Capítulo 18 - Escama
Victoria estava errada e Ralik não estava se declarando para mim. Na verdade, ele parecia abordar um assunto completamente diferente, mas que eu julgava de importância muito alta nesse momento: informações ocultas sobre a nossa missão na ilha de Lazil.
Ralik não havia ido com a mesma missão de reconhecimento que Gakina, eu e Baplin tínhamos sido enviados. E isso explicava porque ele ficou para trás junto de Danibor e acabaram sendo atacados, diferente de nós três que teríamos conseguido passar despercebido se não fosse pela tentativa de resgatar o general.
— O Fenriz na verdade não é um lobo comum, é um faro-verdadeiro. — Ele remexeu as mãos enquanto dizia isso, como se estivesse desconfortável em revelar um segredo.
E eu entendia isso. Os faro-verdadeiros não são animais comuns e é raro encontrá-los em Algator, já que seu habitat natural é ao norte Orfeán, muito longe de onde estamos agora. Eles são uma espécie diferente de lobos: possuem um olfato sobrenatural, capaz de não apenas seguir os rastros e identificar inimigos, como também de rastrear sua origem. Descobrir quem é sua linhagem, por onde esteve e até mesmo qual é o familiar de um nahuale, antes de se encontrar com ele.
Algumas lendas dizem que os faro-verdadeiros conseguem até mesmo identificar doenças muito cedo, antes delas começarem a fazer mal ao organismo e apresentar seus sintomas.
— Eu já sou fã do Fenriz, não precisa me fazer gostar mais ainda dele. — Tentei descontrair, mas percebi que Ralik estava tenso demais.
Deixei que ele continuasse falando.
— O motivo dos alados terem invadido Lazil não foi apenas pela posição vantajosa. Eles queriam isso. — Ele remexeu na pequena mochila que trazia nas costas, mostrando um pedaço de pedra grande o suficiente para ser usado como escudo.
— O que é isso?
— Olhe direito… — Ele abriu um pouco mais, deixando que o sol refletisse no objeto.
Era uma escama. Uma escama grande o suficiente para indicar que pertencesse a um dragão adulto. Por mais que Victoria tenha nascido para provar que os dragões realmente existiram em nosso mundo no passado, apenas poucos entre os grão-nahuales mais velhos eram capazes de se lembrar deles com facilidade.
— Pelo tamanho… Parece de um dragão adulto. — Hesitei por um momento. — Embora eu nunca tenha visto um dragão adulto, para ter certeza.
As escamas de Vic eram um pouco maiores que meu punho e ela já era bem grande.
— Não é essa a questão…. A questão é como nós chegamos nela. — Ralik me interrompeu, fechando a bolsa em seguida.
— Como assim?
— O Fenriz sentiu um cheiro parecido com o… Dela. — Ele indicou com o queixo a direção em que Vic estava, alguns metros mais para trás de mim. — Nós usamos o cheiro dela para chegar na escama antes deles.
“Quando chegamos lá, eles tinham escavado uma grande parte da ilha, mas não sabiam exatamente onde procurar. Eu e o general achamos isso antes deles, mas parece que não ficaram felizes… Ele foi atacado e se sacrificou para que eu saísse de lá com a escama. Precisávamos entender porque os alados queriam isso.”
Isso me explicava por que Ralik queria ir embora o quanto antes. Não valia à pena coletar informações e deixar nosso general, que deveria ter muito mais informações sobre Algator. O motivo real era aquela escama.
Embora eu ainda não entendesse qual era sua importância.
— Vic, venha aqui. — Falei com ela mentalmente.
— Já acabou? E aí, você aceitou? — Ela devia estar deliberadamente bloqueando nosso caminho para não “espiar” o que ela achava ser um momento íntimo.
— Que? Ah, não! Não é isso. — Olhei para ela, não fazendo questão de esconder minha vergonha por ela abordar esse assunto novamente.
Ela já estava vindo mesmo assim. Quando passou por nós, seu corpo fez uma pequena sombra. O suficiente para nos tirar daquele sol quente.
Ralik abriu a mochila novamente, mostrando para Victoria o que escondia ali dentro. Agora que eu olhei, sob a sombra, consegui identificar melhor que a coloração da escama era verde, mas um verde muito mais escuro. Semelhante ao de uma folha de espinafre ressecada.
— Onde isso estava?! — Vic pareceu esquecer totalmente da brincadeira sobre se declarar. E eu agradeci por isso.
— Na ilha Lazil. O Fenriz sentiu um cheiro parecido com o seu e encontraram isso antes dos inimigos. Foi aí que tudo começou. — Expliquei para ela, aproveitando para repassar toda a história que Ralik me falou.
— Eu… Não entendo. Por que isso é importante? É só uma escama. — Deu para sentir um pouco de sentimento enquanto Victoria falava. Ela nunca abordou o assunto diretamente comigo, mas deveria ser ruim você ser a única de sua espécie.
— Por que isso é importante? — Repassei a pergunta de Vic para Ralik.
— Eu não sei. Eles estavam loucos atrás disso, embora ainda estivessem preparados para nos receber na ilha também. Eu… Não consegui falar com o general ainda. — Ele travou o maxilar, cerrando os dentes. — Mas precisava falar com alguém.
Ralik escondeu aquele segredo durante quase dois meses, sem coragem de falar com ninguém, até que eu ou Danibor voltasse? Será que ele não teria falado com Baplin ou Gakina sobre isso também?
— Bom, vamos descobrir. — Enfiei a mão na bolsa e puxei a escama para fora.
Esperava que ela fosse pesada, mas na verdade era bem leve. O que fazia sentido, considerando que um dragão deveria ter centenas e mais centenas dessas por todo o corpo e, se fosse pesado demais, não conseguiria voar.
Desembrulhei a espada prateada que pertencia aos alados e usei sua ponta afiada para tentar atravessar a escama, mas a lâmina foi refletida com facilidade.
— Ela é bem dura. — Ralik me advertiu. — Tentei socar, jogar do alto, explodir. Não consegui fazer nenhum arranhão nela.
Me virei para Victoria, que estava sobre nós. Não apenas nos protegendo do céu, mas usando seu corpo para que nenhum enxerido fosse capaz de enxergar o que estávamos fazendo mesmo de longe.
Peguei a ponta da espada e pressionei contra uma de suas escamas, não colocando força no movimento, apenas para ver se reagiria melhor. Quase deslizei a lâmina sobre a escama, ficou um risco no lugar.
— Ei! Essa era das novas. Poderia ter feito com uma das antigas. — Victoria reclamou, mas ela e eu entendemos imediatamente as duas coisas que aquilo significava.
A primeira era que as espadas e armaduras dos alados eram o suficiente para representar perigo a Victoria. Precisaríamos ter mais cuidado, se os enfrentarmos novamente.
A segunda era que aquela escama que Ralik recuperou era muito mais resistente do que a de Vic.
— O meu tio já acordou. O vi de pé essa manhã, embora não pareça estar em condições de retornar… — Lembrar do momento em que ele chamou a minha avó de mãe e das lágrimas dela depois disso fez com que eu sentisse um pouco mais de compaixão por ele.
— Eu deveria ir falar com ele. — Ralik guardou a escama na bolsa novamente, se levantando.
Fenriz se aproximou dele e, em um movimento rápido, Ralik já estava sobre seu dorso e se segurando nos pelos em seu pescoço.
— Que bom que voltou, Ell. — Ele disse antes de partir.
— Bundão. Tá na cara que ele gosta de você. Não vai se declarar nunca, né? — Vic bufou, desdenhosa.
—
Victoria não tinha retornado da sua caça quando minhas aulas acabaram. Como ela crescia cada vez mais, isso envolvia caçar em mais quantidade ou criaturas que dessem mais sustento para ela. Agradeci por ela deixar suas necessidades fisiológicas bem longe de mim. Considerando seu tamanho, não seria nada agradável de se ver.
Como eu não me recuperei completamente ainda, retornar para casa parecia o certo a se fazer. Dormir na Torre Vermelha não era desconfortável, na verdade era até melhor do que dormir em casa, já que tanto Kairin quanto Victoria sentiam mais liberdade em ficarem longe sabendo que eu estava facilmente ao alcance de suas proteções.
Kairin estava comigo. Voando alguns metros mais acima, eu sabia que seus olhos afiados esquadrinhavam todo o caminho até em casa, embora eu duvidasse que fosse ter qualquer perigo dentro de Gávoia, nesse pequeno trajeto de poucos minutos, até em casa.
— Como foi o retorno, Ell? — Minha avó me recebeu.
Ela estava vestindo uma camisa leve e solta, que não destacava muito as curvas do seu corpo, o verde claro combinando com o verde mais escuro de sua saia que alcançava os calcanhares. Mesmo com o cabelo preso em uma trança simples e em trajes comuns, eu nunca deixava de me surpreender com o quão linda ela era.
— Foi bem, vovó. — A abracei, cumprimentando-a o mais calorosamente possível. Como sempre. — Foram apenas aulas teóricas hoje. Aprendi um negócio legal sobre as árvores. Aparentemente elas conversam entre si.
Existe uma teoria de aprendizado muito boa: quando você ouve falar ou lê sobre alguma coisa, essa informação fica apenas parcialmente gravada em seu cérebro. O ato de tentar entender melhor o que se aprendeu, ao ponto de explicar para outra pessoa, torna mais fácil o aprendizado. Então, sempre que eu aprendia algo legal, eu compartilhava com minha avó.
Que era atenciosa e sempre escutava tudo com muita atenção. Fazendo perguntas ocasionalmente.
— Que bom que não se cansou muito hoje então. — Ela deu três tapinhas nas minhas costas, como se estivesse me dispensando. — Precisa que durma cedo hoje, Ell. Amanhã vamos acordar antes do sol nascer para começar seu treinamento com seu tio.
— O que? Por quê? Não é a senhora que deveria me treinar? — Deixei que a enxurrada de perguntas viesse, claramente desconfortável.
— Eu vou acompanhar o treinamento, mas ele precisa voltar a praticar também.
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