— A bruma leve das paixões que vem de dentro… tu vens chegando pra brincar no meu quintal!

    Estávamos sentados ao redor de uma fogueira. Com o violão do Kris, cantei alguns clássicos do MPB. Eles pareceram curtir o som. Claro, cantando errado algumas partes — mas não é como se eles fossem notar, né?

    Não dormimos. Claro, talvez isso tenha sido efeito do chá que fizemos usando as folhas de uma planta esquisita. Qual era o nome dela? Seliagro? É, Seliagro. Tenho a estranha sensação de que isso seria “groselia”… 

    Enfim, o sol raiava atrás de mim. Durante o crepúsculo, cantei Come as you are — aquela do Nirvana —, quase como se eu fosse a reencarnação do Kurt Cobain. 

    — Curti essa aí — disse Haen, apontando sua baqueta na minha direção. Ele tava sentado sobre um tronco. — A “sensação”… Aquilo que você chama de “vibe”. A vibe dela é muito boa.

    — O cara que compôs isso devia ter uma vida meio triste — comentou Hoen. Ele tem sua tendência negativa, mas estranhamente acertou nessa suposição.

    — O que te faz pensar isso? — perguntou Kris. Os cabelos dele eram como ondas negras ao vento. Alguém devia fazer uma pintura desse cara, daria uma boa capa de álbum.

    As minúsculas íris de Hoen, trêmulas, se voltaram ao cara dos cabelos ondulados.

    — Mesmo que essa seja uma música do mundo do Edward, ele consegue cantar e a traduzir para nós. Não entendeu o significado da letra?

    — Não manjo de inglês — respondeu Kris, dando de ombros.

    “Inglês? Tem inglês em Nehder? Ah… eu entendo a língua daqui, isso não deveria ser motivo de espanto.”

    — Eu entendi — manifestou-se o outro garoto de olhos pequenos. Ele pôs a mão no peito, como se o coração doesse. — Foi como se ele quisesse passar mais coisas do que realmente estava dizendo.

    — Tá, sonhores punheteiros, digo, poeteiros… — O projeto de Jim Morrison se jogou um graveto no fogo. — O que vocês entenderam?

    — Algo próximo de uma confissão de solidão — disseram em uníssono.

    Ok, os caras são gêmeos idênticos, mas responderem as coisas ao mesmo tempo chega a ser assustador. Nove ou dez capítulos se passaram, e ainda assim não me acostumei.

    — Falando nisso — fitei o Kris e sorri —, e aquela parada lá?

    — Parada? — indagou ele, fazendo de conta que não sabia do que eu tava perguntando. Quer dizer, ele podia não saber, mesmo.

    — É. Falou que não quer ficar sozinho e tal… mas e se ela não voltar?

    Ele balançou a cabeça de um lado para o outro, negando com todas as forças, e levantou a voz ao dizer:

    — E-Eu tô com tudo armado!

    A sua barraca, né? Eu queria dizer isso, mas preferi omitir esse comentário.

    — É mesmo — introduziu-se Haen, pegando o assunto no ar —, já faz mais de duas semanas que desde que ela saiu.

    — Ela… ela quem? — Hoen pareceu um pouco avoado, mas logo abriu um sorrisão e deu uma cotovelada no ombro de Kris. — Hehehe, e se ela estiver com outro? Talvez seja por isso que não tenha voltado ainda.

    — Pois é, pois é… — falei e alimentei a fogueira, literalmente. Deixei o violão encostado na pedra atrás de mim. — Mas cê tá sério quanto a isso, Kris?

    Ele me encarou. Não havia nenhuma grama de dúvida em seu olhar e nenhum vacilo em sua postura. 

    — Aquela mulher vai ser minha esposa — afirmou e encarou o violão. — Tem duas coisas que não podem faltar na minha vida, Ed. Sabe quais são?

    — Mulheres e música, né? Você já me disse isso.

    — De fato. Mas aquela garota é diferente. Ela não é só bonita. Não é um “lance” que dura só uma noite, entende?

    — Tu tá gamadão nela, isso eu sei.

    Os outros dois riram, mas eu sei que eles respeitavam a postura do projeto de Jim Morrison quanto a ela. Dá até pra dizer que era o mesmo que eu sentia pela Kazuhito.

    — Eu quero ter filho com ela… esse tipo de coisa.

    — Falou e disse. Quando essa guerra acabar e a nossa música ficar famosa pelo mundo, quero ter filhos e poder contar a eles as minhas histórias — falou Haen ao irmão.

    — Primeiro arrume uma namorada, feioso! — brincou Hoen.

    E eles trocaram ofensas um ao outro.

    Foi engraçado. Senti que aquela seria a última vez que ouviria um gêmeo idêntico dizer ao outro que ele é mais feio que bater na mãe, ou que poderia ver o Kris corar ao pensar na Encapuzada.

    — Tem algum outro som bacana aí? — perguntou-me Hoen.

    — Tem dos Beatles. Quer ouvir esse?

    — “Besouros”? Pode ser.

    Enquanto decidia entre “hey Jude” e “yesterday”, um barulho repentino cortou a calmaria daquela manhã de sábado.

    “Nem fudendo…”

    O que pareciam ser planadores vivos, aos montes, voavam acima de nós. Eram tantos que escureceram o céu.

    — Aquela bandeira… — apontou Kris para uma das “aves”. Era um tecido cujo símbolo era um dragão dentro de um triângulo. — É… é o exército do Ragon!

    Impossível…

    “A… a Encapuzada chegou?! Mas que merda?!”

    Minha voz não saiu. Ela ficou presa.

    — Encontraram a base! — afirmou Haen, sacando sua espada embainhada na cintura. — A gente tem que…

    — Lutar por eles? — Hoen negou com a cabeça. — Nem vem. 

    — Cara… a gente tem que pelo menos pegar os nossos passaportes! Aí a gente pode fugir!

    Os três assentiram entre si e se voltaram para mim.

    — Nos espere aqui — disse Kris. — Se você for lá, o lunático do Kurone pode te matar. Mesmo você sendo o único que pode nos salvar, se a situação ficar ruim.

    — E nós queremos um vocalista bacana — falaram os irmãos ao mesmo tempo.

    Me deixando sozinho, eles correram para fora da clareira, enfiando-se no mato um a um.

    Aqueles idiotas… eles foram correndo como porcos indo pro abate. Foram para o hangar, para o lugar onde, em algum capítulo, eu senti que iria pro abatedouro. Não estava errado em pensar que minha última visão deles seria de suas costas.

    Tentei os seguir, mas prendi meu pé em um galho e caí.

    “Eu… eu tenho que impedi-los!”

    Impedir? Impedir quem? Aqueles jovens que, assim como eu, lutam em nome de algo ou alguém? Não, pera lá… eles não lutam pelo reino em que nasceram — seus pais os forçaram a virar soldados fabricados para morrer em nome de fascistas.

    Hitler e Takatsukasa Kurone eram praticamente a mesma pessoa. Homens da dita raça ariana, o segundo sendo um elfo, nascido para lutar contra os supostos vilões da humanidade que buscavam a ruína dela. Eles pouco se lixavam para aquele “abusador de hora extra”. O matariam, se pudessem.

    — Kris… Haen… Hoen… — citei os nomes dos três mosqueteiros idiotas. — Eu ainda… 

    …Eu ainda ia cantar Yesterday pra vocês.

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