Estranhamente o alado não era um alado. Sua principal característica, seus cabelos vermelhos e longos, estavam ali. Eu reconheci seus traços faciais de quando ele tinha removido o elmo e também seu porte físico, mas ele não tinha as asas nas costas que o identificava como membro de uma raça externa.

    Ele parecia quase… Humano. 

    Ainda havia algo em sua aparência que o diferenciava, algo em sua forma de andar e de se mover, que lhe davam uma espécie de graça sobrenatural. Lembrava um pouco a forma como minha avó se movia, mas ele ainda ia um pouco mais além. 

    E claro, ele não estava usando a armadura prateada característica de sua raça de quando eu tinha visto da primeira vez. 

    — O que você tá fazendo aqui? — Perguntei.

    Provavelmente a vez em que fui mais mal educada em toda minha vida: nem sequer passou pela minha cabeça a possibilidade de lhe cumprimentar antes. 

    — Tenho uma aula para dar daqui há pouco. — Ele respondeu, como se não fosse nada de mais. 

    Caminhou até a mesa que ficava na frente da sala e colocou dois livros sobre ela e começou a mexer em alguns objetos, que eu julgava serem giz para o quadro negro ou outros materiais para dar aula. 

    Percebi que me deixar perplexa era justamente o que ele queria ao agir daquela forma, então entrei no joguinho dele: 

    — E teremos aula de que hoje, professor? 

    Um sorriso de canto me entregou o divertimento dele com a situação, como se eu não tivesse nada melhor para fazer do que ficar jogando conversa fora com um membro de uma raça de outro mundo que estava tentando invadir nosso mundo. 

    Corrigindo: não estavam tentando, estavam de fato invadindo. 

    — Vamos ter aula sobre Traição e Conspiração Com O Inimigo, ministrada por mim mesmo. 

    Quando ele terminou de falar, Baplin entrou na sala com Gakina logo atrás. Os dois pareciam acostumados com a presença dele, como se já tivessem realmente tido aquela aula antes. Um mês fora… Era realmente muita coisa. 

    Quando Gakina passou por mim, a abracei forte ao ver que ela estava bem. Ela era do tipo mais reservada, que não iria me visitar se sabia que eu estava bem, mas que ainda se importava comigo. Senti isso em seu abraço apertado, que demorou mais do que alguns segundos para que ela se afastasse. 

    — Você poderia não me deixar sozinha com o Baplin por um mês novamente? — Ela perguntou. — A gente namora e tal, mas não tem como eu ser a única amiga dele em toda a escola. Ele precisa conversar com outras pessoas e ninguém mais aguenta ele. 

    — As piadinhas não melhoraram nesse um mês inteiro? — Fiz um esforço para parecer o mais incrédula possível, tentando esconder o sorriso zombeteiro dele. 

    — Eu achava que era impossível… — Gakina me confidenciou, como se contasse o maior segredo de todos. — Mas parece que ele ficou pior! 

    Ambas demos risadas enquanto ele empertigava os ombros, fazendo seu maior ar de superioridade possível enquanto respondia: 

    — Quando contarem minha história no futuro, dirão que vocês duas tentaram ofuscar meu brilho, mas minha estrela estava em ascensão e subindo rápido demais para fazerem qualquer coisa.

    Os demais alunos começaram a chegar logo em seguida, com Ralik entre eles. 

    — Quem é o professor novo? — Perguntei para ver até onde meus amigos sabiam sobre o Caçador. 

    — É o professor substituto de Filosofia. — Gakina me respondeu. 

    E, apesar de estarmos falando baixo e os ruídos da sala aumentarem conforme mais alunos chegam, o novo professor pareceu me ouvir e piscou na minha direção. Quase como se estivesse pedindo minha cooperação. 

    É de se esperar que, para alguém que morreu e voltou, filosofia fosse ter um pouco mais de importância, não é? A verdade é que foi uma matéria que nunca encaixou bem comigo. O antigo professor não era do tipo capaz de fazer despertar meu amor por uma matéria que eu não tinha muito interesse ainda e eu sempre foquei nas demais, participando dessa o suficiente apenas para ter a nota para concluir o período letivo. 

    Falha moral e ética minha? Talvez. 

    Mas o que uma criatura de outro mundo teria para ensinar sobre filosofia? A curiosidade me fez prestar atenção na aula e deixar as anotações de Gakina de lado. 

    Estranhamente ele não apresentou nenhuma linha filosófica nova ou alguma que eu não conhecesse. Não que eu conhecesse muitas, mas tinha uma noção de quais tínhamos estudados. 

    Em especial, ele seguia a linha de pensamento de Gregorios, um filósofo humano que conviveu com os nahuales e documentou sua vida em um extenso livro – que agora eu reconheço como um dos livros apoiados em sua mesa – e que fazia um paralelo sobre instinto e liberdade de escolha. 

    Em sua teoria, ele dizia que os seres vivos viviam em dois pontos de uma linha traçada onde, de um lado, os instintos ditavam as ações e não havia espaço para planejamento. E, do outro lado, o chamado “livre-arbítrio”, que dava o direito de escolher e planejar todos os aspectos de sua vida, arcando não apenas com o direito das escolhas, mas também com as consequências que elas traziam. 

    Ele parecia acreditar que animais estavam no extremo esquerdo, onde apenas o instinto comandava e não havia espaço para liberdades de escolha. E os humanos, com toda a liberdade de escolha e sem muitos instintos para lhes fazerem agir impulsivamente. 

    Como se controlar os poucos instintos que tivessem fosse uma parte de suas escolhas e consequências. 

    Fazia sentido até determinado ponto, se você considerasse que os nahuales não existissem. E é com base nessa ideia de confronto de pensamentos que ele trabalhou junto com Liurendil, um nahuale, para entender como ele poderia manter sua filosofia e evoluir para que explicasse nossa espécie também.

    Uma passagem famosa de seu texto era essa: 

    “A liberdade não nasce da ausência do instinto, mas da consciência dele. Um ser que sente o chamado da natureza e ainda assim escolhe, é mais livre do que aquele que jamais sentiu esse chamado.”

    — O que você acha sobre isso, Ellarien? — O alado, que ainda não tinha asas, me chamou para os holofotes sem nenhum aviso prévio. 

    — Me desculpe, professor. Eu fiquei ausente nas últimas aulas e ainda não sei o seu nome. Como posso te chamar? — Tentei ser o mais cínica possível, mas acho que falhei. 

    Ele salvará minha vida algumas vezes e ainda não tinha se apresentado. 

    — Ah, perdão não me apresentar ainda. O meu nome é Satoriel. 

    Olhei em volta quando ele falou, vendo se alguém se importaria com a pronúncia de seu nome ou algo de esquisito neles. 

    Todos pareciam bem, como se não ligassem. Ou não entendessem a presença dele ali. 

    — E então? 

    Ele deixou a pergunta no ar, me fazendo ser o centro das atenções. 

    Travei os dentes, quase com raiva dele. Felizmente aquela linha de pensamento era uma que eu estava vagamente familiarizada, então conhecia o suficiente para lhe responder. 

    — O instinto é como a voz dos nossos ancestrais, que já enfrentaram todos os tipos de perigos e nos alertam. Cabe a nós, com nossa capacidade decisiva, escolher o que fazer com os instintos. 

    — Então humanos não possuem instintos? 

    — Gregorius acreditava que não, mas Liurendil mostra que sim no segundo livro. — Apontei os dois livros que ele tinha deixado sobre a mesa. O primeiro era a vida e a obra solo de Gregorius e o segundo era sua participação com Liurendil. 

    A aula continuou, com ele abordando outros aspectos daquela filosofia. Eu deixei minha mente divagar, indo embora dali. 

    Eu não pretendia sair da sala de aula e nem deixar que o professor saísse antes de conversarmos sobre sua presença ali, mas ele parecia querer o mesmo também.

    Quando Ralik percebeu que eu estava, propositalmente, demorando para arrumar minhas coisas para sair, percebi que ele fez o mesmo. Como se não confiasse que eu fosse ficar bem sozinha. 

    Bem, eu não estava a todo vapor com minha energia prismática ainda e provavelmente estava mais fraca do que ele agora, então eu poderia realmente precisar de ajuda se algum problema ocorresse. 

    Embora eu esperava não ter que lutar contra o Caçador que estava nos dando aula. 

    De qualquer forma, agradeci pela força que ele me deu apenas em ficar um pouco mais. 

    — Por que você está aqui? — Perguntei assim que a sala ficou vazia, restando apenas nós três: o professor, Ralik e eu. 

    — O que? Como assim? A aula foi tão ruim assim? — O alado respondeu, sem realmente responder nada. 

    Olhei para Ralik, como se pensasse no que ele sabia e no que ele não poderia saber. Tudo, exceto que eu voltei no tempo. Decidi. Não tinha porque esconder as coisas dele, nem de ninguém da minha equipe. Embora o segredo sobre meu retorno fosse apenas meu e dos meus familiares. 

    Quando eu não respondi nenhuma das perguntas do novo professor de filosofia, ele respirou fundo e deu de ombros. Como se tivesse desistido do papel que estava exercendo. 

    Com um movimento de seu braço, a porta se fechou em um baque surdo. 

    — Eu estou aqui para preparar vocês para parar essa invasão contra minha raça. 

    Quando ele falou “minha raça”, ele transbordou aquela mesma energia prateada que tínhamos visto no campo de batalha em Lazil. A diferença é que sua força era esmagadora, pesando em nossos ombros como se não fôssemos capazes de ficar em pé. Como se as cadeiras em que estávamos sentados não fossem aguentar nosso próprio peso. 

    Se o instinto era como a voz dos nossos ancestrais nos alertando contra os perigos que não conhecíamos pessoalmente, mas que precisávamos evitar a qualquer custo, eu senti no fundo do meu âmago, nas raízes do meu corpo, que meu instintos diziam que eu não deveria sequer pensar em enfrentar aquela criatura que esbanjava seu poder com tanta facilidade.

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