Capítulo 20 - Manifestações
Depois daquela aula teórica, meu treino com Danibor começou de verdade.
Era de se esperar que sem seu braço direito, que eu julgava ser o seu dominante, ele fosse ficar mais fraco ou, pelo menos, mais devagar.
Eu estava errada nas duas opções.
Primeiro porque meu tio não estava nem um pouco tentando se segurar e segundo porque ele queria me mostrar como era lutar contra alguém experiente e capaz de manipular todas as cores primárias com tranquilidade e fazer uso da cor secundária com maestria.
Sua lâmina, uma espada longa feita para ser originalmente empunhada com duas mãos, veio em minha direção com grande velocidade. Me abaixei, deixando o fio da lâmina passar por onde antes estava a minha cabeça e usei minha própria espada para estocar seu estômago.
Nossas espadas eram de verdade: ter a avó Ellen assistindo tinha suas vantagens: ela ficava de olho e sempre interferia quando necessário, impedindo que qualquer golpe fatal fosse desferido por qualquer um de nós dois.
Embora, nesse caso, geralmente a protegida fosse sempre eu.
Tínhamos escolhido me deixar praticar com a espada que Kairin roubou dos alados para que eu pudesse me acostumar ao seu peso e alcance.
Com meus olhos veridianos ativados, captei a breve oscilação de sua energia prismática e em um momento ele estava na linha de ação do meu golpe e no momento seguinte ele estava quase vinte centímetros para o lado, totalmente fora do alcance do meu golpe e me atacando com o fio de sua espada.
Por um momento, entrei em pânico. A imagem dele, com sua espada pronto para me atacar, para executar um golpe fatal, me fez imediatamente lembrar da vida passada. Um único segundo foi o suficiente para que eu me tornasse aquela versão mais fraca e sem treinamento de mim mesma: alguém indigno de Kairin, que tinha deixado Victoria morrer. Que tinha perdido minha avó.
Tentei forçar os músculos a se moverem, a sair dali, mas eu travei.
Uma pequena parte de mim, que deveria ser maior e mais forte, sabia que aquilo era um passado que não deveria mais se repetir. Eu consegui impedir meu tio de se transformar naquela coisa, seja lá o que aquilo significava.
Ellen interrompeu o golpe da espada de Danibor usando a própria, afastando a lâmina de mim.
O som do choque de metais me despertou, como um sino indicando que era a hora de acordar.
O olhar de minha avó e de meu tio pareciam indicar que eu não havia sido capaz de esconder o terror que senti.
As patas de Victoria pousando com força no gramado, rosnando para Danibor, mostrava que tudo que eu senti naquela fração de tempo tinha escapado pelo nosso laço.
Kairin voou em um rasante próximo, tentando me deixar confortável apenas com a sua presença. Ele não era tão intimidante quanto um dragão, mas a presença de um pássaro-trovão ainda era digno de nota mesmo para os nahuales mais experientes.
— Acho que devemos parar por hoje… — Minha avó interrompeu o silêncio, até agora composto apenas por olhares raivosos e rosnados.
Danibor recuou, guardando a lâmina na bainha ao lado direito de sua cintura, logo abaixo do toco onde deveria estar seu braço perdido.
— Está tudo bem? — Vic perguntou mentalmente e eu relaxei um pouco mais, percebendo só agora que fiquei esse tempo todo com a respiração presa.
Acenei positivamente com a cabeça, um movimento pequeno, mas que seria captado pelo dragão e pela ave.
— Eu gostaria de continuar, se possível. — Argumentei.
Minha espada ainda estava empunhada e eu mantinha minha guarda levantada.
Acredito que algo em meu semblante convenceu minha avó, que deu um passo para trás.
Se essa fosse uma luta de verdade, eu estaria morta agora. Tanto Kairin quanto Victoria não teriam chegado há tempo de me salvarem. E eu não posso ficar contando com a presença deles para isso sempre.
Quando eles precisarem de ajuda, eu é que preciso estar lá.
Além disso, acho que eu tinha descoberto um pouco mais sobre a técnica do meu tio.
Dessa vez eu comecei atacando: deixei que minha espada atacasse pontos não vitais em seu corpo, mirando nos ombros e tentando fazer arranhões superficiais em suas costelas.
Toda vez que minha lâmina se aproximava, ele a afastava com certa facilidade, como se não fosse trabalho o suficiente para ele.
Eu precisava forçar ele a usar sua técnica, mas ele só a fazia na hora de executar ataques surpresas ou quando a defesa exigia isso.
Dei uma estocada com a espada em seu ombro direito, aquele que não tinha mais o braço, e me abaixei logo em seguida para acertar um chute em seu pé esquerdo enquanto ele se defendia.
Sua base, sólida, recebeu minha rasteira como se não fosse nada. Se eu tivesse tentado chutar uma árvore bem enraizada, teria tido mais sucesso do que nesse momento.
Isso fez minha guarda vacilar e eu comecei a cair para o lado da direção da perna, abrindo totalmente um flanco para que ele pudesse me atacar.
E era justamente parte do meu plano.
Ele não poderia atacar diretamente daquele ângulo, então precisaria usar sua Manifestação Prismática para se deslocar alguns poucos centímetros para o meu flanco esquerdo.
Quando minha herança ocular captou aquela pequena mudança que antecede o momento em que a técnica de teletransporte dele é usada, eu apoiei a ponta da espada no chão para interromper minha queda e estiquei o braço esquerdo na frente do corpo, exatamente na altura do pescoço dele.
Senti um solavanco forte, como se alguma coisa tivesse me atingido enquanto estava muito rápido e, subitamente, eu estava com o pescoço de Danibor enganchado em um mata-leão nos meus braços.
Soltando a espada, concentrei uma quantidade considerável de energia vermelha na palma das mãos e apoiei em sua têmpora, onde um golpe mais forte poderia lhe matar se fosse o meu desejo.
Eu poderia… Matá-lo aqui e agora. E me vingar de tudo que ele fez contra mim. Não apenas me matar, mas matar minha familiar também. Seria fácil, não precisaria de mais do que um ou dois movimentos e ele estaria no chão, sangrando.
Enquanto eu o olhava de cima, pisando em seu sangue e deixando o rastro para trás…
Não! Nem dei tempo para ele se render, o soltando de minha pegada enquanto me afastava. Aqueles não eram os meus pensamentos, eram os de Victoria. Ela estava tão concentrada em se vingar Danibor que seus sentimentos estavam passando pelo nosso laço até mim.
Era assim que ela se sentia toda vez que eu deixava meus sentimentos transbordarem? Como se fossem dela?
— Vic… Ele não é aquele mesmo homem que nos matou.
Quando falei, minhas palavras pareceram acordar dela daquele furor e vi em seus olhos o indício de arrependimento. Não arrependimento por ter vontade de matar o general, mas por ter deixado isso escapar.
Minha avó bateu palma, chamando minha atenção.
— Ela aprendeu o segredo por trás da sua técnica bem rápido, general. — A ouvi falar e então entendi que suas palmas não eram para que eu prestasse atenção nela, mas sim de real parabenização.
— Imagino que seja algum tipo de recorde… — Ele falou, passando a mão no pescoço e depois na têmpora. Seus olhos afiados como se desconfiasse do quão perto eu estive de tirar sua vida. — Geralmente precisam de cinco ou seis batalhas para entenderem como funciona.
Eu sorri, aceitando o elogio. Deixando aquela conversa que eu precisaria ter com Victoria para mais tarde.
A Manifestação Prismática dele, em um primeiro momento, se parecia muito com um teletransporte instantâneo. Agora estava aqui e em seguida estava ali, mas eu comecei a notar conforme ele usava, que tinha certas limitações.
Primeiro que ele nunca se afastava tanto, nunca mais do que poucos passos. E segundo que era sempre em linha reta.
Isso porque não era um teletransporte.
Era um movimento muito rápido, mas se tivesse qualquer coisa no meio do caminho, ele ainda esbarraria com ela. Por isso sempre se afastava na direção oposta que o golpe da espada seguia, caso contrário ele teria de atravessar a própria lâmina e se cortaria no meio do processo.
— Por mais que as manifestações possam ser poderosas…. Elas não fazem milagre. — Danibor falou, guardando sua espada novamente. — Toda manifestação possui uma fraqueza, um ponto em que é possível explorar. Ter os olhos veridianos apenas nos deixa ver isso com mais clareza, mas isso não significa que devemos baixar a guarda quando enfrentamos inimigos externos.
—
No dia seguinte, eu voltei para academia.
Era estranho voltar a estudar depois de estar em missão de campo. Era quase como se eu tivesse tirado férias ao contrário, uma pequena folga para poder ficar ainda mais cansada e correr ainda mais perigo para depois voltar para a vida cotidiana… A diferença era que a ameaça de uma guerra, com criaturas de outro mundo, estourar a qualquer momento continuava sendo uma promessa velada.
Nossas turmas continuavam estudando, mas o clima para brincadeiras, duelos e outras disputas parecia ter morrido totalmente.
As aulas deveriam seguir tranquilamente até a formatura, provavelmente até um pouco mais monótonas do que antes.
Ou pelo menos era o que eu achava.
Cheguei na próxima aula um pouco mais adiantada que os demais, então só tinha eu na sala. Aproveitei para pegar o caderno da Gakina para colocar as matérias em dia quando ouvi passos de alguém entrando na sala.
Não levantei a cabeça, julgando ser apenas algum aluno, e continuei concentrada em repassar as escritas para o meu caderno.
— E aí, garota do pássaro e do dragão.
Reconheci a voz imediatamente e quando olhei, vi o alado de cabelos vermelhos que tinha me ajudado durante a missão em Lazil, acenando para mim.
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