito — Agora, preciso te ensinar como manifestar uma habilidade. E também como usar essa aura.

    — Usar? — Mal conseguia falar, sedento e exausto.

    — Isso. Com ela, podemos reforçar o corpo, amplificar sentidos, recuperar vitalidade, regenerar feridas, prolongar a vida e mais algumas coisinhas… — disse com naturalidade, como se falasse de um café da manhã. Então apontou um dedo para ele. — E não há maneira melhor de ensinar… do que através da dor!

    — Dor? — Franziu os olhos.

    Foi tudo muito rápido.

    Uma rajada o jogou com violência contra as paredes do muro que cercava aquele lugar. Nem viu de onde veio, só sentiu o baque surdo, o gosto metálico na boca, e o sangue escorrendo.

    — Essa é Yesod, a etapa onde a habilidade básica se manifesta. No meu caso, uma rajada de ar. A fração mais pífia do meu Eco! — explicou quase como um professor entediado, enquanto ele lutava para recuperar o fôlego. — Se fosse um humano comum, sem aura… estaria morto.

    — Estaria?! — agarrou o chão com os dedos trêmulos — Cacete… — e ao olhar para trás, viu a parede: rachada como vidro sob pressão.

    — Você sentiu o impacto de ventos que ultrapassam seis mil terawatts… cerca de 741 quilômetros por hora. Sabe o que isso causaria no seu planeta?

    — Ehr… não? — cuspiu mais sangue do que achava possível.

    Sentia como se os órgãos tivessem virado purê.

    Ah, claro — o clássico: mestre ensina, aluno quase morre.

    Tradição milenar.

    — Iria varrer cidades inteiras… escalpelar a crosta terrestre.

    — Então… quer dizer que eu sou mais forte que a crosta terrestre?

    — Mais resistente — corrigiu, soltando um suspiro longo, daquele tipo que carrega anos de paciência sendo testada.

    Ele é burro mesmo ou é um modelo padrão da espécie humana?

    Refletiu, quase com pena.

    — Mas… se ia fazer tudo isso, por que não destruiu nada aqui, hein? — olhos semicerrados, desconfiado.

    — Aqui, o solo é até dez milhões de vezes mais resistente. O Mundo Intermédio é naturalmente moldado para conter seres do nosso nível.

    — Ahhh… entendi, entendi… — assentiu com a cabeça, fingindo compreensão plena. — Então o loirinho tava certo…

    — Loirinho? — Arqueou uma sobrancelha.

    — É… ele disse que ia explodir o meu plano.

    — HAHAHAHAHAHA! — gargalhou como se tivesse escutado a piada do século — E você duvidou? O Chefe é um dos Quinze mais poderosos desta época. Se quisesse, transformava o multiverso todo em carvão… com um arroto flamejante!

    — Como assim? Multiverso? Isso existe mesmo? Achei que fosse… sei lá, papo de quadrinho da Marvel.

    — Existe! Só não é como vocês imaginam. E olha… só não destruímos ainda porque, quando dois seres de nível equivalente brigam, a própria realidade se contorce — criam um Domínio do Caos. É uma bolha temporária, onde tudo é distorcido… mas isso é coisa de veterano. Você e eu? Iniciantes com RG vencido.

    — Cacete… Certo, certo… ehr… como é que usa essa aura então?

    O mestre deu outra risada, mais leve dessa vez.

    — Já usou.

    — Como assim?

    — Você sente dor? Tá sangrando, mas ainda tá inteiro, né? Respira, olha só, tá 100% de novo.

    — Ehr… o quê?

    — Seu corpo, inconscientemente, usou a aura para te proteger. É como um sistema imunológico. Nem tudo se faz pensando… às vezes, só acontece.

    Cael olhou pro próprio corpo. Não estava perfeito, mas estava ali. Vivo. Funcionando.

    — Beleza… achei que teria que administrar tudo…

    Riu sem jeito, como quem acaba de fazer uma descoberta revolucionária — tipo fogo, ou a roda.

    Que vagabundo… Até onde vai me enganar?

    — Medo da responsabilidade? Acha que não é capaz?

    Cael mordeu o lábio, evitando dar uma resposta impulsiva. Sentia aquela pressão, a constante expectativa de ser algo mais, de ser algo diferente do que sempre foi. Mas, mais uma vez, foi jogado nessa situação.

    — Não, deixa… então… como faço isso, ai?

    — Faz o quê?

    — O… Iesuadi. Né?

    — Ahhhhhh, Yesod? — Fez uma pausa dramática, colocando as mãos na cintura. — Primeiro, você vai ter que entender como manifestar uma habilidade.

    Ele parecia gostar de fazer as coisas de maneira difícil, intencionalmente, para o testar, como se o rapaz fosse seu passatempo.

    Mas ele estava disposto a entender, ou pelo menos tentar.

    — É como um eco em uma caverna… Primeiro, você vai reunir a energia, na origem, lá dentro de você. Como um núcleo…

    Cael franziu a testa, ouvindo atentamente.

    — A energia espiritual é condensada, como se fosse uma nota de uma música, tocada em silêncio… então você a emite, sentindo sua vibração, sua intenção. Esse é o primeiro passo.

    — Uhum…

    — A origem da energia é dentro de você, mas então você precisa liberá-la. Fazer com que ela se espalhe ao seu redor, não é só sobre controle… é sobre propagar o som do Eco.

    — Propagar o som?

    — Sim. Deve se espalhar pelo ambiente, se moldando à técnica. A propagação define como o Eco vai se comportar. Como ele vai alcançar seu alvo, ou não. Como vai se manifestar.

    — É tipo uma explosão? Ou só uma onda?

    — Depende. A propagação se ajusta. Você tem que deixar que a energia se molde, ela vai buscar um ponto de contato. Uma vez no ponto certo, o Eco vai se refletir — mas a estabilidade da sua técnica vai ser testada nessa hora, é a parte mais complicada.

    — Reflexão?

    — Sim. O mundo vai reagir à sua energia. Você vai perceber que sua energia vai ser amplificada ou até distorcida pela interação com outras forças ou o ambiente. Essa é a etapa onde você vê se a técnica é harmônica ou uma bagunça.

    Fez uma careta.

    — Essa é a parte difícil…

    O mestre sorriu, percebendo a inquietação.

    — Não te preocupes. Aqui vem a parte boa… A etapa do retorno. A energia que você emitiu, ela vai retornar, em parte. Isso pode ser absorvido de volta, ou até causar uma reação adversa. O retorno te dá o controle, a chance de corrigir. Ou talvez… a chance de ampliar a técnica com o que retornou, criando um impulso novo.

    Tentou seguir o raciocínio. Ele sentia que ainda estava muito distante de entender completamente, mas já sentia o peso da responsabilidade sobre seus ombros. Não era apenas sobre o que ele faria com essa energia, mas sobre o que ele seria ao liberá-la.

    — E por fim? — perguntou, já com um fio de cansaço na voz.

    — Por fim, a percepção. O que você sente? O que o mundo sente? Você vai compreender a técnica através dos efeitos dela. Vai sentir se fez certo ou se algo está fora de sintonia. A percepção é o ajuste final, e o que vai fazer você crescer… mas é também o que vai te fazer falhar, de uma maneira cruel.

    — Então, é isso? — Olhou para o espaço à sua frente — Eu só preciso confiar em mim e deixar a coisa fluir?

    Asael riu, balançando a cabeça.

    — Ah, moleque… nunca é só isso. Mas é o começo!

    Novamente, deu a hora de ir trabalhar… Ele saiu, e amanhã seria mais um dia da bateria de treinos que viria.

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