Capítulo 8 - Lazil
O porto de Gávoia sempre foi muito cheio, nosso comércio muito incentivado com os reinos do continente ocidental. Khoran e Zalíria eram excelentes parceiros comerciais e sei que, no passado, era comum encontrar uma dúzia de navios estrangeiros ali.
Depois que a guerra explodiu, isso se tornou impossível. A Ruptura fica no meio do caminho e é pedir para se arriscar muito virem direto para cá.
Ainda podem vir pelo norte, no nosso porto de Helicacia ou Irem. E é através desses dois postos que sabemos a situação do que está ocorrendo do outro lado.
Apesar do clima no porto não ser tão animado quanto no passado, quando muitos nahuales de outras tribos e humanos passavam por ali aos montes, ainda era um lugar mais animado que o comum. Comerciantes gritavam, oferecendo seus produtos e chamando a atenção.
Entre os três barcos parados no porto, um deles se destacava pelo tamanho. Era muito maior que todos os outros, robusto e com suporte para conter uma grande embarcação.
Na proa, de pé e olhando para a cidade, estava meu tio. Seus braços estavam cruzados enquanto ele parecia estudar cada ponte do porto. Usava uma placa como armadura, com ombreiras que lhe protegiam até os punhos e uma capa verde clara esvoaçava em suas costas.
Era uma visão bem imponente, deve assumir.
Por onde nós passávamos – Eu, Ralik, Gakina e Baplin -, ouvíamos as pessoas murmurando e comentando sobre ele. O general Danibor não era o tipo de pessoa amável, com sorriso fácil e que liderava por sua simpatia ou amizade. Ele preferia transformar a si mesmo em um exemplo a ser seguido, considerando a honra o principal dos atributos que alguém poderia cultivar.
A rampa de acesso ao nível já nos aguardava e a subimos com facilidade. Fenriz, o lobo de Ralik, estava logo atrás e subiu também.
Não parecia muito certo um lobo gigante como aquele estar dentro de um barco e, pela expressão de Ralik, ele também não concordava muito com isso.
— Está tudo bem com o Fenriz? — Perguntei.
— Ele… — Ralik passou a mão em sua juba acinzentada. — Vai ficar bem.
Mesmo parado, o balanço das ondas ainda afetava a embarcação. E o lobo estava com as garras fincadas na madeira, como se estivesse segurando nas tábuas do navio para não escorregar.
Olhei para o mastro, no topo, quando Kairin pousou ali. Suas penas amarelas praticamente brilhando em contato com o sol. Mais acima, quase na altura das nuvens, era possível ver as asas estendidas de Victoria.
Nenhum dos dois quiseram ficar para trás. E eu não insisti para que ficassem.
— Vamos ficar de olho nele. — Kairin falou através do nosso laço.
— Obrigado.
Essa podia ser a missão em que ele, meu tio, ficaria gravemente ferido e aquela coisa seria colocada em seu corpo, mudando a pessoa honrada que ele era para aquela… Coisa que havia me matado.
— Esquadrão pronto para missão, senhor. — Ralik cumprimentou Danibor, fazendo uma saudação militar ao apoiar a mão sobre o coração.
Todos repetimos a saudação. Incluindo Barkot, que estava de pé nos ombros de Baplin.
— Os Externos chegaram à nossa costa. — O general respondeu, ainda sem se virar para nós. — Invadiram a ilha de Lazil.
Lazil era uma das ilhas “periféricas”, próximas da nossa costa, mas sem ligação terrestre com o continente. Era um excelente lugar para se fazer um posto avançado, receber suprimentos do outro lado do mar e organizar um ataque a partir dali.
E havia sido em Lazil que ele ficou gravemente ferido. E tudo tinha mudado.
—
— Estamos chegando. — Victoria me falou através do laço, aproximadamente um dia inteiro depois que partimos.
Olhei para o céu, tentando procurar por ela, mas não encontrei. Ela havia escolhido voar acima das nuvens para esconder sua presença até que realmente chegássemos. Daquela altura, ela teria uma visão privilegiada do nosso destino.
— General, Vic me avisou que já estamos próximos. — Compartilhei a informação com ele.
— Não a chame por apelidos. Ela é um dragão, Ellarien. O último dragão vivo. Provavelmente a criatura mais poderosa que temos em todo o mundo. — Sua repreensão me pegou um pouco desprevenida.
— Gostei da parte em que sou a criatura mais poderosa do mundo. — A dragão se vangloriou pelo nosso lado. E Kairin riu.
— Peça para ela retornar. — Ele continuou, depois de um tempo.
E começou a dar ordens para que o navio parasse.
— Não estamos aqui para tomar a ilha de volta. Um time pequeno não seria o suficiente para isso. Estamos aqui para coletar o máximo de informações possíveis: qual dos dois exércitos está ocupando Lazil, quantos são e como estão organizados. — Danibor começou a falar, sua voz alcançando todos que estavam no convés.
— Por isso vocês estão aqui comigo. — Ele se virou para nós quatro agora. — Apesar de não terem se formado ainda, seus familiares são os melhores que temos em coleta de informações.
Eu entendia isso. Victoria e Kairin poderiam sobrevoar a região e enxergar, com detalhes, aquilo que precisavam. Balin e Barkot iriam obter informação por terra enquanto Gakina e Nex conseguiriam fazer isso por água facilmente.
Mas qual era a função de Ralik nisso? Um lobo poderia se esgueirar, mas não tão bem quanto um macaco. Poderia?
Tinha o problema também de como eles chegariam na ilha, já que a embarcação deveria ficar fora de vista.
Victoria pousou no convés do navio. A embarcação era grande o suficiente para lhe comportar, com as asas fechadas. Não sem antes balançar um pouco por conta do súbito aumento do peso em uma única região.
— Como vamos saber identificar os dois exércitos? — Ralik perguntou.
— Você não precisa identificar, apenas coletar todas as informações que puder e trazer.
Ralik apenas assentiu com a cabeça e se afastou, terminando de preparar as coisas.
— Victoria já é capaz de carregar mais alguém além de você, correto? — Meu tio perguntou.
Eu olhei para Victoria, como se estivesse apenas repassando a pergunta.
— Mais uma pessoa sim, mas não sou montaria para ficar carregando os outros não. Ele não sobe em mim.
Apesar do meu esforço em convencer Kairin e Vic sobre meu tio não ser uma pessoa realmente má e que, aquilo que me matou no passado, deveria ser algum tipo de influência externa o obrigando a fazer isso, não havia diminuído o aparente ódio que os dois haviam adquirido por ele.
Acho que um pouco daquela raiva ainda estava ali dentro de mim também, escondida na maior parte do tempo enquanto eu me esforçava para impedir que chegasse até aquela situação novamente.
— Sim. — Respondi, finalmente. Escolhi não compartilhar o resto das palavras por enquanto.
— Leve o Baplin com você então. Eu irei levar o Ralik e o Fenriz.
— E quanto a mim, senhor? — Gakina perguntou, sentindo que estava ficando para trás.
— Vá com Nex pela água.
Ela já ia obedecendo ao comando e pulando do barco agora, quando Danibor a segurou pelo ombro e entregou um pequeno objeto em sua mão. Depois passou por cada um de nós, entregando um também e encaixou o último que ficou em sua mão, no próprio ouvido.
— Isso vai nos permitir forjar uma conexão temporária. É inferior a conexão que temos com os familiares, já que você precisa falar para o outro lado ouvir, mas deve ser o suficiente para nos comunicarmos. — Enquanto ele explicava, seus olhos ficaram um tom de verde mais brilhante.
Enviei um pouco de energia aos meus também, para ver o que ele estava fazendo. Já conseguia ativar os olhos veridianos sempre que eu quisesse, embora ainda fosse difícil lhe manter ativado enquanto usava a energia prismática para fazer qualquer outra coisa.
Vi o momento em que uma linha cerúlea se estendeu para cada um dos objetos em nossa mão e se conectou ao dele também.
— É experimental, então tomem cuidado. Se sentirem que isso está atrapalhando a missão, podem descartar e seguir com suas respectivas missões. — Ele complementou. — Preciso que coletem o máximo de informações possíveis.
Ele dispensou a todos.
Gakina pulou no mar.
— Testando. Vocês estão me ouvindo? — A voz dela apareceu um minuto depois, saindo diretamente do objeto encaixado na minha orelha.
— Sim. — Respondi.
Isso pareceu ser o suficiente, já que ela ficou em silêncio logo em seguida.
Subi em Victoria e dei a mão para que Baplin subisse também, ajudando-o. Ainda estava interessada em saber como Danibor faria para levar um lobo grande como Fenriz e o próprio Ralik até a ilha, mas não podia ficar para esperar.
— Se eu cair daqui, diga à mamãe que eu a amo. E a Gakina também. E ao professor de biologia, ele foi muito gente boa. — Baplin começou a falar. — Sua avó também, eu amo sua avó. Por favor, fale para ela. — Ele continuou, agarrando com força em minha cintura enquanto o pequeno Barkot se agarra com força nos cabelos dele.
— O professor de biologia?
— É, ele completou minha nota ano passado. Se não eu ia reprovar.
— Você ia reprovar em biologia? Por que não pediu ajuda? — Me virei para olhar para ele, incrédula.
— Sou muito orgulhoso para pedir ajuda, é meu traço tóxico. — Ele balançou a cabeça, como se estivesse concordando consigo mesmo.
— Mas pediu ajuda para o professor? Quer dizer que pode pedir ajuda para estranhos, mas não para amigos?
— Não ouse usar a lógica contra mim enquanto eu estou montando em um dragão, dona Ellarien Veridion.
Suspirei, desistindo do assunto por enquanto.
Kairin apareceu voando ao nosso lado, emparelhado com Victoria.
Suas penas douradas pareciam mais opacadas agora, brilhando menos enquanto as penas escuras pareciam ter ganhado mais espaço.
— Como você fez isso?
— Minhas penas refletem a luz. — Ele respondeu como se apenas isso bastasse de explicação.
Ele era uma espécie predadora, de qualquer forma. Camuflagem deveria estar enraizado em seu processo evolutivo muito mais forte do que qualquer outro aspecto.
Não demorou muito para que uma cadeia montanhosa aparecesse no horizonte, indicando que estávamos chegando na ilha.
— Vou na frente para primeira verificação. — Kairin bateu suas asas mais fortes, nos deixando para trás.
Ele avançou com velocidade e logo eu o perdi de vista. Uma pequena onda de preocupação se espalhou dentro de mim, preocupada que ele fosse tão na dianteira assim, mas eu entendi que aquela era a sua função. Estava tudo bem ficar preocupado, eles também viviam preocupados comigo. O problema seria se eu começasse a lhes impedir, mostrando que não confio que consigam fazer suas missões.
— Certo… Não sei como te preparar para o que estou vendo aqui. — Ele me chamou depois de alguns minutos. — Existia alguém morando aqui antes?
— Sim. Servia de reabastecimento para a última parada antes de chegar em Orfeán. — Considerei suas palavras por um momento. — Não existem mais?
— Não tem ninguém por perto, podem vir e ver por conta própria.
A visão da ilha estava obstruída pelas montanhas que nasciam do chão como as presas da mandíbula de uma fera, afiadas e buscando alcançar os céus. Quando passamos por ela, a vista do outro lado me atingiu como um soco: toda a cidade havia sido destruída e ainda havia focos de incêndio espalhados pelo ambiente.
E só essa visão por si só já era assustadora o suficiente, mas não era tudo que se podia ver.
Sobrevoando a cidade, uma pequena legião de humanoides com asas brancas observava tudo de cima. Eles ainda estavam abaixo da altura das montanhas, mas acima da construção mais alta, que devia ter uns quinze metros de altura.
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