Capítulo 60: Uma estória do passado
“Não posso apenas crer em palavras.” Afirmou o Orc desejando que tudo fosse uma mentira.
“Não precisa apenas ter fé nelas. Tenho certeza que apesar de vossas desavenças, Lauany permitirá que um ou dois orcs se aventurem além das planícies para confirmar tal situação.“
“Oh, eu… ” A Matriarca pseudo-centauro hesitou, não era uma situação comum, deveria permitir uma ação daquelas.
“O risco provocado pelo fator humano é maior do que qualquer ameaça que ambos os seus povos possam representar uns aos outros. Os humanos são uma espécie que se movimenta para destruir e dominar.” O Hobgoblin afundou em um tom sombrio.
A Bruxa riu, seu amigo falou como se estivesse muito distante daquela descrição. Um verdadeiro hipócrita. Os outros tomaram a atitude como apenas uma excentricidade da réptil e o monstro prosseguiu o seu discurso:
“Entendam, não peço que suas tribos ignorem o histórico de animosidade de ambos e se unam como uma unidade para lutar contra a ameaça humana.” Ergueu um dedo antes de pedir que “Apenas parem seus conflitos por enquanto.“
“Como isso seria bom de qualquer jeito?”
“Quanto menos habitantes na selva, mais fácil será para os humanos tomarem os nossos territórios à força. Só podemos sobreviver, não precisam se envolver.” O Hobgoblin encarou os outros monstros com uma expressão confiante, quase heróica. “Mas eu vou tentar fazer algo.“
“Oh, o que?”
O monstro fez silêncio, seu longo rabo de cavalo balançando ao vento. Os olhos amarelos encarando o horizonte como se buscasse nele a solução de todos os seus problemas. Então voltou sua atenção para cada um dos presentes, analisando suas faces sérias e preocupadas.
“O que eu for capaz de fazer.“
“Eu, nós, nós temos que discutir isso.” Lauany falou se erguendo, ação logo imitada pelo irmão. “Só esperem um pouco.”
Os dois pseudo-centauros se afastaram voltando para seu povo em busca de uma breve discussão. A Bruxa se deitou na grama para permitir que o sol a banhasse, seu amigo já notara o gosto dela por aquela ação e supôs ser decorrente do sangue frio da mulher.
O Orc a encarou, seria fácil com um único movimento do martelo matar a mulher, estava indefesa. Ou só parecia indefesa? Tão confiante daquela forma, ignorando a presença de ameaças, o monstro maior não precisava dos seus instintos para saber que ela poderia o matar sem qualquer dificuldade.
Enquanto o líder a encarava, o próprio também era observado. “Ele” se questionou internamente sobre quais os profundos dilemas que atormentavam o Orc. O rosto cheio de cicatrizes apresentava o aspecto de quem não dorme o necessário, sua postura denunciava o cansaço de dias acumulados.
Existia alguma coisa acontecendo entre a tribo daquela raça, um problema que cabia ao chefe resolver e ele claramente não tinha noção de como. Isso poderia ser um dos motivos para a súbita invasão nas planícies.
“Qual o problema que está fazendo sua tribo se mudar por desespero?” Indagou o hobgoblin com seu pequeno sorriso de lábios fechados.
O maior grunhiu e se ergueu, ignorando a criatura menor saiu resmungando com raiva de como era facilmente entendido pelo outro, os inteligentes como o goblin bonito sempre davam problemas.
“Ele” só olhou enquanto o outro voltava para os seus iguais, logo foi recepcionado por um Orc de pele em um tom de verde mais escuro e uma mulher.
“Você não é um hobgoblin.” A loira falou agora sem ouvintes com quem tomar cuidado. “Você é uma cobra, uma serpente. Vai fazer os outros resolverem o seu problema.”
Serpente, uma palavra que quando usada como adjetivo denota um alto teor de astúcia, mas um grau tão alto quanto de perversidade, não era algo bom para ser chamado.
“Assim você faz uma grave ofensa ao meu caráter.” Disse triste em um claro tom de fingimento. “Serpentes são pequenas demais para mim.“
“Não Boiúna.” Respondeu sorrindo.
“E o que seria isso?“
“A questão é, quem seria essa.” A Bruxa falou se sentando e olhando para o outro bastante animada. “A grande mãe d’água de Boiaçuquara, Boiúna, era uma grande cobra gigante que habitava o fundo de rios.”
“Do território demoníaco imagino.” O monstro falou se sentando em uma posição mais confortável.
Poucas coisas deixavam sua amiga tão animada, duas na verdade, poções e a cultura de seu povo. A mulher poderia passar horas falando sobre as histórias do passado de sua terra. Felizmente, “ele” não se importava de passar horas ouvindo-a falar.
“Quando saia da terra, deixava rastros que formavam novos rios e lagos. Por isso a minha terra, Boiaçuquara, era praticamente toda alagada.” O réptil suspirou, embora fosse pouca, sentia alguma saudade de onde nasceu. “Os olhos dela podiam brilhar em centenas de cores diferentes de uma só vez, também serviam como grandes faróis iluminando a noite escura. Ela podia controlar a névoa dos rios para criar ilusões e seu veneno derretia até mesmo o metal.”
“Realmente fascinante, e ela era a única de sua espécie?” Perguntou curioso.
“Era, eu poderia contar muitas das histórias e feitos de Boiúna, mas resumindo e indo direto até o final. Um dia ela deu à luz a duas crianças, Honorato e Maria.” Comentou se aproximando mais do hobgoblin. “Eles tinham os poderes da mãe, porém eram mais fracos, seus olhos brilhavam em todas as cores, porém não iluminavam a noite. Seus venenos eram mortais, mas não o bastante para corroer metal ou carne. Também eram grandes, entretanto não chegavam sequer perto do tamanho total de Boiúna.”
“Eles simplesmente nasceram mais fracos que ela? Sem motivos?“
“Mas existia um, os dois poderiam fazer algo que a mãe jamais foi capaz.” A loira sorriu ainda mais antes de contar. “Eles podiam assumir formas humanoides. No total tinham três formas, a de grande serpente, a humanoide e uma que era a junção das outras duas.”
“Bruxa, você…” O monstro a encarou, sua pele reptiliana, os olhos em fenda, fez a criatura se questionar internamente. Antes que fizesse a pergunta, ela mesma o respondeu.
“Não sou uma Boiúna, é assim que ficaram conhecidos os seus descendentes, sabe? Boiúnas, meu povo descende de outra criatura poderosa.” Tendo respondido aquela questão, tinha uma história a terminar. “Mas continuando, a filha de Boiúna, Maria, usava seu poder para se infiltrar nos povos demoníacos e os devorar na calada da noite. Honorato no entanto era justo e bom, por isso guerreou contra sua irmã. No fim a venceu e a matou, mas teria morrido por causa do veneno da irmã.”
“Mas?“
“Mas uma guerreira de Cametá, aquela que era o segundo Rei Demônio salvou sua vida e ele prometeu eterna lealdade. Desde então todas as Boiúnas serviram ao castelo do Rei Demônio até que em uma guerra foram extintas por não serem muitas.” Terminou se deitando outra vez e bocejando.
“É uma história impressionante, no entanto, o segundo Rei Demônio? Isso foi há bastante tempo, não é?“
“Uns mil anos atrás mais ou menos, a maior parte dos povos que vivem no território demoníaco não existiam e a humanidade havia acabado de chegar no continente.” A Bruxa não tinha certeza da data, o calendário que usavam começava com o surgimento do primeiro Rei Demônio e do Herói, mas ainda era difícil organizar os acontecimentos desse período.
“Disse que sua espécie descende de uma criatura tão fascinante quanto, qual seria?“
“Essa história vai ter que ficar pra outro dia.” Falou a mulher vendo de um lado os pseudo-centauros voltarem e do outro o Líder Orc. “Os idiotas que você quer usar tão voltando.”
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